Quando um salário não chega

Sandra Osório é assistente de medicina dentária e faz investigação de árvores genealógicas. (Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Texto de Kátia Catulo

Daniela Cochicho deixa a filha mais nova na escola, agarra na mota e serpenteia o trânsito para chegar às 9 horas ao laboratório de virologia do Instituto Português de Oncologia de Lisboa. A essa hora, Pedro Pinto encosta a bicicleta a um canto e entra no Amendoeira Golf Resort, em Silves, começando a resolver os primeiros problemas no sistema informático. De volta a Lisboa, Nuno Lopes espera no hall de um hotel por um grupo de turistas para mais um tour pelas cidades portuguesas. E Isabel Holbeche está no seu apartamento, em Sintra, a dosear óleos de plantas medicinais para fazer produtos de cosmética artesanal.

As rotinas não são muito diferentes das de tanta gente que pega ao trabalho pela manhã e, ao final da tarde, regressa a casa para recomeçar tudo no dia seguinte. Só que, no caso deles, mal acaba um, começa outro. Daniela, Pedro, Nuno e Isabel levam uma vida dupla, muitas vezes tripla, tal como Sandra Osório, de Lisboa, António Lopes, de Cascais, ou Mário Moreira, a viver em Oeiras.

Todos eles acumulam mais de uma atividade profissional e não são casos assim tão raros. Os números mais recentes do Instituto Nacional de Estatística mostram um fenómeno a crescer desde 2014. A subida mais significativa, aliás, aconteceu em 2018, mais 9,3% face ao ano anterior. São 204,5 mil pessoas que, segundo os dados do Inquérito ao Emprego, dividem o tempo entre uma atividade principal e outra secundária.

Mário tem 50 anos e é professor de educação especial na Escola Secundária Luís de Freitas Branco, em Oeiras. Começa às 9 horas e acaba entre as 16.30 e as 17 horas. Às terças, quintas e sextas, em vez de ir para casa, dá aulas de ioga a adultos no espaço Prema Yoga até às 20 horas. E, nas manhãs de sábado, mais uma sessão no Centro Paroquial de Carnaxide.

Pedro Pinto, 32 anos, tem também um emprego das 9 às 18 horas como informático e web developer num empreendimento turístico no Algarve. O resto do tempo passa no estúdio Kimahera, editora discográfica que fundou em 2005. E a única rotina certa de Sandra, assistente de medicina dentária, de 46 anos, são as sete horas numa clínica em Lisboa – no turno da manhã ou na parte da tarde. O que sobra é repartido entre investigação feita nos arquivos ou em casa, desenhando árvores genealógicas que os clientes encomendam.

Pedro Pinto, 32 anos, é informático e tem uma editora discográfica desde 2005. (Foto: André Vidigal/Global Imagens)

Gerir as 24 horas de um dia só é possível, em muitos casos, porque pelo menos uma das atividades é desempenhada em casa. Isabel Holbeche delimita as fronteiras no seu apartamento, em Rio de Mouro, no concelho de Sintra. De um lado, o escritório de contabilidade e, do outro, o ateliê de cosmética artesanal. Quando as contas dão uma folga, ela muda de poiso, trocando os números pelas plantas. Mas, quase sempre, aproveita as manhãs para se dedicar à cosmética e o resto do dia à contabilidade de empresas e empresários individuais. “Antes da meia-noite nunca me deito”, conta a economista, de 70 anos.

Escalados no turno da noite

O silêncio da noite é o momento propício para retomar o trabalho. Ou, melhor, o único possível para quem chega a casa e ainda tem de arrumar as tarefas domésticas. Daniela, bióloga de 38 anos, sai do laboratório de virologia às 18 horas e a partir daí está com a filha até ela ir para a cama. Às 21 horas começa o segundo turno.

Não é propriamente um emprego, são sobretudo trabalhos temporários, suficientes para mantê-la ocupada até à meia-noite ou uma da manhã – Photoshop e programação em HTML para sites, transcrições de sessões de julgamentos, redação de perguntas para concursos de televisão, pastelaria, fotografia para agências imobiliárias, entre outros afazeres: “Faço tudo o que me aparece, aprendendo quando necessário as técnicas, nem que seja nos tutoriais do YouTube.”

Quando lhe perguntam a profissão, António Lopes tem dificuldade em responder, pois desempenha diversas atividades em simultâneo, todas remuneradas. (Foto: Gustavo Bom/Global Imagens)

Nuno Lopes é que destoa desta maioria, já que os dois empregos – arquitetura e tours turísticos – acontecem alternadamente. A rotina, por regra, é definida num plano mensal, com dias exclusivos para passeios e dias em que fica no seu apartamento, em Oeiras, concentrado nos projetos de remodelação de moradias e acompanhamento de obras: “É um trabalho lento e criativo, exige que esteja totalmente focado vários dias seguidos”, explica o arquiteto de 39 anos.

E o que dizer então do modelo de organização de trabalho de António Lopes, historiador, fotógrafo e ainda jornalista, de 59 anos? Comecemos pelo básico: qual é a profissão principal? Uma pergunta banal numa conversa de circunstância tem uma resposta complicada. Ele tem muitas atividades em simultâneo, todas elas remuneradas. Dá aulas de Fotografia e de História de Arte, é fotógrafo profissional, investigador com livros publicados em história contemporânea, crítico de arte e jornalista a escrever para publicações online especializadas e ainda diretor da Associação Portuguesa de Arte Fotográfica, com sede em Lisboa.

Nem todas as ocupações têm sempre o mesmo peso e tudo depende da fase da vida em que se encontra. Neste momento, com a tese de doutoramento, fica apenas com tempo para dar aulas de fotografia duas vezes por semana e tratar todos os dias da gestão e contabilidade da associação, ocupando-se das tarefas administrativas, como pagar salários aos monitores ou organizar exposições e parcerias com outras entidades.

O tempo não é elástico, mas eles aprenderam a gerir o dia com minutos contados. Pedro Pinto aproveita a hora do almoço para responder às mensagens e atualizar as redes sociais da editora discográfica. Sandra Osório, se entra à tarde no consultório, passa as manhãs no arquivo da Torre do Tombo. Nuno Lopes usa o final de um dia de tour para devolver as chamadas dos clientes. Às segundas e quartas, Daniela trabalha dez horas seguidas no laboratório para às terças e quintas ter as tardes ocupadas com outros trabalhos.

Esticar o dia para compensar o salário

Se, em alguns casos, é por opção, na maioria das situações é porque o salário de uma única atividade não chega para pagar as contas. Mário Moreira, professor do ensino público no 4.º escalão, precisaria sempre de um complemento e é com uma segunda ocupação que consegue entre 30% e 40% do rendimento mensal. Não é a única utilidade do ioga: “Mais do que uma atividade secundária, é o que mantém o meu equilíbrio físico, mental e espiritual”.

Nuno Lopes. O segredo para o sucesso enquanto arquiteto e guia turístico passa por desempenhar uma atividade por dia. (Foto: Carlos Manuel Martins/Global Imagens)

E ainda tem o bónus de melhorar o desempenho como professor, funcionando como “contrapeso” ao ritmo que os alunos impõem na escola: “Por mais que goste de dar aulas, é sempre extenuante”. Há barulho constante dos miúdos que nunca desligam as pilhas e problemas sociais ou familiares para resolver a qualquer hora. Já lhe aconteceu umas quantas vezes chegar a uma sessão de ioga com a “cabeça feita num oito” e, ao fim de 20 minutos, deixar tudo para trás: “Não estou no ioga para me curar, mas, muitas vezes, acaba por ser terapêutico”.

Essa é a vantagem das vidas duplas. O que falta de um lado é compensado do outro. E as duas atividades profissionais de Nuno Lopes não podiam ser mais complementares. O arquiteto trabalha fechado em casa enquanto o animador turístico anda de um lado para o outro. Os projetos são solitários e as viagens na carrinha uma oportunidade para conhecer gente de muitas partes do mundo.

A arquitetura é rigorosa e minuciosa, mas o turismo é descontraído e com uma boa dose de improviso. Na arquitetura tudo se arrasta entre burocracias e licenças camarárias. Mas os turistas, esses, ao fim do dia dão uma gorjeta generosa, dizem adeus e só muito raramente voltam a cruzar-se com ele: “São duas ocupações bastante distintas, que acabam por preencher esta minha necessidade de só estar bem onde não estou”.

E, mais importante ainda, colmatam as falhas de rendimento com a arquitetura. Corria o ano de 2012 quando o turismo entrou na vida dele. Estávamos em plena crise e Nuno Lopes foi arrastado nessa leva. Obras paradas, projetos cancelados por falta de financiamento, o trabalho escasseava de mês para mês e a empresa de construção para a qual trabalhava com maior regularidade acabou por suspender a atividade. O convite para organizar passeios com turistas surgiu na hora certa. Tinha tempo de sobra e foi assim que começou, julgando ser uma solução temporária, mas que se tornou numa segunda atividade.

A crise, entretanto, deu algumas tréguas, os projetos foram aparecendo, mas ainda insuficientes para viver apenas da arquitetura. Manter um segundo trabalho é como ter um plano de retaguarda para os meses mais fracos. Se o ritmo do arquiteto desacelera, o animador turístico acelera nos tours, aceitando mais pedidos da empresa para conduzir os turistas por Sintra, Alentejo, Tomar, Berlengas, Fátima e, em breve, também no Porto.

Daniela é que nunca teve outro ritmo. Na universidade já repartia o tempo entre os estudos e um part-time. Se contarmos com a maternidade, que sim, também é uma ocupação a full-time, então, desde os 19 anos tem pelo menos três atividades em simultâneo. Neste momento, a vida tripla serve para se manter na área de investigação científica, que é o que sempre quis fazer: “Para segurar o meu emprego, tenho de me desdobrar em vários trabalhos”.

Daniela Cochicho é bióloga no Instituto Português de Oncologia de Lisboa e faz bolos para uma pastelaria. (Foto: Filipa Bernardo/Global Imagens)

Há 13 anos que está no Instituto Português de Oncologia de Lisboa, mas sempre foi “uma carta fora do baralho” da função pública. Só este ano foi integrada numa carreira que nem sequer é a sua e obrigada a recomeçar como se tivesse acabado de entrar. O rendimento, agora de mil euros limpos, teve um acréscimo de 70 euros, mas, mesmo com o salário do companheiro, dá unicamente para cobrir as despesas: “Chego ao fim do mês sem poupanças”.

Sonhos financiados com horas extra

Se Daniela não abdica da investigação científica, Pedro não quer viver sem a música: “Dois empregos é a fórmula que encontrei para financiar o meu lado artístico”. Não é que não goste de informática. A programação é um vício que o levou a tirar a licenciatura, suspeitando que o seu futuro passaria por aí. Mas, ainda antes, já andava de olho na música, especialmente no hip-hop.

Logo no secundário, começou a dar os primeiros passos, construindo a identidade artística. Reflect é o alter-ego que usa para distinguir o informático do músico, com concertos e álbuns editados, embora nos últimos anos o ritmo nos palcos tenha diminuído para dar mais espaço à editora e ao estúdio de gravação.

O dinheiro, no caso de António Lopes, não é o que mais conta para manter as várias ocupações. O estilo de vida tem sobretudo a ver com o feitio. Não se aguenta muito tempo a fazer sempre o mesmo: “De manhã, quando saio para correr, sou incapaz de repetir o percurso do dia anterior. Acho que isso diz muito de como sou”. E é por isso que o dia começa às 10.30 horas, geralmente na associação, e termina por volta da meia-noite em local incerto. É a única maneira de sossegar um “espírito inquieto”, apesar dos custos: “Não há salários fixos, mas esse é o preço que aceito pacificamente para fazer as muitas coisas de que gosto”.

É mais ou menos o mesmo com Sandra Osório que, para satisfazer uma vontade de continuar a aprender, procurou outras tarefas fora do consultório de medicina dentária. Além do interesse pela fotografia, usou o tempo que lhe sobrava para remexer em papéis antigos – livros, documentos e jornais. A “brincadeira” começou quando mergulhou no seu passado para descobrir o paradeiro de um familiar afastado. Depois disso, os amigos começaram a fazer pedidos, seguiram-se os amigos dos amigos e o hobby ganhou dimensão de segundo ramo profissional, juntamente com a pirogravura – fotografia impressa na madeira e trabalhada com marcas de queimadura.

Isabel Holbeche é que seria toda a vida mulher de um só emprego não fosse ter-lhe sido diagnosticado há seis anos um cancro. Seguiram-se dezenas de cirurgias e tratamentos de radioterapia. Tinha motivos de sobra para abrandar, mas a doença levou-a para outros caminhos. As cicatrizes demoravam a desaparecer, a pele irritava-se com qualquer produto comprado nas farmácias e nos supermercados: “Comecei a fazer os meus próprios cremes, usando óleos essenciais de cultivo biológico”. Foi lendo sobre o assunto, tirou um curso na Universidade de Coimbra, fez vários workshops e lançou-se devagarinho nos sabonetes, passando depois para hidratantes, champôs e geles de banho.

O que começou por necessidade de saúde tornou-se aos poucos uma ocupação a ganhar cada vez mais espaço. Amigos e conhecidos também queriam experimentar os produtos e ela foi estudando caso a caso para encontrar a receita certa para psoríases, inflamações alérgicas, peles secas ou sensíveis, caspa e por aí fora. Quando se deu conta, estava pronta para a fase seguinte. Certificou os produtos e obteve as licenças para comercializar os cosméticos em feiras e na sua loja online.

Mário Moreira é professor de educação especial na Escola Secundária Luís de Freitas Branco, em Oeiras, e dá aulas de ioga. (Foto: Gustavo Bom/Global Imagens)

Correr todos os dias cansa

Equilibrar as contas, mas também financiar ambições, é o que os põe a correr de manhã até à noite. Mas viver com pressa acaba mais tarde ou mais cedo por cansar. “Fisicamente é desgastante, confesso, e há coisa de um ano tive um AVC, que me levou a abrandar um pouco”, admite António Lopes. Reduziu o ritmo por indicação médica mas, alguns meses mais tarde, já tinha retomado os velhos hábitos. “É um vício, acho que nem perante a velhice vou parar.”

A fadiga muitas vezes nem é física, mas demasiado tempo na mesma posição ou com os olhos colados ao ecrã têm consequências: “Tendinites, ombros doridos e tensos e vista cansada é o resultado de anos a fio a trabalhar muitas horas seguidas”, conta Sandra. Só para se ter uma ideia, há cinco anos que não põe o pé na praia. Enquanto no verão toda a gente aproveita o sol e o mar, Sandra está encafuada nos arquivos distritais.

Fazer aquilo de que se gosta ajuda bastante a “renovar as energias” mas, se pudesse, Pedro ficaria mais tempo na ronha de manhã. Os fins de semana, contudo, são para se desligar do trabalho. É regra de ouro para não começar a semana estafado. Sexta-feira à tarde, sai do resort direto para casa e enfia duas mudas de roupa na mochila. Corre para apanhar o autocarro e, umas horas depois, chega a Lisboa para ir ter com a namorada.

Daniela é que nem os fins de semana completos tem. Sextas depois do trabalho e sábados de manhã são passados entre farinha, ovos e açúcar, fazendo bolos para uma pastelaria: “Chego ao domingo com a sensação de que corri a maratona”. Ao cabo de uma semana, o ritmo pesa, mas também é verdade que, com mais ou menos trabalho, Daniela seria sempre uma rapariga acelerada. Até naqueles breves minutos em que não tem nada para fazer o pezinho começa a dar sinais de impaciência.

Há gente assim, é preciso reconhecer, e Isabel Holbeche também faz parte do clube. Se antes da doença já trabalhava para lá das sete horas diárias, agora muito mais: “Quando me diagnosticaram cancro, senti necessidade de estar ocupada, de ter metas, e a cosmética ajudou-me muito”. Volta e meia, os amigos perguntam-lhe: “Como é que consegues, mulher?” Ao que ela responde: “Desconfio que foi o trabalho que me curou”.

Dois ou mais empregos pode ser uma cura para Isabel, mas também é o remédio possível para salários curtos e vontade de perseguir a vocação profissional. É isso que os faz levantar da cama todas as manhãs, sabendo que a correria só chega ao fim quando todos os outros já repousam.

Isabel Holbeche, economista, trabalha em casa. De um lado, o escritório de contabilidade; do outro, o ateliê da cosmética artesanal. (Foto: Carlos Manuel Martins/Global Imagens)