Sabe do que é que precisa mesmo para ser feliz?

Um beijo, braços protetores, mais dinheiro na carteira, um brinde com refresco gelado, a cura, pão quente com manteiga. Tudo sorrisos. Ouvir 34 vezes num dia a palavra “adoro-te”. Enquanto uns se tornaram especialistas em felicidade, outros criticam a sua busca obsessiva. Pode parecer estranho, mas a felicidade não é a solução para tudo.

Abundam os livros de autoajuda, de truques e dicas para ser feliz. Todos assentam na premissa de que a felicidade depende sobretudo de nós próprios, da nossa força mental. Foi por isto que Edgar Cabanas Díaz, professor universitário em Madrid, escreveu em coautoria o livro “Happycracia. Como a Ciência e a Indústria da Felicidade Controlam as Nossas Vidas”.

A crítica explora os propósitos daquilo que à partida poderia ser a mais simples das questões e das vontades: ser feliz. “É um fenómeno epidémico. O que a indústria nos oferece, com todo o tipo de produtos, são soluções simplórias e individualistas. Um dos problemas é definir a felicidade como uma escolha pessoal, porque assim o sofrimento também se converte numa escolha. Se uma pessoa pode escolher ser feliz, e é tão fácil sê-lo, então, quando uma pessoa sofre, ou está deprimida, é por sua culpa, e neste sentido responsabilizamos as pessoas pelas suas conquistas e fracassos. É um problema porque se defende, assim, que cada um tem o que merece”, pode ler-se na tese.

A tarefa de Edgar é peculiar. Do outro lado da barricada, há famosos intergalácticos da felicidade como Tal Ben-Shahar, uma sumidade da Psicologia Positiva, que responde às críticas dizendo que há evidência científica a suportar as listas que faz para que qualquer um atinja essa emoção ou sentimento.

À “Notícias Magazine”, o antigo professor da Universidade de Harvard diz que a ação é a base do sucesso. “Realizar coisas que tragam felicidade, por exemplo, passar mais tempo com pessoas de quem gostamos, fazer exercício regularmente, expressar gratidão, continuar a aprender e a crescer, e assim por diante.”

O israelo-americano discursa pelo Mundo em conferências que versam a felicidade como uma doutrina e tem numa lista de sete lições a base do seu missal: aceitar que se erra, simplificar, explorar momentos de prazer, priorizar as relações, cuidar do corpo, ser determinado e ter força de vontade.

Talvez seja o excesso de informação, de dietas da felicidade, que cause tantas incertezas. “Num dia os ovos são os nossos melhores aliados para a saúde, no dia seguinte ‘matam-nos’. Esta abordagem ambígua, incoerente e contraposta, quando aplicada ao tema da felicidade, desconsidera que cada ser humano é único e irrepetível, portador de inúmeros fatores pessoais, sociais, genéticos e outros de suma importância que influenciam o modo e a ‘receita’ para a alcançar. Na verdade, há poucas receitas para a vida que sirvam a todos, porquanto na felicidade a receita é sempre individual, subjetiva e concreta”, defende Marina Prista Guerra, professora da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto.

“Devemos deixar de procurar a felicidade, pensar que a felicidade não é o que nos dizem – pode ser qualquer coisa. A felicidade não deveria ser só o que depende do esforço, da realização pessoal, do nosso desejo. Essa é uma ideia muito redutora”
Edgar Díaz

É esse mesmo problema que Edgar Díaz, também ele um estudioso da Psicologia, encontra e rejeita – embustes narcisistas. “A felicidade é um valor extremamente individualista e egoísta. Há valores maiores como a justiça social, a verdade, a solidariedade – valores que hoje em dia estão em baixa, obscurecidos por esta outra obsessão que é a felicidade”, sublinha, antes de dar a receita: “Devemos deixar de procurar a felicidade, pensar que a felicidade não é o que nos dizem – pode ser qualquer coisa. A felicidade não deveria ser só o que depende do esforço, da realização pessoal, do nosso desejo. Essa é uma ideia muito redutora”.

Sorrir (também) é um negócio

Para os críticos da Psicologia Positiva, a promessa de bem-estar instantâneo gera uma obsessão doentia. De tal modo que se criaram termos como happycondríacos, ou hipocondríacos emocionais, para designar aqueles que buscam a felicidade como a maior realização das suas vidas, recorrendo a tudo o que a respetiva indústria tem à venda: livros, aplicações, terapias, medicamentos, serviços de coaching. Em última análise, este consumo transforma a felicidade num produto e quem a busca num mero cliente.

“Nas redes sociais manifesta-se muito esta obrigação de ser feliz, de nos mostrarmos sempre positivos, alegres, como se nada nos indignasse, como se não nos pudéssemos queixar. Quem não o faz parece uma pessoa a quem a vida corre mal, fracassada, que não teve êxito porque não se cuidou”, conclui o docente espanhol.

Ao nível empresarial, tem havido também maior promoção e até estratégias de recrutamento que ligam a felicidade a uma maior produtividade. Edgar Díaz não podia discordar mais. “Dizem aos trabalhadores que precisam de técnicas de gestão emocional para viver melhor no meio deste mundo precário. Introduz-se a felicidade como uma forma de manipular os trabalhadores, para que sejam mais complacentes, manipuláveis e aceitem mais as condições precárias, com salários mais baixos.”

“Nas redes sociais manifesta-se muito esta obrigação de ser feliz, de nos mostrarmos sempre positivos, alegres, como se nada nos indignasse, como se não nos pudéssemos queixar. Quem não o faz parece uma pessoa a quem a vida corre mal, fracassada, que não teve êxito porque não se cuidou”
Edgar Díaz

Por contraponto à precariedade, para muitos, a felicidade suprema seria mesmo ganhar o Euromilhões. Impõe-se a pergunta: será verdade que o dinheiro não traz felicidade? “A quantidade de dinheiro que uma pessoa tem permite-lhe ter uma vida mais confortável, viver num lugar mais seguro, ter mais facilidades sociais e acesso à saúde, menos preocupações e mais tempo de lazer. A questão é que se demonstrou que é falso que o dinheiro não traga felicidade, mas estes especialistas dizem que as circunstâncias não têm nada a ver com a felicidade e que tudo se trata de emoções”, contesta Edgar Cabanas Díaz.

Uma obrigação do Estado

A maior parte dos indicadores de felicidade relaciona-se com o bem-estar proporcionado pelo desenvolvimento. A felicidade está presente nos documentos mais importantes de países como os EUA onde, na Declaração de Independência do século XVIII, se refere “o direito dos cidadãos à vida, à liberdade e à busca da felicidade”.

É hoje vulgar este tema surgir nas constituições nacionais. A portuguesa diz, na secção Princípios fundamentais, Artigo 9.º, que “são tarefas fundamentais do Estado”, entre outras, na alínea d, “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais”.

O relatório de 2018 da OCDE revela que, numa lista de 156 países, Portugal ocupa o lugar 66 no ranking da felicidade. Um nível bastante baixo quando comparado com os pares da União Europeia. Para José Luís Pais Ribeiro, professor da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto, o exemplo do Butão, pequeno país dos Himalaias que criou o conceito de Felicidade Interna Bruta, é paradigmático da importância que o bem-estar tem na atualidade e nas políticas que orientam o governo de uma nação.

O investigador considera que este bem-estar não pode ser acionado como uma espécie de interruptor no cérebro. “A mente funciona de modo integrado com todos os órgãos e sistemas que compõem o ser humano. Esta é a ideia que adotamos, mas há modelos e teorias que apontam para a genética ou para a economia como elementos centrais da felicidade”, acrescenta.

Sem prazo de validade

Se é algo à mera disposição, dependente da vontade e menos das circunstâncias, então que dure para sempre, como nos finais das histórias para crianças.

“A busca pela felicidade é uma jornada para toda a vida. Podemos encontrar sempre mais felicidade e, portanto, a busca deve terminar quando a vida acabar. O que os estudantes e os meus ouvintes procuram são diretrizes reais que possam ajudá-los a levar uma vida mais feliz e gratificante. Eu deixo muito claro que a felicidade não é sobre sorrir e ser alegre o tempo todo. Mesmo para pessoas muito felizes, experiências dolorosas ainda são parte inevitável de estar vivo”, explica Tal Ben-Shahar.

Os braços protetores, o pão com manteiga, ouvir “adoro-te”, a cura, são objetivos dos nove e dos 90 anos. E não deixa de ser curioso que a Organização Mundial de Saúde tenha definido a saúde, no pós-guerra, em 1948, como uma condição de bem-estar que não depende apenas da ausência de doenças.

“A felicidade não tem data de validade se a enquadrarmos, por exemplo, no ciclo vital. Há pessoas novas que são felizes e de avançada idade que também o são. Por outras palavras, não há uma idade para ser feliz nem uma idade para deixar de o ser. Apesar de poder haver um estado de felicidade latente, haverá provavelmente muitos momentos em que a pessoa poderá não se sentir feliz nas suas manifestações”, reflete a investigadora Marina Prista Guerra. Em muitos outros, espera-se que sejam a maior parte, haverá.