Texto de Sofia Teixeira
Hospital Dona Estefânia, Lisboa, 5 de abril, 11.35 horas. A criança de quatro anos deitada em cima da marquesa entra em paragem cardiorrespiratória. A sua vida depende agora de uma equipa que faça tudo depressa e bem: tem de ser rápida, tem de ser eficaz e tem de estar coordenada. Um passo em falso e as consequências são devastadoras. Hoje, no entanto, toda a gente pode respirar fundo e dormir descansada se errar. Trata-se apenas de um treino prático.
A “criança” é um simulador de alta-fidelidade, um sofisticado robô que, além do aspeto humano, mimetiza também a fisiologia de uma pessoa: respira, tem batimentos cardíacos, fala e responde em tempo real à medicação administrada e outras intervenções. Tem os sintomas que o programam para ter, com o objetivo de criar cenários fictícios que preparam os profissionais de saúde para futuros episódios reais.
A simulação biomédica moderna – que foi beber muito à experiência da aviação comercial – tem sido uma verdadeira revolução no ensino de profissionais de saúde. De uma só penada, dá resposta a alguns dos maiores desafios clínicos: o erro médico, a segurança dos pacientes, o treino de procedimentos complexos e raros, o funcionamento da equipa como um todo. Num ambiente controlado e seguro, todos podem aprender experimentando.
“Sabemos que em sala de aula, através do método expositivo, os alunos apreendem 5 a 10 % daquilo que ouvem. Quando treinam retêm muito mais”, salienta Pedro Garcia, Coordenador do Centro de Simulação de Técnicas em Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Nova de Lisboa, e médico da Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais (UCIN) do Hospital Dona Estefânia, também em Lisboa.
As técnicas de simulação são muitas e permitem dar resposta a necessidades muito diferentes, os simuladores-robôs são apenas uma peça de um extenso puzzle. “A simulação é um método de ensino com todo um processo pedagógico por trás: o ponto de partida é sempre a aquisição de uma competência, depois é concebido um cenário, programado o simulador, criado um ambiente e feito um guião com eventos sequenciais, dependentes das ações dos formandos”, explica o neonatologista.
O método de ensino por simulação tem três passos: o briefing prévio, a execução do cenário e o debriefing. “É durante o debriefing – que é uma reflexão estruturada sobre o que foi feito – que ocorre o processo de aprendizagem.”
As técnicas usadas podem ser mais simples ou complexas, dependendo do nível de competência dos formandos e dos objetivos: vão da prática de procedimentos isolados, como uma entubação, até ao treino da interação com os pacientes, sendo neste caso usados os chamados “pacientes standardizados”, atores ou membros da equipa de formação que vestem uma personagem, têm um guião e interagem com os formandos para os treinar, por exemplo, para a recolha da história clínica dos pacientes.
Outras técnicas dão resposta à crescente complexidade de unidades como o serviço de urgência e os cuidados intensivos – sítios com potencial para muita coisa correr mal. Uma das práticas de simulação que dá resposta aos desafios destes serviços é a simulação in situ, na qual os cenários de treino se desenrolam, não dentro do centro de simulação, mas nos ambientes em que os profissionais se movem.
“Isto permite avaliar aspetos concretos do serviço, por exemplo: os profissionais conhecem bem o desfibrilhador que têm na urgência? Será preciso afixar na parede da sala de reanimação um poster com o algoritmo [protocolo] do choque anafilático? A ideia é avaliar as pessoas em funcionamento no seu local de trabalho habitual para fazer ajustes que sejam necessários a uma maior eficácia.”
Este tipo de simulação é feito com alguma periodicidade, embora não seja obrigatório. Mas Pedro Garcia – que, atualmente, é também presidente da Sociedade Portuguesa de Simulação Clínica – acredita que, no futuro, se vai caminhar para a obrigatoriedade deste tipo de simulacros nas organizações.
Os pioneiros da simulação
A necessidade de simular para ensinar não é nova. Entre 1760 e 1783, Angélique du Coudray, uma parteira francesa ao serviço do rei Luís XV, percorreu a França rural com um manequim à escala a que chamou “a máquina”: uma representação do corpo feminino, em tamanho real, desde a zona lombar até meio das coxas.
Nesse simulador rudimentar – feito em couro, algodão e com um verdadeiro osso da bacia humano no interior – era possível, através de um sistema de cordas e correias, demonstrar várias fases do trabalho de parto e nascimento do bebé – também ele feito em tecido, com orelhas e nariz costurados e cabelos pintados a tinta. Estima-se que Angélique tenha formado entre cinco mil a dez mil mulheres e cerca de 500 médicos de zonas rurais, de forma a tentar diminuir a mortalidade materna e infantil, o que fez da obstetrícia uma das áreas pioneiras na simulação.
Hoje, nos países industrializados, as mortes de grávidas e bebés estão em mínimos históricos, com Portugal entre os países com melhores indicadores. Temos 200 vezes menos mortes maternas do que em 1920. Mas, o número já é tão baixo que reduzi-lo torna-se cada vez mais difícil: há situações agudas, mas raras, por isso as pessoas não as treinam. E saber agir com eficiência e rapidez perante o que é raro é muito difícil”, sustenta Diogo Ayres de Campos, Diretor de Serviço de Obstetrícia do Hospital de Santa Maria (CHLN), de Lisboa.
O obstetra defende que a resposta está na simulação, pelo que tem estado ativamente envolvido nessa solução: foi consultor médico de um dos simuladores de emergências obstétricas mais avançados e mais usados atualmente, o Lucina, desenvolvido e comercializado pela CAE Healthcare, em Montreal, no Canadá.
A simulação de um parto complicado não é novidade. O que é novidade é o realismo que simuladores como o Lucina trazem para a obstetrícia, permitindo uma experiência mais imersiva. O Lucina faz dilatação, tem contrações uterinas, o bebé pode estar em várias posições e só é libertado se o obstetra fizer a manobra correta, pode ter hemorragias e, além disso, simula também a fisiologia fetal do “bebé” que tem dentro da barriga. “Por exemplo, se for dada oxitocina para acelerar o parto e houver demasiadas contrações, o simulador vai descer os valores do oxigénio e dos batimentos cardíacos fetais automaticamente”, assegura Diogo Ayres de Campos.
Uma emergência obstétrica é, por definição, uma situação que põe em risco a vida da mãe, do bebé ou de ambos e que precisa de ser resolvida em breves minutos. Uma das mais temidas por qualquer obstetra é uma distocia de ombros, situação a maioria das vezes imprevisível, na qual nasce a cabeça do bebé, mas os ombros ficam presos. Estima-se que ocorra em cerca de 0,5 % dos partos vaginais.
“Era o pesadelo de qualquer obstetra”, realça Diogo Ayres de Campos. E não o diz de cor: conhecia a situação apenas dos livros e das aulas teóricas, nunca tinha assistido a nenhuma quando, apenas com um ano de prática, a enfrentou num parto às quatro da manhã. “Foi uma situação que me marcou. Tenho uma recordação viva de tudo. Acabou por correr bem, depois de chamar um especialista mais experiente para ajudar, mas foi um alerta: no meio do stresse, é difícil manter a calma, tomar as decisões certas – não só individualmente, mas em equipa.”
Escusado será dizer que o simulador que ajudou a desenvolver permite recriar a situação. “Um interno, ou um especialista, pode hoje treinar uma distocia de ombros dez vezes seguidas. Quando surge um caso verdadeiro, a calma e o desembaraço a resolver a situação são completamente diferentes.”
A especialidade de obstetrícia recorre também com frequência a uma técnica mista para aumentar o realismo: a simulação híbrida. Deitada na maca está uma atriz, mas, debaixo do lençol que a cobre e abaixo da sua anca, está um simulador obstétrico que reproduz o colo do útero e o canal de parto, para que o formando possa treinar as técnicas ao mesmo tempo que interage com a parturiente.
Anatomia do erro
Numa reunião de preparação para uma cirurgia no dia seguinte, o anestesiologista leva uma preocupação: a doente está com sintomas e valores que sugerem uma infeção e não tem critérios para ser operada. O cirurgião entra na sala, apressado e ao telemóvel, não se senta e diz estar cheio de pressa. Impacienta-se com a sugestão do anestesiologista e não concorda com ela.
Desvaloriza a preocupação, resiste ao diálogo e não estabelece contacto visual. É um momento-chave: pode ser que o cirurgião, um pouco autoritário e bastante mais velho, leve a sua avante. Ou então o jovem anestesista tem as competências necessárias para fazer valer a sua convicção, comunica de forma assertiva e leva a cirurgia a ser adiada.
Esta é uma das situações treinadas no curso de simulação de competência não-técnicas em anestesiologia, ministrado no Centro de Simulação Biomédica (CSB) da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Trata-se de uma especialização recomendada no plano de formação do Colégio da Especialidade de Anestesiologia, porque nem só de conhecimento técnico se faz um bom médico. “Sabemos hoje que as competências não-técnicas são fundamentais para a segurança do doente, sobretudo em situações críticas”, frisa Carla Sá Couto, Diretora do CSB e presidente da Comissão Científica da SESAM – Sociedade Europeia de Simulação Aplicada à Medicina.
Habituamo-nos a pensar no erro em medicina fortemente associado a más práticas técnicas ou científicas, mas, como mostra o Institute of Medicine (IOM), a maioria dos erros clínicos não se deve à falta de conhecimento ou competências técnicas: cerca de 70% dos erros têm como causa as chamadas “soft skills”. “As grandes dimensões dessas competências não-técnicas são a comunicação – com o paciente e entre a equipa, a liderança, a tomada de decisão e a consciência situacional. E tudo isto pode ser treinado através da simulação”, sublinha Carla Sá Couto.
Até há não muito tempo, o modelo de aprendizagem em medicina sintetizava-se na máxima “see one, do one, teach one” (ver um, fazer um, ensinar um). Mas o que durante muito tempo foi visto como necessidade incontornável passou a ser encarado como um problema inadmissível. “É uma máxima completamente ultrapassada. Já estava a cair em desuso por outras razões, nomeadamente, o número elevado de estudantes na área da saúde e a menor recetividade dos doentes a essa exposição. A simulação veio oferecer alternativas. Não substitui o contacto com o doente, mas proporciona um contacto que o mimetiza, num ambiente protegido”, defende a Diretora do CSB.
Com a educação médica baseada na simulação emergiu um novo modelo: depois de “ver um” é preciso “simular muitos”, antes de fazer o que quer que seja com pacientes reais.