A apneia obstrutiva do sono é uma doença com sintomas audíveis e visíveis que pode afetar o comportamento, o desempenho escolar e o desenvolvimento das crianças.
Tinha um ano e meio quando começou a ressonar como gente grande. O sono era muito agitado e as otites cada vez mais frequentes. Por causa delas também começou a ouvir mal (menos 20%) e isso levou-a a ficar atrasada na fala. “Havia sons que não ouvia. Por isso, não os conseguia reproduzir”, conta a mãe, Susana Rocha.
Esteve na creche dos dois aos três anos e as educadoras também notaram o problema e recomendaram que Beatriz fizesse terapia da fala. De seguida foi para o jardim-de-infância público. Repetiu-se a recomendação.
“Embora nunca tivesse sido posta de lado pelos amiguinhos, todos tinham dificuldade em perceber o que dizia. Porém, como sempre foi uma criança afetuosa e querida, tentavam percebê-la pelos gestos que fazia.”
Durante esse tempo, as otites nunca deixavam a criança em paz. Susana levava a filha ao médico de família. Era medicada, mas os problemas não mudavam. A mãe começou a preocupar-se cada vez mais. Principalmente com o atraso da fala. “Não dizia as palavras direitas. Trocava as letras. Por exemplo, em vez de café dizia fefé. Sónia era Cónia.”
Foi por sugestão da irmã que procurou um otorrinolaringologista e, a partir daí, começou a perceber o que tinha a filha. “O médico dizia-nos para imaginarmos que éramos nós que tínhamos duas azeitonas no fundo da garganta e que nos pediam para falar.” Em agosto, a menina foi operada. Fez adenoamigdalectomia parcial e agora está bem.
Já não ressona, melhorou muito a qualidade do sono e com a terapia da fala, que continua a fazer, já se nota uma franca evolução. “Foi algo simples. Além das noites serem muito mais tranquilas, até noto que se alimenta melhor e acorda menos cansada. É outra criança.”
Cirurgia pode resolver problema
O responsável pelo diagnóstico e melhoria de Beatriz é Victor Certal, otorrinolaringologista do Hospital CUF Porto. O médico explica que a Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (uma doença mais associada à população adulta) se caracteriza por um conjunto de situações que impedem o ritmo respiratório normal, fazendo com que haja movimentos falhados para forçar a inspiração durante os períodos em que se está a dormir.
A apneia, que tem causas desconhecidas, “surge em idade pré-escolar, por volta dos dois ou três anos”. Às vezes até bastante mais cedo, “quando os pais notam que a criança ressona mais do que o pai, que o sono é muito agitado e que ela respira muito pela boca”.
Victor Certal alerta que chegar a um diagnóstico precoce evita consequências graves. “Os pais devem estar atentos ao comportamento, pois estas crianças normalmente são irritáveis e tocam a hiperatividade”, ao contrário do que acontece com os adultos que sofrem desta síndrome e que geralmente têm sonolência diurna. O esforço respiratório durante a noite faz com que “consumam muita energia, levando até à perda de apetite”.
Contudo, o pior é mesmo quando o desenvolvimento físico e intelectual é prejudicado pelas noites mal dormidas. “Uma criança que não descansa não vai aprender como as outras, não vai conseguir concentrar-se e poderá por causa disso ser até gozada pelos colegas por ser pouco inteligente, quando na verdade tudo se deve ao cansaço. Quando não é tratada a tempo, a apneia infantil pode comprometer o normal desenvolvimento psicomotor da criança e interferir com o rendimento escolar, na medida em que esta nunca consegue ter um sono reparador. Ninguém tem um rendimento normal quando está cansado, quando não dorme.”
Por norma, o que faz com que haja dificuldades em respirar são as amígdalas (uma de cada lado da garganta) e as adenoides (na parte alta da garganta, atrás do nariz) serem demasiado grandes, a ponto de bloquearem a passagem do ar. E se houver problemas de saúde, como alergias, o cenário torna-se muito pior.
A mãe da pequena Matilde percebeu ainda mais cedo que a filha tinha um problema. Com quatro meses já ressonava com intensidade. A isto juntava-se um sono muito agitado e paragens ao respirar. Era apneia. “Falei com a pediatra e ela disse que podia ser que passasse”, relata Ana Pinto.
Perda de audição chegou aos 40%
Só que o problema não só não melhorou como se agravou. A perda de audição chegou aos 40%, o ressonar era cada vez mais forte, havia atraso na fala e as otites eram constantes. Com a pulga atrás da orelha, Ana começou a procurar grupos de pais na Internet que falassem sobre o tema.
Por conta própria consultou um otorrinolaringologista que sugeriu operar a menina de imediato. A mãe quis ouvir uma segunda opinião. Em setembro do ano passado, a pediatra encaminhou Matilde para um especialista em casos do género e a bebé começou a fazer tratamentos.
A lista é longa: vacina oral, lavagem do nariz com soluções de água salgada, uso de descongestionantes nasais, corticoides… “Aí, deixou de ressonar durante um tempo, mas as otites começaram a ser mais fortes do que antes. Ao ponto de fazer antibióticos de 15 em 15 dias. Experimentou quatro.”
Nessa altura, já sabia que apenas estavam a adiar o inevitável. Matilde tinha de ser operada. O que acabou por acontecer no final de fevereiro deste ano. Fez adenoamigdalectomia parcial e atualmente dorme melhor e deixou de ressonar, quase na totalidade. “Nas primeiras noites, após a cirurgia, chegava a acordar sobressaltada porque já não ouvia barulho. Era tão estranho que tinha de verificar se ela estava mesmo a respirar.”
A fala também começou a normalizar à medida que a menina, que tem três anos e meio, recuperava a audição. “Agora até fala de mais”, brinca a mãe. “E no outro dia até me conseguiu ouvir a lavar os dentes, na casa de banho, estando ela noutra divisão, o que significa que a recuperação está a correr bem. A única medicação que faz agora é um anti-histamínico para a sinusite e para a tosse alérgica, que ainda não passou.”
A mãe da Matilde confessa-se surpreendida. “Só agora me apercebi da quantidade de crianças que têm o mesmo problema que a Matilde.”
Apenas 10% tem grau de apneia que justifica operação
De facto, como indica Victor Certal, “as crianças que ressonam em idade pré-escolar, ao ponto de motivar uma primeira consulta, correspondem a 25%”. Dessas, “apenas 10% vai confirmar que tem um grau de apneia que justifica uma intervenção cirúrgica parcial (remover apenas parte das amígdalas e das adenoides, para permitir a passagem do ar)”.
Sendo que a primeira abordagem é sempre “à base de medicamentos para permeabilizar o nariz”. Só se não resultarem, num prazo de mais ou menos três meses, é que a cirurgia é posta em cima da mesa.
A boa notícia é que a recuperação é rápida. “Às vezes, na primeira noite os pais notam logo que a criança deixou de ressonar. Mas a recuperação pode levar, no máximo, nove a dez dias.” A cirurgia é aconselhada a partir dos três anos e antes dos seis, que corresponde à entrada da criança na escola.
Caso a apneia seja detetada depois, “o expectável é que a natureza faça o seu trabalho e que as amígdalas e as adenoides reduzam de tamanho”. Porém, a partir daí, “é mais difícil corrigir o atraso no sono, provocado por sucessivas noites mal dormidas”.