Ricardo Araújo Pereira: o campeão voltou

Texto de Kátia Catulo | Fotos de Gonçalo Villaverde/Global Imagens

Nem cinco minutos faltam para o regresso da Mixórdia de Temáticas e……nada. “Será que vamos ter texto?” Vasco Palmeirim faz a pergunta meio a brincar, mas há uma ponta de medo quase impercetível no finalzinho da voz. Seria uma estreia desastrosa para a 5.ª série da rubrica radiofónica de Ricardo Araújo Pereira nas Manhãs da Comercial. O que vale é que toda a gente no estúdio sabe como a história vai acabar.

O portátil do Ricardo bloqueou e os e-mails, enviados para os colegas com o guião, não andam nem para trás nem para adiante. “Como sempre!” – desabafa Vasco. Com interregnos de dois ou três meses, a Mixórdia acontece todos os dias úteis desde 2012 e o humorista nunca mudou de computador. A máquina dele é a mesma e dá problemas o tempo todo. É um clássico, ou melhor, faz parte da rotina e é preciso saber conviver com isso.

“Malta, já temos texto!” – avisa, aliviado, Pedro Ribeiro e, logo a seguir, repara que há uma cadeira que continua vazia. “E o Markl?” Um homem nem consegue sossegar, sai de um sufoco e entra logo noutro. “Ainda não chegou – responde Vasco -, diz que vem a correr. Era uma chapada na cara…”

O relógio de parede mostra que são 8.15 horas quando Nuno Markl entra no estúdio, mas não veio a correr. Falta-lhe aquele arfar esbaforido típico de quem deu tudo por tudo para compensar o atraso. Não é que ele tenha uma intervenção crucial no primeiro sketch radiofónico que marca o regresso do campeão – “champion”, como era chamado Ricardo Araújo Pereira nos jingles promocionais deste retorno às Manhãs da Comercial, ocorrido na passada segunda-feira, 14.

Markl tem uma única deixa: “A sério?!”. Mas, atenção, não é um “a sério?!” dito à toa, reconhecem os colegas no final. É preciso vocação e talento para soltar um “a sério?!” credível o suficiente para levar todos os ouvintes a acreditar que foi genuinamente apanhado de surpresa quando Ricardo confessa ter a “cloud toda cheia”.

O objetivo foi cumprido e está feito mais um episódio do Mixórdia – o primeiro da série Alves Fernandes, um homem que, sem mais nem menos, fica sem rede quando fala cara a cara com as pessoas. Parece que é uma doença, diagnosticada pelo médico e tudo. Mas também pode ter sido um iogurte quase fora do prazo que ele comeu e que não lhe caiu muito bem. Alguma coisa foi, mas, para quem não ouviu o programa, o melhor mesmo é ir ao site da Rádio Comercial, pois a cena relatada em segunda mão perde a piada toda.

A aventura de Alves Fernandes dura cerca de dois minutos, nem tanto. É tão rápido que uma pessoa até pergunta: “Já acabou?”. Essa pessoa é Vera Fernandes, ainda meio zonza com o despique acelerado entre Ricardo e Vasco. Nuno também está visivelmente impressionado com o desempenho do dueto e fica na dúvida que tivesse saído assim tão espontâneo logo à primeira: “Isto não foi ensaiado?”. Não, não foi. Isto, aliás e a acreditar em Ricardo Araújo Pereira, não tem nada que saber: “Basicamente, é repetir palavras e enervar o Vasco”.

Ainda assim, há sempre algo que pode correr mal. Nunca se sabe e é esse o risco que deixa Pedro Ribeiro um tanto ansioso: “Do que eu tenho medo é que seja eu a meter o pé na poça e a estragar tudo”. Disparate! Preocupações sem qualquer sentido na ótica de Ricardo. Afinal, a “grande vantagem da Mixórdia é que ninguém percebe quando a coisa corre mal”.

A “grande vantagem da Mixórdia é que ninguém percebe quando a coisa corre mal”

Até este preciso momento, tudo o que aqui se relata acontece com os microfones desligados, entre músicas, publicidade e blocos noticiosos. Mas, com as luzes dos micros acesas ou apagadas, a diferença é mínima. Se calhar, nos intervalos, a língua solta-se um pouco mais e descai para o lado do politicamente incorreto. Mas os cinco estão sempre na galhofa. Piadas atrás de piadas, o tempo todo.

E, sim, é Ricardo – sempre de calções e t-shirt nas quase quatro horas que esteve nos estúdios – que bombardeia uma atrás da outra. Ou são prostitutas sadicamente atropeladas no meio da estrada ou tutoriais do YouTube com exercícios físicos que “lixaram” os ombros dele ou cantorias inesperadas a imitar o Zé Mário Branco a cantar “Eu vi este povo a lutar(i)” com sotaque alentejano. E outras parvoíces a preencher uma manhã que começou muito antes das galinhas do campo soltarem o primeiro cocorocó.

Ricardo chegou por volta das 6.30 horas. Foi à procura de sossego para escrever o primeiro texto da 5.ª temporada da Mixórdia. A partir de agora, e com o regresso às Manhãs da Comercial, esta é a sua rotina. “É só sofrimento…”, admite. E não é difícil ficar solidário com a dor dele. O rapaz já faz isso há seis anos e continua “até à última” a tentar encontrar um tema para, logo depois, começar a escrever e perceber então “que não se vai a lado nenhum”.

E, ainda assim, ter de ir até ao fim. Resumindo, é isso. “Desilusão e sofrimento, uma vida repleta disto”, conta ele, sem desmanchar a pose de homem martirizado pela cruz que carrega diariamente. Mas, o regresso do humorista não fica por aí. Também está de volta à TVI, onde estreou “Gente que não sabe estar”, suplemento dominical do “Jornal das 8”, que se estenderá até ao final de 2019 e que será diário durante a campanha para as eleições legislativas – campo fértil de trabalho.

Voltando às Manhãs da Comercial, passa pouco das 8.30 horas e, a esta altura, estão todos com as pilhas 100% carregadas. Neste capítulo dos humores matinais, há dois tipos de pessoas. Aquelas que acordam a amaldiçoar o mundo e as que despertam bem-dispostas e de bem com a vida. Há mais categorias, naturalmente, mas, para este caso, o mais simples é reduzir toda a complexidade humana a estas duas espécies.

Se bem que, do reino animal ao vegetal, qualquer que seja a espécie, todos têm um ritmo próprio para ligar e aquecer os motores. Isto de acordar alegre e contente logo pela manhã não é para todos. Nem sequer para Ricardo, que só sente vontade de “falecer” assim que o despertador toca. Quem é que não o entende? Lá fora está um frio de congelar o cérebro, é um castigo ter de arrancar os miúdos da cama, banhos, pequeno-almoço, birras no carro, metro ou autocarro apinhados, insultos no trânsito e por aí fora. Ninguém merece e não há tempo ou sequer disposição para parvoíces.

Só quatro rapazes e uma rapariga não têm hipótese. Pedro Ribeiro, Ricardo Araújo Pereira, Nuno Markl, Vasco Palmeirim e Vera Fernandes, se sofrem de maus humores matinais, livram-se deles algures entre a casa e os estúdios da Rádio Comercial, em Lisboa. “Devo reconhecer: isto custa e tal, é todos os dias e tal, mas é divertido vir ‘praqui’ porque é uma espécie de galhofa parva.”

E uma boa dose de parvoíce é o que toda a gente precisa logo ao acordar. Risadas junto à máquina de café, piadinhas entre um e-mail enviado e outro recebido, galhofas cúmplices entre colegas. Pode-se até nem se dar pela parvoíce ao final de uma jornada cheia de reuniões, sandes despachadas ao almoço, mas, sem essa dose diária do programa de maior sucesso da rádio em Portugal, ninguém sobrevive inteiro a um dia do princípio ao fim.