Síndrome do Membro Fantasma. Não está lá, mas dói

A Síndrome do Membro Fantasma foi um mistério durante séculos. Não é difícil perceber porquê: o senso comum não chega para explicar como é possível ter sensações - dolorosas ou não - num membro que foi amputado. Hoje, no entanto, a origem neurológica do problema é conhecida e há respostas terapêuticas eficazes para quem sofre com ele.

Há momentos, sem aviso, em que Nuno Pontes, de 43 anos, consegue mexer os dedos do pé esquerdo. Abre-os e fecha-os com facilidade. Isso não teria nada de extraordinário, não fosse dar-se o caso de não ter pé esquerdo, porque fez uma amputação da perna, ao nível do joelho, há mais de 23 anos.

Nuno tinha 19 quando um acidente de mota determinou que tivesse de lhe ser feita uma amputação transtibial e, durante o longo período de recuperação, a sensação de ainda ter a perna era quase uma constante.

Hoje, décadas depois, acontece com menos frequência mas, ainda assim, há dias em que se levanta de manhã e, apesar de assentar apenas o pé direito no chão, é como se a perna e o pé esquerdo ainda estivessem lá. Sente-lhes o peso, a posição e tem a nítida sensação de cada dedo que já não tem em contacto com o chão. “É uma sensação incrível, quase mágica, mas ao mesmo tempo frustrante”, explica.

A Síndrome do Membro Fantasma foi descrita pela primeira vez em 1552, pelo cirurgião francês Ambroise Paré, mas foram precisos mais de 400 anos para a ciência conseguir explicá-la. O fantasma do membro, doloroso ou não, é “produzido” precisamente pela ausência de impulsos nervosos, após a amputação.

“É uma sensação incrível, quase mágica, mas ao mesmo tempo frustrante”

“Nós temos uma representação cerebral, cortical, do nosso corpo; como que um mapa, para percebermos o que se passa”, explica a anestesiologista Ana Cristina Mangas, atualmente coordenadora da Secção de Medicina da Dor da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia. “Quando há uma amputação todo o influxo nervoso correspondente a esse membro deixa de existir, mas continua a haver uma representação a nível cortical.”

Para Nuno Pontes, o tempo e a adaptação à prótese foram fundamentais para conseguir controlar e minimizar as sensações fantasma. Nunca procurou ajuda porque nunca sentiu que isso o prejudicasse no dia-a-dia mas, para outros, a história é um pouco mais complicada: meses ou anos depois da amputação, persistem dores, por vezes violentas, no membro que já não está lá.

Os estudos sobre a incidência deste tipo de dor apresentam valores muito discrepantes, que variam de pouco mais de 2% até mais de 90% da população de amputados. Esta disparidade pode ser explicada pelos tipos muito diferentes de sensações que os amputados vivenciam, e que vão da dor no local do coto a sensações de presença do membro ou dor fantasma.

A principal origem de diferenças tão pronunciadas, considera a médica fisiatra Isabel Pereira, está relacionada com o momento da avaliação. “Depende sobretudo da altura em que se pergunta às pessoas se existe dor: quanto mais próximo da altura da amputação, mais altas costumam ser as percentagens.”

No entanto, aquilo que a médica sabe a partir da sua experiência como especialista em Medicina Física e Reabilitação no Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, na Amadora, é que quase todos os amputados terão uma sensação de membro fantasma ou de dor fantasma em alguma fase.

“É mais frequente nas fases iniciais pós-amputação e em amputados do membro inferior, mas também pode manifestar-se só anos mais tarde e acontecer com os membros superiores ou mesmo noutras partes do corpo, como no caso das mastectomias.” Da sua experiência, a dor fantasma também é mais frequente em situações em que houve dor aguda ou crónica previamente. “Por exemplo, no caso das pessoas com diabetes que tiveram de ser amputadas exatamente por terem, durante meses, feridas dolorosas difíceis de cicatrizar.”

Tratar a dor antes de ela aparecer

Sabendo disto, as melhores práticas de anestesiologia põem a tónica do tratamento não apenas no “depois”, mas também no “antes” e no “durante”. Ou seja: o melhor tratamento é a prevenção. “Hoje é aceite que quem tem dor crónica está mais sujeito ao aparecimento de dor fantasma e, nesses casos, a intervenção deve ser prévia à amputação”, defende a anestesiologista Ana Cristina Mangas.

Por um lado, antes da cirurgia, podem ser usados fármacos específicos para a dor neuropática, ainda que ela não esteja presente. Por outro, do ponto de vista anestésico, durante a cirurgia, “há recomendações recentes que sugerem, por exemplo, a utilização de anestesia loco-regional e bloqueios periféricos que vão ‘adormecer’ os nervos antes de serem seccionados”, prossegue a especialista.

“Hoje é aceite que quem tem dor crónica está mais sujeito ao aparecimento de dor fantasma e, nesses casos, a intervenção deve ser prévia à amputação”

Isto é especialmente importante porque há dores fantasma refratárias à medicação e muito difíceis de tratar. As atuais medidas de combate passam pela medicação mas também, recentemente, nos casos mais complicados, pela possibilidade de implantar um aparelho de estimulação periférico. “São dispositivos muito prometedores e que têm um impacto enorme na melhoria da qualidade de vida”, revela a anestesiologista. Isso não quer dizer que façam a dor desaparecer, mas ajudam a controlá-la. “Como eu costumo dizer aos meus pacientes: para passar a ser o António a ter a dor, e não a dor a ‘ter’ o António.”

A fisiatria também pode ajudar com algumas técnicas, quase todas viradas para a estimulação da zona terminal do membro, já que a dor parte exatamente da ausência de estímulo nervoso. Uma delas é a técnica do espelho, em que é preparada uma estrutura que esconde a ausência do membro, ao mesmo tempo que reflete o membro saudável, criando no paciente a ilusão de ter dois membros iguais.

A técnica do espelho reflete o membro saudável, criando no paciente a ilusão de ter dois membros iguais

“A realização de exercícios com esta técnica engana o cérebro e cria uma estimulação na área cerebral que deixou de ser estimulada por aquele segmento em falta, podendo diminuir a dor ou sensação de membro fantasma”, diz a fisiatra Isabel Pereira.

Importante, garante a clínica, é o paciente falar abertamente sobre estes sintomas com o médico, para poder ser ajudado: “Ainda há muitas pessoas que só falam depois de eu perguntar diretamente se sentem dor na perna ou braço que não está lá. Têm vergonha ou medo de estar a dizer um disparate”.