Rui Cardoso Martins

Regata em terra

Ilustração: João Vasco Correia

Sou um gestor de categoria, disse, quando lhe perguntaram a profissão. Ao ouvir isto, como é óbvio, a juíza continuou:

– Isso é o quê?…

E o homem percebeu que tinha de explicar, desadjectivar a categoria. Não era dizer que era extraordinário gestor, era só isto:

– Ahhh… giro uma categoria de produtos.

Na gaiola aberta dos arguidos, Luís tentava manter o nome sonante do cargo. Sapatinho de pelica. Fato e gravata de reuniões estratégicas. Gestor de categoria em grande empresa nacional e internacional. É coisa que se pode apresentar à futura sogra. Poderá acrescentar que tem bom emprego nos hipermercados. Minha senhora, a sua filha estará bem entregue a mim.

Talvez. Mas, como se costuma dizer, o karma é tramado, senhor gestor de categoria. A 16 de Abril de 2017, na discoteca Lux, à beira do Tejo, já decrescia para minguante a Lua sobre as águas de prata, o gestor de categoria rebentou à cabeçada o nariz de dois homens. Um primeiro, sem aviso, e o outro para não dizer que não levava nada. Há para aí mais narizes, quantos são, quantos são?! E o que fizeram os dois desnarigados?

– Às vezes há coisas que nos fazem perder a cabeça, suspirou o gestor de categoria no tribunal.

Agora a sério, tente outra vez: o que fizeram realmente os dois homens? A namorada de Luís, hoje sua mulher (uma grávida no corredor do tribunal), quisera fumar mas não tinha lume. Aproximou-se de um homem na pista e, com a mímica do fogo, perguntou se tinha isqueiro. Não tinha, mas pediu a um amigo. O amigo passou-lhe o isqueiro. Acendeu o cigarro à desconhecida e, vejamos, ouçamos, perguntou-lhe o nome ao ouvido.

Eram seis da manhã e perguntou-lhe o nome, no meio da parede de som de música rock, ou mesmo tecno, untze, untze, boing, boing. Não lhe tocou, não fez nada. Então, sentiu um toque no ombro e virou-se, pensando que era outro amigo. Mas era Luís que, vindo do fundo dos curros da cerveja e do ciúme, arremessou a extensa testa bovina contra a cana do nariz do outro. O homem agarrou-se à cara, em explosões vermelhas. Um amigo da vítima, abrindo as mãos ao nível da cintura (provou-se em tribunal que a sua atitude era de estupefacção, não de ameaça, a própria mulher de Luís o admitirá), fez a terrível observação:

– Mas o que é isto?!

Ao que levou ele com osso cranial e frontal no nariz, gesto de categoria, pois a lesão do segundo homem, descrita pelo médico das urgências do hospital, e depois pelo Instituto de Medicina Legal, corresponde a ferida igualzinha. Dois septos nasais desviados, duas marcas ao milímetro com o mesmo método, força, dinâmica, resultado. Dias e dias de dores.
– É verdade que temos narizes parecidos, admitiu o segundo.

E de precisão sabem os dois pobres homens. Pobres, quer dizer. Já dissemos que o karma é tramado. Imaginem quando o gestor de categoria descobriu que acabara de mandar para o estaleiro, literalmente, o melhor fotógrafo português de regatas internacionais, presença habitual na America’s Cup, na Volvo Ocean Race, premiado com o maior troféu de fotografia de vela do Mundo. E, por curiosidade, o segundo homem? Um dos grandes velejadores portugueses de sempre, contando vascos da gama e bartolomeus dias, marinheiro que competiu em três Jogos Olímpicos, é skipper/capitão-navegador contratado por equipas mundiais, competiu em regatas contra, por exemplo, o veleiro Alinghi, barcos que são a mais esbelta construção humana sobre o espantoso trono das águas (às vezes voando nas quilhas…).

O que queriam as vítimas do gestor de categoria? Com calma e educação, resolverem uma situação embaraçosa (quem os visse ou soubesse do seu estado, diria que se tinham metido à pancada numa discoteca…). E dinheiro: dias depois da agressão macaca, iam embarcar para a temporada de regatas. E já não foram, naturalmente, porque um não podia encostar a máquina fotográfica ao nariz no meio das ondas, e o outro porque é impossível andar aos sacões, no enrola-desenrola roldanas, cabos, velas, sal, sol, enfim, capitanear com o nariz em polpa.

Ora bem, oito dias a oitocentos euros por dia numa regata, mais as regatas que perdeu a seguir porque a equipa teve de o substituir, serão talvez, só de um lado, 27 mil euros de prejuízo. É fazer as contas e Feliz Natal, senhor gestor de categoria. Há quebra-mares e há quebra-narizes.

E as mulheres até já fumam, não é?

 

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)