Quando os animais não entram no prato

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Há cada vez mais vegetarianos em Portugal. Em dez anos, o número de pessoas que optam por este estilo de vida quadruplicou. Uns fazem-no pelo amor aos animais. Outros por uma questão de saúde. Alguns pela proteção do ambiente. Há quem o faça por todas estas razões e mais. Mas todos partilham a mesma convicção: na hora de comer, não há espaço no prato para carne ou peixe.

 

Texto: Tiago Rodrigues
Imagem e edição: Ana Mota

 

São nove horas e 30 minutos de uma fria manhã de dezembro. Numa roda, 27 pessoas conversam sobre o que vão fazer naquele domingo, junto a um matadouro em Penafiel. Chamam-lhe “vigília”. Um estilo de ativismo “silencioso”. O objetivo é “transmitir algo que eles nunca tiveram, dar-lhes amor”, avisa uma das participantes. “Eles” são os animais. Centenas que vão chegar ao destino final naquele dia, como outros chegaram nos dias anteriores. São transportados em camiões, uns maiores, outros mais pequenos. Com melhores ou piores condições. São vacas, vitelos, ovelhas ou porcos. Eles “são a prioridade” dos ativistas que ali os esperam. Estas pessoas, mesmo sabendo que não os podem salvar da morte, vão tentar que o máximo de camiões pare à entrada do matadouro para “testemunhar” a sua vida.

A questão é inevitável: porque é que o fazem? “Estamos aqui pelos animais, para lhes passar algum amor e carinho, para olhá-los enquanto seres vivos e sencientes que são e homenageá-los dessa forma”, responde Marisa Sousa, de 31 anos, que deixou o seu trabalho para se tornar ativista a tempo inteiro com os projetos do Porto e Braga Animal Save.

Esta é apenas uma das várias intervenções promovidas pelos grupos do “The Save Movement”, uma rede internacional de ativismo em nome da defesa dos animais e do incentivo à adoção de um estilo de vida vegano. É também um dos sinais da crescente popularidade da alimentação vegetariana, escolhida por um número cada vez maior de portugueses.

Os vegetarianos não consomem carne ou peixe. Os veganos rejeitam todos os produtos de origem animal, da comida à roupa ou aos detergentes.

Um estudo da Nielsen, empresa global de mediação e análise de dados, publicado em 2017, concluiu que existem em Portugal cerca de 120 mil vegetarianos, 1,2% da população total. Um número quatro vezes maior do que os 30 mil que um estudo semelhante estimava 10 anos antes.

Estas vigílias acontecem aos domingos, desde há pouco mais de um ano. Naquele grupo, há homens e mulheres com idades entre os 15 e os 57 anos. Estão à espera que algum motorista pare. Mas nem sempre param. A maior parte ignora. Alguns até aceleram para evitar os ativistas. Vários camiões entraram e saíram do matadouro até o primeiro motorista decidir parar, já ao início da tarde. Transporta 12 vitelos, que têm entre seis e nove meses. Os ativistas aproximam-se. Querem tocar nos animais. Querem despedir-se.

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UMA QUESTÃO DE SAÚDE

 

A Associação Vegetariana Portuguesa (AVP), uma organização não governamental e sem fins lucrativos criada em 2006, estima que o mercado desse tipo de alimentação aumentou 514% nos últimos dez anos em Portugal. Em 2008, seriam apenas 28 as lojas e restaurantes vegetarianos em todo o país.

No ano passado, já havia pelo menos 172 estabelecimentos. “É clara a crescente popularidade deste estilo de vida. Os sinais do mercado dão-nos essa ideia”, afirma o presidente daquela associação, Nuno Alvim. Também ele ativista, 27 anos, vegano há cinco, dedica o seu tempo à promoção do vegetarianismo.

 

Nuno Alvim, presidente da Associação Vegetariana Portuguesa. (Foto: Cristiana Milhão/Global Imagens)

Para Nuno, a principal razão para o aumento do número de vegetarianos é “a questão da saúde”. “As pessoas estão mais preocupadas em emagrecer, em sentir-se mais saudáveis e em reduzir o consumo de gorduras saturadas. A saúde é preponderante”, lembra o associativista.

Não é por acaso que uma das maiores conquistas desta organização foi levar ao Parlamento uma petição com cerca de 15 mil assinaturas pela inclusão de opções vegetarianas nas cantinas públicas, em 2016. De petição passou a projeto de lei, sendo este aprovado na Assembleia da República em março de 2017.

Além de acrescentar opções alimentares nos hospitais e universidades, o objetivo passa também por fomentar uma vertente educativa nas escolas. “Sentimos que ainda há bastante desconhecimento sobre a dieta vegetariana, no que é que consiste e se é equilibrada ou não”, lamenta Nuno.

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Esse é também um dilema que persiste entre os profissionais de medicina, da indústria farmacêutica e da nutrição. Para Ana João Martins, médica em formação numa Unidade de Saúde Familiar em Braga, uma alimentação vegetariana, “em comparação com a dieta mediterrânea, tem muitos benefícios cardiovasculares que acabam por prevenir o colesterol e as tensões elevadas, dois fatores de risco muito comuns em Portugal”. A profissional de 27 anos decidiu tornar-se vegana quando descobriu, em análises de rotina, que também ela sofria desses problemas.

 

Ana João Martins, médica em formação numa Unidade de Saúde Familiar em Braga. (Foto: Gonçalo Delgado/Global Imagens)

No entanto, este tipo de alimentação “ainda está muito associada a alguns mitos, sobretudo em relação aos défices nutricionais”, alerta a médica.

“Se a dieta for variada e equilibrada, consegue suprir nutricionalmente as necessidades dos indivíduos, nomeadamente ao nível do cálcio, do ferro e das proteínas”, defende Ana João, admitindo porém que é preciso “ter cuidado com a vitamina B12”, cuja principal fonte são os produtos de origem animal.

“Pode haver carências e por isso o recomendado é fazer suplementação em comprimido ou em alimentos fortificados com essa vitamina, como as bebidas vegetais”, esclarece.

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Outro “mito” associado às pessoas com uma alimentação vegetariana é de que estas teriam menor aptidão para a prática de desporto, sobretudo de alta competição. Uma ideia que a profissional de saúde desmistifica.

“É uma dieta considerada alcalina [alimentos ácidos consumidos em pequenas quantidades] e por isso tem muitas vantagens na recuperação muscular e na força”, argumenta Ana João Martins, lembrando que “em Portugal existem já algumas referências a esse nível”.

“Alguns atletas até decidem adotar essa alimentação para obter melhores resultados desportivos”. Que o diga Joana Schenker, a primeira portuguesa a conquistar o título de campeã mundial de bodyboard, em 2017.

 

Joana Schenker, ex-campeã mundial de bodyboard, vegetariana desde os dez anos. (Foto: Álvaro Isidoro/Global Imagens)

A atleta de Sagres tornou-se vegetariana aos 10 anos, quando viajou com a mãe até à Índia e decidiu que não queria voltar a comer animais. Agora com 31 anos, soma conquistas atrás de conquistas, entre as ondas que apanha um pouco por todo o mundo.

Mas ao longo de tantos anos de competição, como conseguiu conciliar a exigência física dos treinos e provas em que participava com um tipo de alimentação mais restrito? “No início era complicado, principalmente quando ia para fora, porque queria ir a um restaurante e não havia grandes opções. Comia quase sempre omelete. Chegou a um ponto que enjoei os ovos”, brinca.

“Hoje é muito mais fácil. Com o tempo fui melhorando e agora já consigo conciliar muito melhor o meu tipo de alimentação com aquilo que o desporto exige”, afirma Joana Schenker.

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A atleta considera-se também ela um exemplo. “Eu desmistifico esta questão. Espero inspirar outras pessoas a pelo menos experimentar a comida vegetariana”, diz Joana Schenker, afirmando que ainda tem “muito para conquistar”.

PAREDES DE COURA, CAPITAL DO VEGETARIANISMO

 

Além do desporto, já muito foi conquistado na promoção do vegetarianismo em Portugal. Mas não se pode falar nesse crescimento sem mencionar “os padrinhos” que o viram nascer. Ela, Ivone, portuguesa de 61 anos. Ele, Joep, holandês entretanto naturalizado, de 70. São um casal de veganos que decidiu abandonar a vida agitada da cidade do Porto para viver no sossego da natureza em Paredes de Coura.

Quando lá chegaram, em 2005, encontraram uma quinta abandonada há cerca de 40 anos e acharam que era o local perfeito para se instalarem. “Tivemos uma vida muito ativa e este era o nosso refúgio. Queríamos estar mais tranquilos e mais próximos da natureza”, recorda Ivone. No entanto, aquele que seria o retiro para o casal, acabou por se transformar num santuário com mais de 130 animais. Agora, a Quinta das Águias é uma referência nacional no acolhimento de todo o tipo de espécies, desde cavalos, porcos, galinhas, cães, gatos, patos, coelhos ou porquinhos-da-Índia.

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São cerca de cinco hectares de espaço verde, de agricultura biológica e convivência entre seres vivos. Ao entrar na quinta, é difícil não sentir uma conexão imediata com o pulsar de vida que ali se vê, se ouve, cheira e respira. Além do acolhimento e proteção destes animais, a Quinta das Águias tem também uma vertente muito associada à preservação do meio ambiente. É igualmente um santuário para flora selvagem, um projeto agro-florestal autosustentável, uma “arca botânica” de sementes. Um espaço tão rico que não poderia ficar fechado.

“Sentimos que devíamos partilhar este santuário com outras pessoas. Decidimos organizar retiros, hospedar visitantes de todo o mundo”, recorda Joep, afirmando que ali já receberam “mais de mil pessoas de 29 países diferentes em quatro anos”.

A organização conta com o apoio do município de Paredes de Coura e acabou por criar uma relação muito próxima com a comunidade da vila. “Temos uma parceria com a Câmara e com as escolas, com visitas dos alunos à quinta, assim como organizamos o Congresso Internacional Paredes de Coura Vegetariana, que já vai para a 5.ª edição”, diz o homem de origem holandesa.

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Pelo menos em Portugal, a Quinta das Águias tem marcado a diferença na promoção do vegetarianismo como estilo de vida. Ao contrário da entrada daquele matadouro em Penafiel, que significa o fim para milhares de animais, o portão do santuário é a promessa de um novo início para outros, mesmo que não tantos.

Mas é essa a esperança dos que lutam pela causa e dos 120 mil que já mudaram os seus hábitos alimentares. Todos olham para o futuro com otimismo, porque acreditam que o crescimento do número de vegetarianos vai continuar. Que cada vez mais animais terão uma nova oportunidade. Que cada vez menos camiões os vão levar ao destino final.