Silêncio, um bem em vias de extinção

Texto de Sofia Teixeira

Quando chegam as férias, tudo que o que Marília Pamies e o marido querem é paz e sossego. Vivem na cidade, ela trabalha num centro comercial, ele num escritório open space e, em casa, há as miúdas, uma com 17 anos, outra com nove.

Desde antes do nascimento da filha mais nova que a gestora de marketing, de 44 anos, e o marido têm uma regra: ter pelo menos uma semana por ano de férias a dois, para usufruírem de uma coisa de que ambos gostam e rareia nas suas vidas: o silêncio.

Durante alguns anos, quando as miúdas eram pequenas, depois das férias com elas, rumavam até um resort “adults only” (só para adultos) algures num sítio paradisíaco. Ir para um sítio sem crianças era uma forma de não terem tantas saudades das filhas, mas também uma forma de não terem de ouvir os filhos dos outros a fazer “bombas” na piscina, em correrias ou birras na sala de refeições ou a chorar no quarto ao lado.

“São sítios muito diferentes, por comparação com os hotéis que aceitam crianças. Dá para ler descansado, fazer as refeições num ambiente tranquilo, dormir bem. São hotéis onde também não há grupos e os hóspedes são maioritariamente casais. O tipo de serviço e atenção também é outro.”

Marília e o marido não desistiram da sua semana anual de sossego, mas desde há alguns anos optaram por um formato diferente: desde 2015 fazem o Caminho de Santiago uma vez por ano, só os dois. “Permite-nos estar em silêncio e sozinhos, mas também em contacto com a natureza sem estarmos fechados na bolha de um hotel”, realça. “Estar sem ruído, sem internet e só um com o outro é um luxo nos dias de hoje.”

A demanda pelo silêncio está a cerrar fileiras contra um dos seus maiores inimigos: as crianças. No Booking, tanto em Portugal como fora, multiplicam-se os hotéis com a designação “adults only”, que se assumem como espaços que privilegiam a tranquilidade e onde as crianças não são bem-vindas. Em Portugal, essa designação e a recusa em receber crianças tem causado celeuma e alguns hotéis foram multados pela ASAE.

Mas não são apenas os hotéis e alguns restaurantes que tentam poupar os clientes ao ruído das crianças que não são suas. Pese embora a indústria aeronáutica ser uma das principais causadoras de ruído, sobretudo em locais próximos dos aeroportos, as companhias aéreas esforçam-se por oferecer a maior tranquilidade possível aos passageiros: criam zonas de lounge diferenciadas nos aeroportos para quem compra bilhetes em executiva ou primeira classe, compram aviões que oferecem cabines mais silenciosas e algumas estão a levar esta promessa de silêncio um pouco mais longe, criando zonas silenciosas dentro da cabine.

A Air Asia, por exemplo, reserva as primeiras filas da classe económica – da sete à 14 – dos voos de longo curso como “quiet zone”, vedando o acesso a essas filas a crianças com menos de dez anos.

A indiana IndiGo tem igual política e a Malaysia Airlines baniu os bebés na primeira classe de alguns voos, em 2011. Essas políticas não são consensuais, mas têm muitos apoiantes, como mostra um inquérito realizado pelo site Airfarewatchdog, em 2017: 52% dos respondentes acreditam que as famílias que viajam com crianças com menos de dez anos devem ser sentadas numa zona específica do avião, e não misturadas com os outros passageiros.

O ruído da modernidade

Foi para fugir à cidade, ao stresse, à tecnologia e à ansiedade, que Ana Rita Fialho, de 41 anos, experimentou pela primeira vez fazer um retiro de silêncio, há dez anos. “Morava a 70 quilómetros do meu trabalho, tinha um bebé pequeno que não dormia uma noite seguida e estava a dar em doida. Acabei por ir fazer um retiro de silêncio católico, durante três dias, em Fátima”, conta a psicóloga.

Os dias eram preenchidos com as orações, o terço, a via-sacra, e Ana Rita garante que o que custou mais foi mesmo estar calada tanto tempo. Apesar disso, conta, o silêncio à sua volta e a impossibilidade de conversar deram-lhe uma possibilidade rara: “Consegui finalmente ouvir-me a mim própria. Perceber o que queria para a minha vida, ter confiança em mim e força para não temer o futuro.”

O escritor e ensaísta americano Garret Keizer fornece-nos aquela que é talvez uma das mais curiosas definições de ruído. Define-o, no título de um dos seus livros, como “The Unwanted Sound of Everything We Want” (O som indesejado de tudo que desejamos – sem edição em português). O ruído é definido precisamente como um som não desejado e incomodativo.

E isso quer dizer que tem uma componente objetiva – porque pode ser medido em decibéis (dB) – mas também que é um conceito principalmente subjetivo porque a noção de incomodidade varia de acordo com as pessoas, as culturas e as circunstâncias. Não consideramos ruído os 110 dB de um concerto rock para o qual comprámos bilhete, mas incomodam-nos os 50 ou 60 dB do aspirador ou do televisor do vizinho de cima.

Nas cidades, o ruído é considerado uma das principais causas de degradação do ambiente e, por arrasto, da qualidade de vida. As estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS) indicam que 60% da população está exposta a níveis de ruído muito acima dos recomendados, aconselhando a urgente adoção de medidas de combate e prevenção ao problema.

A organização alerta que o ruído excessivo prejudica seriamente a saúde humana, já que pode perturbar o sono, ter efeitos cardiovasculares e psicofisiológicos nefastos, reduzir o desempenho e causar alterações no comportamento social. Em Portugal, de acordo com a Agência Portuguesa do Ambiente, cerca de 20% da população residente no continente está exposta a níveis sonoros que induzem perturbações no sono. Os transportes são os principais responsáveis, embora o ruído de atividades industriais e comerciais também seja um problema.

A tecnologia, ao mesmo tempo que cria cada vez mais aparelhos e máquinas que trazem conforto à nossa vida, também lhe acrescenta muitos decibéis. Quando isso começou a ser um problema investiu-se em mais tecnologia que lhe desse resposta: aspiradores, ares condicionados, máquinas de lavar e secar, exaustores, frigoríficos e outros aparelhos domésticos focam agora uma parte significativa da sua comunicação nos baixos níveis de ruídos que produzem.

As marcas de automóveis também: o habitáculo silencioso, livre de barulho do motor e dos chamados “ruídos parasitas” é uma das bandeiras de comunicação de grandes marcas. E a maioria das marcas de áudio de gama alta tem hoje auscultadores com cancelamento de ruído, com os quais é possível ouvir música num volume mais baixo, com menos interferência do ruído ambiente.

Na última década, o minimalismo chegou ao estilo de vida. Frases como “menos é mais” ou “as melhores coisas da vida não são coisas” dão conta de um movimento mundial que valoriza mais a forma como se vive a vida do que aquilo que se possui. Tal como a simplicidade voluntária e o tempo, também o silêncio se tornou um bem valioso. Mas esse valor não é apenas uma força de expressão: o silêncio, por ser raro, é um bem que tem um custo.

E nem toda a gente o pode pagar: nos países industrializados, as pessoas com menos recursos económicos são as que vivem mais perto das principais fontes de poluição sonora, nas habitações com pior insonorização e as que têm menos hipótese de usufruir de momentos de tranquilidade e silêncio fora do seu ambiente habitual pelo custo que isso comporta.