
A Biblioteca de São Lázaro, em Arroios, Lisboa, espaço caro ao historiador, serviu de cenário à entrevista, combinada há semanas e adiada sucessivamente em respeito pelo embargo decretado pelo partido, e à sessão fotográfica. Foi às dez da manhã de terça-feira passada, apenas meia dúzia de horas depois de a Assembleia do Livre encerrar, e após dois meses que abalaram o partido de que é um dos fundadores.
Rui Tavares chegou visivelmente cansado, mas satisfeito com a resolução final, que seria divulgada à hora de almoço. Quase três horas de conversa lenta, com uma banda sonora inusual – o burburinho das crianças brincando no jardim contiguo à biblioteca -, que levaria o político a confessar as surpresas da paternidade tardia, registo intimista que é raro nele.
Esta semana, fechando uma crise, a Assembleia do Livre declarou que Joacine Katar Moreira cumpre “escrupulosamente” uma série de princípios ou estará a prescindir da confiança política que lhe foi depositada. É um ultimato.
A resolução, da qual eu e os meus camaradas presentes na sala nos sentimos muito orgulhosos, é um exercício de encontros e de compromissos. O esforço em ser equilibrado, rigoroso, construtivo, foi muito grande, juntou gente que, se calhar, queria tomar posições mais drásticas, gente que, se calhar, tinha uma leitura mais leniente do que se passou. No documento, aprovado por unanimidade, faz-se uma leitura política e essa leitura diz em que é que o partido se revê, o que lamenta e o que espera ver acontecer, de acordo com os seus valores, princípios e ideais.
O que levou à Assembleia?
Sem estar a revelar procedimentos, insisti sobretudo em que o partido não podia fazer de conta que aquilo que preocupava toda a gente não nos preocupava. Pedi aos meus camaradas: “Pensem no que o Livre faria”. Ou seja, sugeri que os membros deveriam perguntar-se o que faria o partido com que sonhámos e que fundámos, o partido que não queremos arbitrário nem autoritário, mas que desejamos consistente e sério.
Joacine Katar Moreira estava presente?
Na parte inicial, esteve presente, assim como a Direção do partido. Depois, saíram ambas as partes e ficaram só os membros da Assembleia a deliberar e alguns membros do Conselho de Jurisdição como observadores.
“Não serei candidato de nenhum outro partido. É aqui que estou e quero estar”
A resolução significa o resgatar do Livre de Rui Tavares?
Eu é que sou do Livre, e não ao contrário. Este Livre é o partido que é de sempre e é de todos. Se não for o de sempre, não é de todos. E se não for de todos não é o Livre. É um partido muito maior do que uma pessoa e do qual, por algum motivo, recusei ser o membro número um – sou o membro cento e qualquer coisa, o que me enche de orgulho. E não sou “o” fundador, como por vezes aparece na imprensa, mas um dos fundadores de um partido de esquerda, europeísta, verde, cosmopolita, libertário, de um partido não isento de problemas, mas que os resolve à sua moda: sem arbitrariedades nem autoritarismos, sem recorrer, ao contrário de outros, a uma via disciplinadora, autoritária e hierárquica, mas também sem enterrar a cabeça na areia.
A resolução critica duramente a “pessoalização da mensagem política”. Joacine Katar Moreira, a encarnar a ultrapessoalização de uma agenda identitária, faz sentido num partido que não tem na génese o personalismo?
Se há algo que o Livre não é, é um partido identitário. Tem de resto como primeiro princípio, consignado na sua Carta, documento imutável, o universalismo, marca importante da sua matriz ideológica.
A verdade é que hoje sabe-se mais de Joacine Katar Moreira do que das propostas do Livre.
O partido sempre defendeu que devem privilegiar-se os representados e o trabalho sobre o conteúdo político, centrado nos problemas da pessoa para quem trabalhamos, por oposição a um trabalho mais centrado na pessoa do representante.
Do que tem visto, Joacine Katar Moreira tem condições para representar todos os que votaram nela?
Essa é a promessa feita durante a campanha eleitoral – a de representar a todos. Essa é a expectativa exigente que todos, membros, apoiantes e eleitores votantes do Livre têm. Essa expectativa deve ser cumprida. Do lado do partido, há condições para que este mandato seja desempenhado com a mais alta qualidade que os nossos membros e apoiantes desejam e os nossos concidadãos merecem, respeitando a autonomia do mandato parlamentar. Agora, concluído o processo de reflexão, é altura de fazermos trabalhar as soluções.

Como é que um partido sem disciplina de voto certifica que a deputada não funciona como independente não declarada sempre que assim entender?
Como membro dirigente e representante eleita do Livre, Joacine Katar Moreira não foi eleita como independente. Agora, a liberdade de exercício de mandato parlamentar está na Constituição. No Livre sempre houve e haverá liberdade de voto para os deputados, acompanhada de duas regras de bom senso: aviso antes de se efetuar voto contrário ao património programático do partido e, em caso de dúvidas, que se pergunte primeiro e vote depois. O que já se deveria saber, mas se reforça com este caso, é que é também imprescindível ter disponibilidade para esclarecer o mais depressa possível qualquer votação com a Direção do partido, de forma a que o partido possa depois responder adequadamente a questionamentos ou críticas que venham dos cidadãos, da imprensa ou de outros partidos – o que hoje em dia, com as redes sociais, acontece num fósforo. O problema aqui não foi a liberdade no exercício do mandato nem a diferença de voto, mas um crescendo de declarações e comunicados de que resultaria um problema, problema que o partido assumiu e identificou.
A deputada afirmou-se vítima de um golpe. Como reagiu à declaração?
Compenetrado da enorme responsabilidade que tínhamos à nossa frente. O funcionamento normal de um partido como o Livre deve ser defendido, e os órgãos têm uma legitimidade democrática inquestionável. No partido age-se com lisura e enorme respeito pelos procedimentos. O sentido da responsabilidade levou-nos a procurar soluções de consenso e unanimidade. E foi possível porque trabalhamos em princípios basilares. São de facto declarações gravosas para a honra e dignidade do partido, dos seus membros e dos seus órgãos, mas nunca fiquei excessivamente preocupado.
E preocupa-o a possibilidade de o partido poder ser tomado de assalto?
Já houve tentativas no passado. Mas, enquanto formos fiéis aos valores da colegialidade, da lealdade, da fraternidade internas, o Livre será o Livre que é de sempre e que é de todos. O partido pode sobreviver a qualquer individualidade, à saída de qualquer pessoa, não precisa de ser o partido de x ou de y. Porém, no dia em que o Livre abandonar os seus valores, então não é de sempre, nem de todos, nem Livre. Isto não é o fim do Livre, pode até ser o princípio.
A verdade é que foi com Joacine Katar Moreira que o partido conseguiu eleger o primeiro deputado. E, no final de uma campanha dura, afirmou-se usada e descartada.
Isso jamais aconteceria, não usamos e não descartamos pessoas. Joacine participou, e participa ainda, num partido e isso é uma responsabilidade, mas também motivo de orgulho e alegria. Porque permite fazer coisas em conjunto, o que é uma boa aprendizagem. O partido, dentro da colegialidade, tem muito espaço para a individualidade. No Livre, uma pessoa será sempre um fim em si mesma.

A resolução faz também uma leitura ética. A Assembleia acusa a deputada e o seu gabinete de deslealdade e de faltar à verdade. Foi ou não festejada a subvenção?
No conjunto dos episódios, não sendo das coisas mais importantes é a que mais confusão me fez, porque foi exatamente o contrário. Havia indicações da Direção para que a subvenção não fosse festejada, e essas indicações foram cumpridas. E Joacine ouviu-as, porque estava na sala onde foram contados os votos e onde se evitou que houvesse comemoração da subvenção, por uma razão simples: para que as pessoas na sala grande ao lado não se enganassem pensando que tínhamos chegado à Assembleia da República, o que era muito mais importante, mas ainda estava em dúvida. Tivesse havido comemoração da subvenção pelo partido e não teria mal algum. Mas não houve.
Alguém que afirma algo que sabe que não é verdade continua a ser confiável para si?
Uma representação do Livre tem de ser feita em nome dos valores do partido – não só das propostas ideológicas ou dos valores gerais ou abstratos, mas do que está no código de ética. A lealdade interna e o zelo em relação à verdade é tudo o que podemos fazer. O que venha a ser feito à margem desses valores significa a escolha individual da própria pessoa, que assim prescinde da confiança que nela foi depositada. Disto temos todos consciência no Livre.
A deputada acusou a Direção de a querer ensinar a ser política.
Eu aprendo muito com os meus camaradas. Não há característica mais importante para quem queira fazer política do que saber que todos os dias se aprende com os outros a fazer política.
Pode dizer-se que Joacine Katar Moreira está a passar pelo que o Rui passou no Bloco de Esquerda com Francisco Louça?
Não tem nada a ver. Fui candidato independente pelo Bloco de Esquerda, com respeito, esperava eu, por essa independência. Durante os cerca de dois anos de grupo parlamentar do Bloco de Esquerda no Parlamento Europeu, dei sempre informação prévia ao partido de qualquer voto dissonante. Até para dar bolsas de estudos com dinheiro do meu próprio bolso perguntei antes à Direção do Bloco de Esquerda, procurando não criar embaraços. Houve divergências políticas em relação a uma moção de censura que o Bloco de Esquerda apresentou, referi-as numa crónica, que me vinculava unicamente, conforme o previsto no meu compromisso com o Bloco de Esquerda. Surgiu, depois, o episódio em que fui atingido na minha dignidade profissional, pelo que pedi uma retratação, que não veio, criando uma situação inaceitável para qualquer pessoa. Fiz nessa altura uma avaliação, tenho-a revisitado em consciência muitas vezes e de todas as vezes não tive outra resposta na minha consciência senão a de que tendo sido difamado sem aviso nem pedido de desculpa, não poderia continuar. Repito: era independente e havia compromisso de respeito por essa independência. Isto passou-se há oito anos. Entretanto, os dirigentes do Bloco de Esquerda mudaram, o Livre respeita o Bloco de Esquerda, os partidos partilham muitas lutas e não esqueço: quando a extrema-direita tentou invadir a sede do Livre, os camaradas do Bloco de Esquerda, e digo-o com emoção, foram os primeiros a visitar-nos para saber se estava tudo bem. No Livre ninguém se esquece deste gesto.
“Estivemos e estaremos na primeira linha contra os ataques de ódio que a Joacine tem sofrido”
O incidente do pedido de segurança para proteger a deputada dos jornalistas, nos corredores da Assembleia da República, foi o mais grave? O que diria se fosse uma deputada de direita a fazê-lo?
Faria críticas muito duras. Sim, foi a situação mais difícil, tendo em conta o valor da liberdade de imprensa e, também, do respeito institucional devido à Assembleia da República. Não esperávamos, no Livre, que tal pudesse acontecer. E, apesar de crer que não foi intencional, lamento que não tenha havido um pedido de desculpas imediato. A resolução unânime da Assembleia do partido é clara: em relação à imprensa, tem de haver cordialidade, respeito, acessibilidade, prestação de contas. O mesmo em relação aos concidadãos, ao partido e aos seus órgãos. Urbanidade, cordialidade, lealdade. Esses são os valores e não estamos a inventá-los. Estamos a relembrá-los, porque já estavam no Código de Ética aceite por todos os membros, e pelos candidatos às nossas primárias. E são condição sine qua non para se exercer o mandato em nome do Livre. O partido não pode nem deve mandar no comportamento individual de cada um, mas deve dizer, e ser muito claro, em relação ao que se pode fazer em seu nome.
Estava entre os que queriam uma posição mais drástica? Esperava da Comissão de Ética uma sanção disciplinar?
Não.
Não haverá uma segunda oportunidade para a deputada?
Os valores estão claros. Valores a que se obrigaram os candidatos concorrentes às primárias.

Primárias. Há quem responsabilize o método pelo que aconteceu.
No Livre somos humildes. Aceitamos lições vindas de comentadores que defenderam José Sócrates para além do prazo de validade. De quem, por exemplo, continuou a dizer que Ricardo Robles não fazia especulação quando pouco antes tinha considerado aquele tipo de atos especulação pura. Aceitamos lições vindas de qualquer partido. Mas, apesar de as primárias nunca terem sido apresentadas pelo Livre como método infalível de seleção – apenas um método mais aberto e em nosso entender melhor -, não venham dizer-nos que os outros partidos, cujos candidatos escolhidos pelas direções estão obrigados a uma hierarquia férrea partidária, só fazem escolhas fidedignas e respeitadoras do Estado de Direito. E também não vamos fingir que esses partidos não tiveram conflitos muito sérios com a imprensa. As primárias trouxeram ao Livre muitos concidadãos com experiência e trajetória muito importantes e esse é um valor enorme. E que fique claro: as situações que descrevi atrás não são comparáveis às de Joacine Katar Moreira no Livre. De resto, há algo que do ponto de vista moral, político e humano tem de ser dito: estivemos e estaremos sempre na primeira linha da solidariedade contra os ataques de ódio que a Joacine tem sofrido, e são muitos. Nenhum outro político sofreu ataques tão violentos da extrema-direita, situação que terá também influenciado certas posições e atitudes. Sem prejuízo de defender a abertura dos deputados à crítica, que não pode ser confundida com discurso de ódio, é preciso ter isso em mente.
Imaginando que o Livre ganhava as eleições e era chamado a formar governo, quem apresentaria para primeiro-ministro?
Essa é um dos aspetos a pensar em futuras primárias. O Livre não teve uma escolha especifica para ser candidata ou candidato ao cargo de primeiro-ministro.
E também não tem porta-vozes.
Outra questão a pensar, e que está prevista nos estatutos do partido. A tradição nos partidos verdes europeus como o nosso é ter dois porta-vozes, um homem e uma mulher. Pessoalmente, gosto dessa tradição.
O partido não tem um líder. O rosto do Livre é o seu.
Apesar de ser minha vontade que este partido seja um partido partilhado, e de fazer muito por isso. Esforço que os meus camaradas e mesmo os jornalistas conhecem bem. Até se tornar uma quase obsessão. E há então esse desfasamento entre os que me veem como rosto do Livre e o meu desejo de distribuir jogo. Agora que o partido está a crescer e conseguimos atingir o objetivo pelo qual tanto lutamos – a representação parlamentar -, é bom que todas as personalidades do partido, relevantíssimas na ecologia, no europeísmo, nos direitos humanos, na justiça social, apareçam com outra frequência.
Ainda assim, é acusado de reivindicar protagonismo.
Para fazer o Livre, rejeitei alguns dos cargos mais desejados da política portuguesa. Até 2014, antes e depois do Livre, é público que rejeitei três vezes convites do PS para continuar no Parlamento Europeu. Antes das eleições de 2019, em contactos ao mais alto nível, o PS quis perguntar-me se o Livre estaria interessado em ter um independente nas listas do PS às europeias, ficando mais ou menos claro em quem estariam a pensar. Devo dizer que nem comuniquei aos órgãos do partido, porque é evidente que não aceitaria eu, nem o partido, essa possibilidade. Não é desejo do partido vir a ter independentes em listas alheias. Quanto a mim, não, não serei candidato de nenhum outro partido a não ser do Livre. É aqui que estou e quero estar.

O que gostaria de ser no Livre?
Eu, o militante cento e não sei quantos? Não quero ser mais nem menos do que os outros. Jamais pedirei desculpas por apresentar propostas e quero ter a possibilidade de participar nos processos. Em primárias, se achar que sou o melhor para determinado lugar. O Livre vai durar muito, vai ser o partido português mais interessante do século XXI e terei muitas oportunidades de participar.
Está em cima da mesa a possibilidade de o Orçamento do Estado ser aprovado com os votos do PS, do PSD/Madeira, do PAN e do Livre. Que tem a dizer sobre este cenário?
Numa avaliação pessoal, não antevejo cenário algum em que isso possa acontecer. Não vejo que os nossos objetivos orçamentais de justiça social e ambiental possam ser assegurados e mantidos nessa ideia peregrina. Seria também o pior erro de António Costa e de Centeno. Um orçamento aprovado dessa maneira seria sempre muito frágil e poucas garantias teria de ser aprovado no ano seguinte. O orçamento do queijo limiano destruiu a governação de António Guterres. Um “orçamento da poncha” – mesmo que eu goste muito da Madeira, até tenho lá família, e goste de poncha também – faria o mesmo à atual governação.
Acredita que é possível ter um orçamento aprovado pela esquerda?
Tenho António Costa na conta de um político experiente. Se não estiver genuinamente interessado num orçamento aprovado à esquerda, deveria estar pelo menos politicamente interessado num orçamento aprovado à esquerda. O país votou à esquerda e quer uma governação de esquerda. Precisamos de um orçamento estratégico no que diz respeito à diminuição do peso da dívida, mas igualmente estratégico na defesa do investimento e dos serviços públicos. Não se pode fazer tudo isso ao mesmo tempo na máxima intensidade, mas, neste momento, só há uma maneira de equilibrar as tensões que um orçamento necessariamente tem: à esquerda. A esquerda teve mais de 60% dos votos nas últimas eleições, nunca teve tantos, e tem 140 deputados. O eleitorado foi claro. Um falhanço em aprovar um orçamento à esquerda já no primeiro ano significaria regressarmos àquilo a que Guterres chamou de pântano.
Uma das pretensões do Livre é o crescimento do salário mínimo até 900 euros. Acha que o PS pode aceitar?
É a única maneira de acompanhar o salário mínimo espanhol e impedir uma fratura na economia da Península Ibérica, ou seja, uma economia para alto valor acrescentado, a de Espanha, e uma economia de baixos salários, a nossa. Se deixamos que essa diferença se cave, Portugal não terá futuro porque não segurará a sua população mais qualificada. Mas vamos além do salário mínimo: é preciso um novo pacto verde desejavelmente negociado no quadro da presidência portuguesa da União Europeia, pacto que significa gastar, à escala europeia, cerca de 2% do PIB na transição energética, renovação das infraestruturas e empregos na economia verde. Em Portugal não podemos gastar 2% do PIB, mas temos de ver até onde podemos chegar. Igualmente importante é desbloquear a diretiva anti-discriminação dos trabalhadores europeus, uma revolução nos direitos laborais bloqueada há 11 anos na União Europeia, defendendo para nós um papel pioneiro e protagonista. Matérias que não fazem parte da negociação orçamental, mas sobre as quais queremos ver passos de boa vontade. Numa Assembleia da República que nunca esteve tão à esquerda, a urgência planetária e combate as alterações climáticas exigem um orçamento de justiça social e ambiental.
Na votação do orçamento defende a disciplina de voto?
É a Constituição da República Portuguesa que determina a liberdade de exercício de mandato parlamentar, não sou eu. O que é natural um deputado e dirigente de um partido fazer é, evidentemente, concertar as suas posições com a direção partidária. Mas no Livre é preciso ir ainda mais longe, devendo os órgãos aprofundar tanto mais a auscultação dos membros e apoiantes quanto maior é a responsabilidade da decisão em causa, como por exemplo na aprovação ou rejeição de orçamentos de estado ou de moções de censura. É aquilo a que chamamos de democracia deliberativa, e funciona. Depois, cada um toma as suas decisões em consciência, tendo em conta as suas responsabilidades como eleito e até como dirigente do partido.

Uma Assembleia mais à esquerda recebe pela primeira vez um partido de extrema-direita. A subir nas sondagens.
Nunca acreditei que Portugal fosse imune a partidos de extrema-direita. Era uma questão de tempo até aparecer um primeiro líder hábil, que conseguisse capitalizar causas que dão votos – o ódio e o medo dão votos – e temos de saber responder a isso. A extrema-direita na Europa e em Portugal é uma vigarice. São pessoas muitas vezes bem-falantes, que estão a fazer o que os vigaristas fazem, ou seja, a dizer-nos aquilo que alguns de nós querem ouvir para roubar aquilo que valorizamos – o Estado de Direto e a democracia. O meu pai só viu a democracia já tinha 45 anos. Diabos me levem se individualmente não lutarei até à última das minhas forças para impedir que chegue aí algum bem-falante que nos faça perder aquilo que já nos fizeram perder antes. Ainda não temos mais dias de democracia do que de ditadura. E isso assombra-me. No entanto, em 2022, vamos ter mais dias de democracia do que de ditadura. Devemos comemorar esse facto, ter orgulho no que conquistámos e utilizar esse momento para pensar o que queremos fazer com esta democracia. Essa é a melhor resposta à extrema-direita.
Nestes tempos conturbados, a História tem sido posta de parte. A palavra dos historiadores faz falta?
Faz muita falta e o afastamento deve-se também aos historiadores, que nos anos 1980 e 1990 se enfiaram nos departamentos académicos, considerando simplista a ideia de que havia lições a retirar da História e que esta não se repete. Ora, de 2000 para a frente, percebemos que estávamos errados. Na verdade, os historiadores fazem muita falta ao espaço cívico, somos cruciais nestes momentos. Por que diabo os economistas e os juristas são tão convidados para o espaço público e os historiadores não o são, nomeadamente quando estamos perante a emergência de alguns fenómenos de populismo, nacionalismo e autoritarismo, que não sendo nunca iguais ao passado, partilham em sentido lato características de família? É muito importante que os políticos ouçam os historiadores e é importante que os historiadores se façam ouvir mais.
Foi distinguido nesta semana pela Academia Portuguesa da História. A quem dedica o prémio?
Desde os quatro anos que quis ser historiador, por causa de uma conversa fortuita entre os meus pais que eu ouvi e que me aguçou a curiosidade, apesar de não saber muito bem o que queria dizer essa palavra “historiador”. Fui descobrindo e ainda estou a descobrir. Quando a Academia Portuguesa da História premeia um livro que é, no fundo, a minha tese de doutoramento, fico muito contente. Penso então nos meus pais, e na pessoa que mais importância teve na minha trajetória historiográfica, o professor António Manuel Hespanha, que morreu este ano e que chegou a apresentar este livro e que teria ficado contente ao saber deste prémio. Porque a família de discípulos de Hespanha é longa, em Portugal e no resto do Mundo, e ele gostava de duas coisas nos seus discípulos: que fôssemos rebeldes e imaginativos, como ele próprio era, mas que soubéssemos fazer história da maneira tradicional, indo queimar pestanas para a Torre do Tombo, porque ele tinha também esse lado exigente e de culto ao trabalho. E este livro é o resultado de muitas horas a queimar pestanas na Torre do Tombo. Saber que este seu aluno era um bocado rebelde e um bocadinho imaginativo, ele sabia. Sabê-lo reconhecido por uma instituição mais tradicional como a Academia iria permitir-lhe fazer umas piadas com isso, porque ele não era de grandes elogios em pessoa, mas no fundo deixá-lo-ia descansado.
Há quem o julgue professor universitário. Mas esse casamento nunca se deu.
É uma questão geracional. A minha é a primeira geração de historiadores em que deixa de ser natural entrar-se na docência, mesmo que se revele apetência para isso. É algo que me dá pena porque gosto muito de dar aulas e tenho saudades de dar aulas, mas a carreira de docência universitária está muito fechada há muitos anos.
Aos 45 anos foi pai. Como vive a paternidade tão tardia?
Os filhos chegaram numa altura em que já não os esperava. Estava já conformado com a ideia de que nunca viria a ter filhos, até. O Elias e a Helena, com uma diferença inferior a um ano e meio, chegaram, e eu fiquei ainda mais emocional e afetuoso do que já era ou imaginava vir a ser. Uma das coisas que penso muito é que se eles forem tão tardios a ter filhos como o pai e o pai quiser conhecer netos, estou obrigado a viver até aos 90 anos, vamos a isso! O que dizer sobre os filhos sem ser uma banalidade? Há uma coisa que tenho vindo a descobrir e que é engraçada: vivemos num país em que ter uma criança é um enorme desbloqueador de conversa geral e interclassista, toda a gente mete conversa por causa de uma criança. Toda a gente diz – eu próprio já digo – “que saudades dos primeiros meses”. Até o tipo de aspeto mais duro se derrete ao falar dos filhos no táxi ou no café. Essa experiência social também é muita engraçada. Há depois uma experiência mais difícil mas que é muito gratificante. A minha filhota tem precisado de uma atenção especial do Serviço Nacional de Saúde e da Segurança Social. E podendo as coisas sempre funcionar melhor – o país não é rico, já sabemos -, a verdade é que as coisas funcionam, também graças à muito boa vontade das gentes que lá encontramos. O conhecimento dos profissionais que dão esses cuidados especializados é incrível. É um conhecimento dos livros, mas também das mãos, da prática. Em tudo, desde a intervenção precoce à fisioterapia respiratória, essas pessoas, muitas vezes mal pagas, têm um gosto enorme pelo que fazem. E nós estamos-lhes muito gratos. Acho até que muitas pessoas que estão ideologicamente contra o estado social percebem, quando lá chegam, que precisam muito do Serviço Nacional de Saúde. Serviço Nacional de Saúde e Segurança Social são civilização. É mais civilização do que as pirâmides e as catedrais – e olhem que como historiador adoro monumentos. O Serviço Nacional de Saúde é um monumento à humanidade.

Cronologia da Crise
OUTUBRO
DIA 6 Noite Eleitoral. O Livre obtém 1,09%. Joacine Katar Moreira (JKM) é eleita.
DIA 11 JKM escolhe Rafael Esteves Martins para assessor.
DIA 13 Publicação na “Notícias Magazine” do perfil de JKM, em que Rui Tavares afirma: “Joacine reconhece que há áreas onde tem algumas lacunas, nomeadamente na área do ativismo ambiental e ecológico, mas terá seguramente a ajuda do Carlos Teixeira e do Jorge Pinto”. A deputada não gosta e fá-lo sentir.
DIA 25 Tomada de posse da deputada. Rafael Esteves Martins, o assessor, faz do outfit o statement político do dia e dos dias seguintes, ofuscando a própria JKM.
NOVEMBRO
DIA 22 Abstenção num voto de condenação proposto pelo PCP sobre o conflito Israel/Palestina.
DIA 23 Dia cheio e longo. De manhã, a Direção do partido publica um comunicado, exprimindo “preocupação” com o facto de aquela abstenção surgir “em contrassenso com o programa eleitoral do Livre e com o historial de posicionamento do partido nestas matérias”.
À tarde, JKM responde, também em comunicado, justificando a abstenção devido a “dificuldade de comunicação” com a Direção do Livre, da qual diz ser “parte integrante, além de deputada única do partido”. Pedro Nunes Rodrigues, do Grupo de Contacto, desmente JKM. À noite, o Livre celebra o sexto aniversário com um jantar comemorativo. JKM terá estranhado não ser aplaudida à chegada. À margem desse jantar, JKM dá uma entrevista ao Observador, na qual afirma ter sido “eleita sozinha” e se queixa de que, na noite das eleições, a Direção do partido festejara a atribuição da subvenção, em vez de esperar por saber se ela tinha sido eleita.
DIA 24 Assembleia do Livre. À entrada, Joacine diz: “É aqui onde hei de estar, é aqui onde estou, e aqui irei, obviamente, cumprir absolutamente o que me foi mandatado”. Sai mais cedo, acabando por não assistir à aprovação, por unanimidade, de um pedido de parecer ao Conselho Jurisdicional. Rafael Esteves Martins revela publicamente que a Assembleia decidira recorrer ao Conselho de Jurisdição. Decisão que atribui à insistência de Rui Tavares.
DIA 25 Crónica de Rui Tavares na habitual coluna no Público, publicada neste dia sob o título “Carta para perplexos”, e onde o autor escreve: “Quando toda a gente está perplexa não se pode fazer de conta que a perplexidade não existe”.
DIA 26 O site “Noticias ao Minuto” publica declarações de JKM em que esta afirma que “não é descartável”. “Isto é um golpe”, acrescenta. A deputada falha o prazo de entrega do projeto de lei da Nacionalidade (acabaria por ser mais tarde admitido). O assessor Rafael Esteves Martins pede segurança para a deputada, com o objetivo de afastar os jornalistas, nos corredores do Parlamento.
DIA 28 O Conselho de Jurisdição remete o processo para a Comissão de Ética, que nomeia relator Ricardo Sá Fernandes. Não há mais declarações dos envolvidos.
DEZEMBRO
DIA 7 A Comissão de Ética apresenta o relatório à Mesa da Assembleia, que o envia para os membros. O relatório não prevê sanções disciplinares, por considerar que a questão é política e não disciplinar.
DIA 8 Reunião da Assembleia do partido. À chegada, Joacine diz que “não há conflito nenhum”. A redação de uma resolução transita para o dia seguinte.
DIA 9 É conhecido o texto da resolução. No documento, é feito um aviso a JKM – a confiança política do Livre depende do cumprimento escrupuloso de série de princípios fundacionais do partido.