Rui Paixão: o palhaço português que vai voar no Cirque du Soleil

Foto: André Gouveia/Global Imagens

Texto de Sara Dias Oliveira

Passou a tarde a ver filmes de Charles Chaplin, a rir, a comentar, a pensar, a magicar, a sonhar de olhos abertos, a construir a sua próxima personagem. A ser palhaço. No fim de semana anterior, susteve a respiração perante a muralha da China, ali à sua frente, imponente e maravilhosa, ainda tão fresca na memória como um retrato impossível de esquecer.

É uma da tarde em Portugal, nove da noite na China, e Rui Paixão, do outro lado do Mundo, conta o que pode contar. O que anda a fazer para a nova criação do Cirque du Soleil. “Vou aprender a voar para voar por cima do público e cairei a mais de 15 metros de altura para um trampolim. Serei uma personagem cómica, um palhaço”, revela com entusiasmo.

“Ainda não acredito que vou aterrar numa plataforma a 15 metros de altura sem proteção”, ri-se. A sua missão no próximo espetáculo do Cirque du Soleil está traçada. Vai guiar o público com o riso. Agora é tempo de olear a máquina, corpo e mente. É isso que está a fazer neste momento a oito horas de distância de Portugal, numa cidade com 6,3 milhões de habitantes, a menos de uma hora de Xangai e a quatro de Pequim.

O clown contemporâneo, as acrobacias, o universo do arlequim, são o seu ponto de partida, os motivos de inspiração. Tem luz verde para explorar o que achar por bem. Estará em cena o tempo todo e sem dizer uma palavra. “Nada de texto, tudo muito físico”, refere. Fazer rir é a principal missão. E fazer rir os chineses é uma tarefa algo complexa.

“Vou aprender a voar para voar por cima do público e cairei a mais de 15 metros de altura para um trampolim.”

A rua continua a ser a sua casa, o seu laboratório de experimentação, o seu palco de ensaios, e as palhaçadas que vai improvisando não têm arrancado muitas gargalhadas da gente que passa e que tenta surpreender. Vai fingindo que tropeça sem querer, vai fazendo barulhos estranhos com a boca. “É difícil provocar riso aos chineses com o corpo”, confessa. Não desiste, insiste, e alguma coisa terá de acontecer.

No início do ano, quando aterrou em Hangzhou, na China, pisou um outro Mundo, começou uma nova aventura. Cinco de janeiro de 2019 foi o primeiro dia. Aterrar, conhecer a equipa, arranjar casa para ficar, meter os pés ao caminho. Mediram-no dos pés à cabeça, pulsação a pulsação. Entrou num intenso processo de preparação física com um plano individual traçado para alcançar objetivos. “Já sabia que, em termos físicos, seria uma experiência muito intensa, muito completa.” O seu corpo tem de estar no ponto. Atribuíram-lhe uma espécie de “treinador” artístico, um ex-palhaço do Cirque du Soleil que o acompanha nesta etapa de preparação.

Da parte do encenador, ouviu o que queria e que não esquece: “Tu vais ser livre de ter a tua própria personagem e de construíres por tua conta o que quiseres apresentar.” E Rui Paixão, de 23 anos, o único português na nova criação de uma das companhias de circo mais reputadas do Universo, o único palhaço, olhou-se ao espelho e pensou no que fazer para moldar a sua personagem.

“No que já fiz e no que não quero voltar a fazer. Gosto muito da rua e de continuar a explorar a rua.” E anda a libertar o seu palhaço por onde passa, sempre à procura de novas dramaturgias para o clown, também na China.

Foto: DR

No próximo verão, em julho ou agosto, a data ainda não está marcada, entrará em cena num teatro construído à medida. Até lá, os dias são intensos, ensaios atrás de ensaios. Serão cerca de 50 artistas de vários países em palco encarnando meia dúzia de personagens. E são quatro protagonistas: uma chinesa, uma americana, um francês e um português, Rui Paixão, o palhaço que o Cirque du Soleil escolheu num casting feito em Las Vegas em novembro de 2015 para integrar uma nova criação – entre 70 participantes, ficaram cinco, dois americanos, um francês, um italiano e Rui, português.

Depois de ano e meio de espera, a chamada, uma ida ao Canadá, assinatura de contrato, preparação, viagem. Meteu na mala as fotografias dos amigos, em polaroid, tiradas na festa surpresa que lhe fizeram para a despedida; uma máscara de commedia dell’arte de couro feita propositadamente para o seu rosto por Nuno Pino Custódio; e “Caim” de José Saramago.

O teatro que o Cirque du Soleil construiu na China é grande, encaixado numa arquitetura industrial. A companhia explica, no seu site, que se trata de “um teatro de última geração sem precedentes, oferecendo uma experiência imersiva que o público jamais experimentou em outras partes do Mundo”. Rui Paixão já ensaia dentro dele. “É como um estádio de futebol com duas bancadas que se movem pelo espaço. O espetáculo acontece em todo o lado”, sublinha. Um teatro para 1 500 espectadores, com bancadas giratórias para colocar o público no centro de tudo, no olho do furacão.

“[O teatro] É como um estádio de futebol com duas bancadas que se movem pelo espaço. O espetáculo acontece em todo o lado”.

“As histórias são diferentes para as duas bancadas.” O cenário muda conforme a história se desenrola. Os ingredientes são potentes: cenários surreais, 3D, vídeo mapping, muita tecnologia, alçapões para os acrobatas aparecerem e desaparecerem nas paisagens. “X: The Land of Fantasy”, traduzindo para português “X: A Terra da Fantasia”, promete desafiar a gravidade e desorientar os sentidos. Uma experiência imersiva, poesia, uma história contada em duas perspetivas.

Dois lados de uma mesma história, duas culturas que se descobrem uma à outra, dois mundos que se cruzam: o Ocidente e o Oriente, sobretudo o que os une, mais do que o que os separa. É a 45.ª criação original do Cirque du Soleil, um espetáculo residente, que estará em Hanghouz, na China, nos próximos dois anos, que não será apresentado em mais nenhum lado. “É o maior espetáculo do Cirque du Soleil e um dos maiores do Mundo com novas tecnologias ao serviço da arte. Um espetáculo único e especial.”

Nas ruas de Hangzhou, onde vai trabalhando e testando a sua próxima personagem.

Fazer parte do Cirque du Soleil é uma honra, uma aventura que lhe preenche as medidas. A companhia que nasceu em 1984 com 20 artistas de rua e com a ambiciosa ideia de reinventar o circo, de causar impacto nas pessoas, nas comunidades e no planeta com duas importantes ferramentas – criatividade e arte -, tornou-se líder do entretenimento ao vivo. Tem um currículo de peso: mais de 190 milhões de espectadores em criações apresentadas em cerca de 450 palcos de 60 países. Trabalha com cerca de quatro mil funcionários, incluindo 1 400 artistas de 50 países. Mantém a sede em Montreal, no Canadá, e anda por todo o Mundo, habitualmente com casas cheias.

Menino-máquina, homem-animal

Na escola, Rui Paixão era o miúdo gordo e baixinho que se tornou, por livre vontade, o palhaço da turma porque percebeu que o riso era a forma de se integrar, de agradar. Que não dormia na noite antes de ir ao circo. Era a criança sem jeito para o desporto e que jogou futebol, que experimentou todas as posições até guarda-redes suplente.

Era o basquetebolista que entrava quase no final do jogo para fazer rir a plateia. Até entrar no teatro amador, até perceber o que queria, até estudar na Academia Contemporânea do Espectáculo (ACE), no Porto, até criar a sua personagem, até perceber o que é isso de liberdade e de transgressão na pele de palhaço. Até entender que queria mundo. Muito mundo.

Em maio do ano passado, mostrava de peito feito como uma relação pode apodrecer em “Hanno”, performance que criou para o Imaginarius – Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira. A seu lado, a bailarina Catarina Marques e o público, no rossio da cidade, em chão de paralelos, quase em cima desse casal que discute dentro do carro, sai, bate a porta, ama-se, odeia-se, chora, ri, berra. E Rui agiganta-se naquele corpo como um animal que quer mostrar toda a sua força e natureza. Descarga atrás de descarga numa batalha de amor.

Rui, o palhaço, nasceu aí, nas ruas de Santa Maria da Feira, primeiro com o projeto Cão à Chuva, inspirado nos vagabundos que habitam o álbum “Rain Dogs”, de Tom Waits. O palhaço pobre e sujo, roupas rasgadas e botas rotas, cabelo verde e sem nariz vermelho, que queria fazer rir e que viu a luz do dia no Imaginarius de 2015. O desleixo social condensado numa metáfora. Foi o artista revelação desse Imaginarius e o artista emergente do Circada – Festival de Circo de Sevilha, nesse mesmo ano.

Em 2016, no cineteatro de Santa Maria da Feira, apresentava “A Velha”, inspirado num conto do poeta russo Daniil Harms. Sozinho em palco, um exercício de improvisação, um corpo e mil personagens, sem palavras mas com sons que lhe saem de dentro, interpretou um pintor em crise criativa que se ia transformando na sua própria obra.

Nesse ano, criou também Pozzo, o homem que come porcos, um ditador que come o último animal à face da terra, uma bofetada na cara, uma metáfora para os que comem tudo e não deixam nada. E deu também vida a Vincent, embalado pela história do menino selvagem alimentado por lobos até ser resgatado para o mundo dos homens. Construiu Vincent como um ser que se transforma numa máquina para confrontar a vida artificial com o estado primitivo.

Antes de partir para a China, andou por festivais e apresentou os seus espetáculos em várias partes da Europa. Agora, e durante dois anos, está na China, no elenco do Cirque du Soleil. Depois, logo se verá. “Tenho a sorte de cá estar”, diz. Mas, volta e meia, belisca-se. “Será que isto está mesmo a acontecer?” Está. Não é um sonho. Tudo acontece de olhos abertos num voo que constrói dia após dia. Detalhe a detalhe, num processo que tanto lhe suga a alma como lhe preenche cada poro do corpo. Tal como quer. Tal como é.