Rapaz ou rapariga? O rótulo à nascença

O sexo de um bebé é uma informação que (quase) todos os pais procuram saber antecipadamente. Mas o género pode não ser tão simples quanto o rosa e o azul. Apesar de rara, a ambiguidade sexual existe e já levou a mudanças na legislação portuguesa.

Célia foi apanhada de surpresa na sala de partos. A filha Leonor, acabada de nascer, não tinha uma vagina dita normal. Os médicos avisaram-na logo após ter dado à luz: a Leonor tinha “um clitóris muito alongado como se fosse um micro pénis”, recorda a mãe à “Notícias Magazine”. Os pais foram aconselhados a não fazer o registo da filha até se ter a confirmação do género e do diagnóstico.

A bebé nasceu com hiperplasia suprarrenal congénita clássica, uma patologia que se caracteriza pela ambiguidade genital, nomeadamente a virilização dos genitais externos femininos. Aos 33 anos, grávida da primeira e única filha, Célia sentiu que o chão lhe tinha caído. “Foi muito complicado. A Leonor teve de fazer um teste genético para saber se era rapaz ou rapariga”, desabafa.

A ambiguidade sexual, como o próprio nome indica, torna difícil a atribuição de um género nos primeiros momentos de vida. A patologia é muito rara em Portugal. Entre 2000 e 2010, um estudo do Registo Nacional de Anomalias Congénitas (RENAC) do Instituto Nacional Ricardo Jorge registou que 0,3% dos nascimentos com anomalia congénita tinham ambiguidade sexual. E 1,4% não faziam referência ao sexo do bebé.

Dentro do grupo de patologias da hiperplasia suprarrenal congénita existem vários subtipos, como a virilização do útero e a produção excessiva de testosterona nas meninas, semelhante ao caso da Leonor, ou uma virilização incompleta nos meninos. Na Europa, a incidência anual deste diagnóstico oscila entre um em cada cinco mil e um em cada 15 mil, segundo dados do portal europeu sobre doenças raras, o Orphanet.

Poucos doentes, poucos hospitais

Nada nas consultas de obstetrícia de Célia fez antever dúvidas quanto ao sexo da criança. A situação não é tão incomum quanto isso. “Nem sempre um diagnóstico de ambiguidade sexual é detetado nas ecografias, pode só verificar-se após o parto”, explica Lurdes Sampaio, médica e coordenadora de endocrinologia pediátrica no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte.

“Devemos ter um ou dois casos por ano”, especifica Rita Cardoso, médica de endocrinologia pediátrica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.

Ao contrário de Célia, há casos em que é possível perceber, durante a gravidez, uma alteração do desenvolvimento sexual do bebé. “A ambiguidade tem graus: uns são muito alterados, outros são moderados. Os mais alterados são visíveis logo na ecografia”, esclarece a médica Lurdes Sampaio.

Seja qual for o caso, o procedimento é o mesmo antes ou após o parto. As grávidas em que se suspeite que o bebé tenha ambiguidade sexual são remetidas para as respetivas especialidades. Mesmo que esses serviços não sejam na zona de residência da família. “Recebemos grávidas para falar com elas e orientá-las depois do filho nascer”, diz Rita Cardoso.

Leonor, hoje uma adolescente com 13 anos, é seguida no Hospital de Santa Maria, na capital, embora tenha nascido no Alentejo. “Fazemos viagens trimestrais a Lisboa, embora nos primeiros anos de vida as deslocações fossem mais frequentes”, adianta a mãe Célia, com 46 anos.

Atualmente, três cidades em Portugal oferecem serviços médicos especializados para orientar pais e bebés com ambiguidade sexual, desde o nascimento (ou antes) até à idade adulta. O Hospital Dona Estefânia e o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, o Hospital de Santo António e o Hospital São João, no Porto, e o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra reúnem cirurgiões, endocrinologistas, pedopsiquiatras, psicólogos e urologistas pediátricos em equipas multidisciplinares.

“A ambiguidade tem graus: uns são muito alterados, outros são moderados. Os mais alterados são visíveis logo na ecografia”, Lurdes Sampaio
Médica

A raridade dos casos explica em parte a falta de equipas especializadas no resto do país. Apesar dos muitos quilómetros que os pais possam fazer para ter ajuda especializada, a situação é desdramatizada. “É fundamental que os bebés sejam acompanhados em centros com alguma experiência. Não faz sentido dividir este apoio por várias unidades”, afirma Cíntia Castro Correia, pediatra de endocrinologia no Hospital São João. “Há muitos médicos pediatras [sem especialidade] que desconhecem a realidade”, confirma Célia, mãe de Leonor.

O apoio e o aconselhamento médico podem começar nos primeiros anos de vida e prolongar-se durante a vida toda, especialmente as consultas de endocrinologia. A maioria das unidades ouvidas pela NM não excede os dois casos por ano de utentes com ambiguidade sexual.

 

Nova lei sem consenso

Operar um bebé com genitália ambígua à nascença revelava-se urgente e quase mandatório no passado. Leonor, com um ano e meio de vida, foi intervencionada no Hospital Dona Estefânia. “Ela teve de reconstruir a vagina, porque a tinha unida à uretra”, explica a mãe. Foi novamente sujeita a cirurgia aos seis anos.

A adolescente faz atualmente cinco doses diárias de cortisona, devido ao desequilíbrio hormonal resultante da patologia da hiperplasia suprarrenal congénita. Nasceu com uma elevada concentração de testosterona.

Em 2018, a lei da identidade de género veio mudar (em parte) o panorama destas cirurgias em Portugal. O diploma publicado a 7 de agosto em Diário da República esclarece no artigo n.º 5 que só devem ser realizadas intervenções cirúrgicas em menores intersexo – indivíduos cujas características sexuais não correspondem ao género masculino ou feminino – caso a sua saúde esteja em risco.

O que é que isso significa? As modificações nas características sexuais dos bebés com ambiguidade não devem acontecer à nascença, mas no momento em que se manifeste a identidade de género, ou seja, o género com o qual cada um mais se identifica (masculino, feminino ou nenhum deles). Em Portugal, ao contrário da Alemanha, não é possível alguém identificar-se como terceiro género no registo civil ou nos documentos de identidade.

“Foi muito complicado. A minha filha teve de fazer um teste genético para saber se era rapaz ou rapariga”
Célia
Mãe de Leonor

Catarina Marcelino, antiga secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, entre 2015 e 2017 no Governo socialista, é considerada a “mãe” desse diploma. Um olhar sobre a legislação internacional – como a de Malta, que proíbe as cirurgias em menores sem o seu consentimento – e sobre as preocupações das organizações dos direitos LGBTI (Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo) deu para perceber que em Portugal havia muitas matérias por resolver no sistema e na legislação.

“Foi um diploma muito refletido. O objetivo era salvaguardar os bebés para não existirem erros”, evidencia Catarina Marcelino. “Até ao momento não havia qualquer regra para os casos de ambiguidade sexual”, acrescenta.

A atual deputada pelo PS relembra que a lei não é proibitiva, mas delega a necessidade de existirem protocolos médicos quando um bebé intersexo nasce nos hospitais portugueses. “O problema não são as equipas especializadas dos hospitais, é a falta de orientação geral e universal” no Sistema Nacional de Saúde em Portugal, salienta.

No caso de Leonor, a mãe esclarece que quando fizeram o teste do cariótipo (conjunto de cromossomas) confirmaram que era XX, ou seja, feminino. A bebé tinha útero e ovários, logo a dúvida da atribuição do género deixou de existir. “Não se punha a hipótese de ela não ser intervencionada. Ia ser um rapaz deficiente, sem testículos e com um micro pénis. Nunca iria ter um desenvolvimento normal como rapaz”, observa Célia.

Embora o diploma tenha pouco mais de um ano, e segundo os médicos ouvidos pela NM não se tenha registado nenhum caso flagrante de ambiguidade sexual nos hospitais, algumas cirurgias em bebés com alterações no desenvolvimento sexual (sem que esteja em dúvida o género) já terão sido adiadas. “Veio-nos criar alguns problemas porque é uma lei que se sobrepõe. Devia ser uma decisão dos pais com a ajuda e o aconselhamento médico”, defende Rita Cardoso.

A pediatra de Coimbra dá um exemplo em que a legislação pode não ser clara: um rapaz que não consegue urinar pela ponta do pénis, mas pela parte de trás do órgão sexual masculino, não vai conseguir urinar de pé se não for intervencionado em cirurgia. O problema não põe em risco a saúde do bebé, mas “é uma situação complicada, causa constrangimentos e dificuldades e os pais ficam indignados”, considera. “Não estamos a definir nenhum sexo, porque eles já o têm definido.”

Contactada pela NM, fonte da Direção-Geral de Saúde (DGS) confirmou que está a trabalhar na estratégia de saúde para utentes LGBTI, pelo que “a informação clínica e técnica para ajudar à operacionalização” do acompanhamento de bebés com ambiguidade sexual deverá ser conhecida em breve.

O primeiro volume da estratégia foi conhecido em julho deste ano. A DGS diz que não recebeu, até ao momento, nenhum contacto de profissionais com dúvidas acerca da lei da identidade de género, nomeadamente a atuação perante casos de ambiguidade sexual.

Viver como intersexo

Pedro percebeu aos 25 anos, numa consulta médica, que os cromossomas poderiam ter mais variações do que apenas XX (feminino) ou XY (masculino). A síndrome de Klinefelter (XXY) é uma anomalia dos cromossomas que se regista nos meninos quando nascem. Têm órgãos genitais masculinos, mas podem ter o peito mais desenvolvido e os testículos mais pequenos.

O jovem, agora com mais de 30 anos, nunca quis fazer uma cirurgia ou tomar testosterona, como foi indicado pelos médicos. “No meu caso escolhi viver como a natureza me fez, sem procurar ‘masculinizar-me’ ou destruir as características físicas que encaixam menos no ‘macho alfa’”, esclarece à NM. Hoje, Pedro assume-se como intersexo.

Foi a situações como estas que a legislação portuguesa procurou também responder, segundo Catarina Marcelino. “A lei da identidade de género vem assegurar valores sociais”, conclui a antiga secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade.

A raridade dos casos traz a falta de consenso em torno do tema da ambiguidade sexual e das pessoas intersexo. Do lado dos médicos, legisladores e utentes, as atitudes têm variado ao longo dos anos. A ONU estima que entre 0,05% e 1,7% da população mundial têm características que não se encaixam nos ditos padrões do género feminino e masculino, ou seja, são intersexo.

“A lei não veio alterar a atuação” dos últimos anos face aos bebés com ambiguidade sexual, explica Cíntia Castro Correia, do Hospital São João, que acrescenta que os congressos internacionais da área estão atentos a um assunto que, por si só, tem “muito pouco de consensual”.

A médica de endocrinologia pediátrica reconhece que há 20 anos a situação era diferente. “A criança nascia e era preciso imediatamente saber qual o género a atribuir. Havia a noção de alguma urgência, o que nem sempre era positivo”, refere.

Parte dessa brevidade podia até partir dos progenitores. “Não é fácil para os pais aceitar a decisão de adiar uma cirurgia e esperar que o filho cresça”, admite Lurdes Sampaio, do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. Para a clínica de endocrinologia pediátrica, a atuação cirúrgica tinha como máxima a “inclusão” das pessoas com ambiguidade sexual. “Obviamente a ideia nunca foi de mutilar ou de provocar consequências graves na pessoa intervencionada”, sublinha.

O Colégio da Especialidade de Cirurgia Pediátrica da Ordem dos Médicos não quis prestar quaisquer comentários à NM sobre a mudança na legislação.

Visibilidade cresce, mas é insuficiente

À medida que os anos passaram, também o ativismo de organizações civis mudou a visibilidade destas patologias: “Houve reuniões de endocrinologia pediátrica com manifestações à porta de pessoas intervencionadas que não concordavam com as cirurgias”, recorda a médica de Lisboa.

Em Portugal, a associação ILGA Portugal (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero) apoia cinco pessoas intersexo. Já a Associação Plano i atende duas utentes intersexo no Centro Gis. No último caso, segundo Paula Allen, membro da Direção, as duas pessoas têm “apoio psicossocial, apoio psicológico individual, apoio jurídico e consulta de medicina para terapia hormonal”.

A AMPLOS (Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género) não tem o registo de pais de menores intersexo na sua organização, mas confirma à NM a disponibilidade para os atender e apoiar.

Num assunto com pouco consenso sobre o que deve ser o tratamento ou o apoio dado a pessoas com alterações do desenvolvimento sexual, desde o nascimento até à idade adulta, uma opinião resiste como unânime. Ainda não se debate suficientemente o tema. Poucas pessoas da família de Célia sabem que Leonor nasceu com ambiguidade sexual. “Há um estigma muito grande associado a esta situação. Nem os meus amigos sabem”, pormenoriza a progenitora.

As consultas frequentes em Lisboa e as tomas diárias de medicação tornaram impossível a Célia não falar sobre a patologia com a filha de 13 anos. “Ela sabe o nome da doença e sabe que tem de tomar cortisona. Não tenho a certeza se ela entendeu a implicação do pseudo-hermafroditismo (genitália ambígua)”.

Quando iniciar a sua vida sexual, Leonor terá de avisar a mãe e ser novamente acompanhada por médicos, devido à reconstrução vaginal a que foi sujeita em criança. “Embora ela agora tenha uma vagina dita normal, a largura não é adequada”, diz a mãe. Algumas pessoas descobrem que têm alguma alteração do desenvolvimento sexual apenas quando estão na puberdade ou têm dificuldade em ter filhos.

No caso de Pedro, que decidiu aos 25 anos não fazer nenhuma intervenção cirúrgica ou tratamento hormonal, as possíveis dificuldades de fertilidade não se revelaram um problema, porque “nunca pretendeu ter descendência”.

Embora esteja consciente e tranquilo com a sua decisão, Pedro sabe que os rótulos se colam à pele e à identidade de cada um. Os dois casos ouvidos pela NM quiseram ocultar a identidade. “Este é um assunto mais tabu e envergonhado do que qualquer outro relacionado com a sexualidade ou género”, conclui.

 

GLOSSÁRIO

Intersexo define alguém cujas características sexuais não se encaixam nos padrões binários do género feminino ou masculino. É um termo usado pela Organização Mundial das Nações Unidas (ONU), mas a comunidade médica não o reconhece. A patologia é definida como doença ou alteração do desenvolvimento sexual, pelo que ambiguidade sexual é também um conceito comum de ser utilizado.

O termo intersexo é usado na legislação de vários países e sobretudo no seio de organizações LGBTI. A última letra da sigla corresponde a “intersexo”.

Hermafrodita deixou de ser um termo utilizado pelas organizações para definir pessoas com ambiguidade sexual pelo peso do estigma que acarreta.

Um dos casos mais falados em todo o mundo foi o da atleta sul-africana Caster Semenya. A bicampeã olímpica dos 800 metros tem órgãos sexuais externos femininos, mas não tem útero e ovários. Tem testículos internos que produzem testosterona acima do normal para uma mulher. Semenya só pode voltar a correr caso tome medicação para reduzir a testosterona.

Segundo o ranking da ILGA Europa, que avalia o desempenho dos países no cumprimento dos direitos da comunidade LGBTI de 0% (violação de direitos humanos) a 100% (respeito total da dignidade humana), Portugal fica em sexto lugar com 66,35% no conjunto dos 28 Estados-membros da União Europeia. O pódio é ocupado por Malta e o último lugar pertence à Letónia.

A lei da identidade de género em Portugal trouxe à discussão a possibilidade de se eliminar a referência do sexo ou acrescentar “terceiro género” às opções de feminino e masculino no cartão de cidadão. A ideia não avançou por não ser consensual entre as organizações LGBTI, segundo Catarina Marcelino, antiga secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade.