Quando o segredo é a alma do negócio. Literalmente

Por Ana Tulha

Há um ano, mais coisa menos coisa, Carolina Ruivinho, algarvia de 20 anos, meteu na cabeça que queria fazer uma viagem com quatro amigos. Sem grande folga orçamental, ou não fossem todos estudantes universitários, rapidamente excluíram a opção de recorrer a uma vulgar agência de viagens. Ainda pensaram em procurar voos e alojamento baratos por conta própria. Até que a irmã de um deles lhes falou na Chocolate Box, uma agência com uma premissa distinta: viagens para destinos surpresa. E, de repente, a escolha tornou-se óbvia.

“O facto de o destino ser surpresa foi o que mais nos incentivou, até porque era esse o estilo de aventura de que estávamos à procura”, conta Carolina à “Notícias Magazine”. Mas o preço e o facto de não terem de se preocupar com nada também serviram de empurrão. Depois, foi esperar para saber que destino lhes calharia em sorte. Dois dias antes da partida, a resposta chegou. Rumariam a Madrid, Espanha.

“Adorámos. A cidade foi uma ótima escolha e ficámos num hostel muito amigável, bem no centro. Pudemos andar à aventura, sem nada planeado.” Gostaram tanto que, em fevereiro deste ano, repetiram a experiência, mas no Luxemburgo. E no final de julho até se aventuraram numa terceira viagem, desta feita para Bordéus, França. A premissa, essa, mantém-se inalterada: o destino fica no segredo dos deuses (quase) até à última.

Foto: DR

A ideia ocorreu ao portuense Inácio Roseira em 2016. Licenciado em marketing e conhecedor do mercado das viagens, graças aos muitos anos de trabalho na área, começou a aperceber-se de que, com a facilidade crescente em partir à aventura, é cada vez mais difícil haver viagens que surpreendam. “Certo dia, dei por mim a falar com um rapaz de 19 anos, que com aquela idade já tinha estado no Irão e na Índia, e comecei a pensar como é que ele ainda se poderia surpreender”, elucida Inácio, de 40 anos.

A génese da Chocolate Box nascia aí, com o nome, inspirado numa célebre frase do filme Forrest Gump – “a vida é como uma caixa de chocolates, nunca sabes o que te vai sair” -, a servir de mote. “Normalmente, quando uma pessoa vai viajar, há três coisas que sabe: para onde vai, quanto tempo vai e quanto vai gastar. Pensei em retirar a primeira premissa, para tentar devolver a emoção das primeiras viagens. Foi essa a ideia.”

Para os clientes, fica apenas a missão de escolherem o local de partida, as datas e o pacote pretendido: mais caro e mais completo ou mais acessível e mais básico. Quem arrisca, sabe apenas que lhe pode calhar um de 13 destinos europeus apresentados no site da agência. Tudo o resto é um mistério. “As pessoas querem emoção na vida delas. Hoje em dia, com o acesso que temos a tudo, a margem para sermos surpreendidos é cada vez menor. Só devolvemos essa emoção se introduzirmos um fator de risco. É isso que atrai as pessoas”, sublinha Inácio Roseira.

Mafalda Ferreira, especialista em marketing de consumo, admite que o efeito surpresa é cada vez mais atrativo. “Para um determinado tipo de consumidores”, ressalva. A explicação está na forma como o mercado de consumo tem evoluído. “Hoje em dia, cada vez mais é valorizada a componente da experiência. Quando os consumidores optam por um produto ou um serviço, não estão a valorizar apenas um produto tangível, mas também a forma como o vivenciam. Uma das dimensões é poder fazer algo que eu não sei o que é, que tem este efeito inesperado e que intensifica a componente emocional associada à experiência”, justifica a docente do IPAM Porto, apontando a notoriedade das festas com efeito surpresa como provável ponto de partida para esta tendência crescente.

Do Rebel Bingo à Revenge of the 90’s

Paulo Silva, 37 anos, é um dos responsáveis pela introdução deste conceito em Portugal. Em 2010, numa viagem a Londres, deu com ele numa festa “Rebel Bingo” e rapidamente percebeu que tinha de trazer o conceito para cá. “Basicamente uma festa com música eletrónica onde se jogava bingo e se ganhavam prémios”, resume. E com o efeito surpresa associado, na medida em que o local da paródia só era desvendado pouco antes do festim. Em novembro de 2011, o plano ganhou forma, com o primeiro de uma série de eventos “Rebel Bingo” ocorridos em Portugal. As festas foram um sucesso, juntando milhares de pessoas, mas só até 2014, quando a ASAE lhes bateu à porta, por jogo ilícito.

O conceito das festas mistério não haveria de morrer ali. Em dezembro de 2016, Paulo e um grupo de amigos, de áreas tão distintas como a produção de eventos, a música, a comunicação e a moda, juntaram-se à mesa para pensar uma festa interativa dedicada aos anos 1990. Nascia aí a “Revenge of the 90’s”, com um cariz tão “misterioso” como a da antecessora.

“Achámos por bem continuar a usar essa trademark que já era nossa, porque também provoca aquela curiosidade e aquela sensação de transgressão. Aquele nervosinho cá dentro, de não se saber onde é nem o que vamos fazer. No fundo é mais um truque de marketing sensorial. Porque nós costumamos dizer que não fazemos festas, criamos experiências. Temos os cheiros, os sabores, a música. O efeito surpresa é mais um ingrediente”, refere Paulo Silva.

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De resto, esse lado inesperado não se resume só ao local, que fica por revelar quase até à última. Estende-se aos ingredientes da própria festa, que estão sempre a mudar. “Tentamos criar constantemente novidades, porque há muita gente que vai a todas as festas. Um dia damos ‘slinkys’, noutro ‘Peta Zetas’, noutro bolas de sabão. O mais espetacular que já fizemos foi pôr o carro do KITT a aparecer no meio do palco”, orgulha-se Paulo Silva. A fórmula parece estar a resultar em cheio: o produtor de eventos assegura que, só no último tour da “Revenge of the 90’s”, que durou sete meses e passou por dez locais, receberam mais de 100 mil pessoas.

Das festas para as refeições, de norte a sul, já há uma série de jantares onde a surpresa serve de condimento extra. No caso do restaurante Casa do Chef, o conceito é levado ainda mais a sério. Este espaço, dirigido pelo chef Jorge Rodrigues, já acolheu por duas vezes os “jantares às cegas”. Literalmente. “As pessoas não sabem qual é a ementa e são vendadas assim que se sentam à mesa. Depois, no final, são-lhes mostradas fotografias de vários pratos e as pessoas tentam adivinhar o que comeram”, explica Cristina Rodrigues, uma das responsáveis pelo restaurante.

A ideia e a operacionalização do jantar, essas, são obra da Grand’Ideia, uma empresa de produção de eventos “especializada” em surpresas. Mafalda Ferreira explica que esse tipo de iniciativas deve ser entendido numa lógica de fuga à saturação do mercado. “Neste contexto, torna-se cada vez mais importante introduzir um critério de diferenciação. E um dos critérios é exatamente conseguir surpreender”, vinca a professora universitária.

Subscrições surpreendentes

Desde há uns anos, a lógica do efeito surpresa começou a aplicar-se também aos modelos de subscrição pela Internet. A Nosy, uma espécie de clube de vinhos de traços distintos criado pela portuense Marta Maia há pouco mais de um ano, é a prova disso. “Há muitos clubes de vinho, mas em muitos deles o objetivo não é dar a conhecer novos vinhos. Estão associados a garrafeiras e servem quase para escoar o stock. A Nosy surge para dar resposta a isso”, assegura a empreendedora. Como? Deixando a escolha dos vinhos (três garrafas por mês) nas mãos de experts. Cada mês um.

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Quanto ao suspense, dura até à hora de abrir a caixa, recebida em casa. “Tudo o que criámos, mesmo o packaging, foi à volta do efeito surpresa. Duas semanas antes, divulgamos quem vai ser o especialista daquele mês. Depois, mesmo dentro da caixa, as garrafas vão embrulhadas em papel, que é para haver a parte da descoberta. Aquele momento de desembrulhar os vinhos é quase como quando se recebe um presente de alguém. Funciona como uma descoberta”, reforça a CEO da Nosy.

A mesma lógica aplica-se já a outro tipo de tipo de produtos, que funcionam por subscrição, quase sempre via Internet. E com a promessa do mistério, claro. É o caso dos cosméticos. Ou mesmo de produtos tipicamente portugueses, como sucede com a Tuga Box. O projeto nasceu há quase cinco anos, com uma premissa simples: fazer chegar produtos com ADN nacional aos quatro cantos do Mundo, como forma de enganar a saudade. “É uma caixa que fomenta sorrisos com produtos portugueses”, resume Rita Gomes, que faz questão de empacotar em cada caixa o efeito surpresa: quem as recebe, nunca sabe o que vai lá dentro.

E para os amantes da literatura também já há opções deste cariz. Sara Amado, 44 anos, natural de Lisboa, garante que foi pioneira neste conceito, no que aos livros diz respeito. “Eu tenho um blogue, há dez anos, que é o prateleira-de-baixo, onde falo de livros infantis, numa perspetiva pessoal de mãe, arquiteta e professora. A dada altura, senti vontade de me dedicar mais a este assunto. E falaram-me num clube de livros do Brasil, que é o Leiturinha. Então, pensei em fazer algo semelhante, à minha maneira. Tenho pouco retorno, mas dá-me imenso prazer”, revela.

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O projeto manteve o nome do blogue e o resultado é o envio de livros infantis ilustrados (por subscrição), criteriosamente selecionados por Sara, mediante a descrição que os pais fazem das crianças. E quase invariavelmente com o lado da surpresa associado. “Mas é um efeito surpresa controlado, porque as pessoas sabem o tipo de curadoria que está por trás. Acho que arriscam porque sabem que se a Sara está a escolher vai ser bom”, orgulha-se.

Mafalda Ferreira, especialista em marketing de consumo, admite que essa é uma parte importante da equação: “A questão das expectativas é determinante. O efeito surpresa funciona e até acho que há espaço para que este tipo de aposta cresça, desde que se corresponda à imagem criada no consumidor. Se isso não acontecer, acaba por ser só uma experiência frustrante”.