Quando andar na escola é uma longa maratona

Texto de Filomena Abreu

Os faróis rasgam a custo a neblina que dorme sobre o caminho agreste. Evaristo, 60 anos, 30 mil olhos na estrada, só pára quando chega à entrada da aldeia. Na Uz, em Cabeceiras de Basto, ainda não são sete da manhã quando o motorista põe o autocarro ao ralenti. Para esperar, sereno, as três meninas que chegam sempre antes da alvorada. “Bom dia”, dizem-lhe ainda de noite.

Uma delas, Margarida Bastos, 16 anos, olhos azuis-água – doces, mas cheios de personalidade – vai bem desperta. Acordou pelas 6.15 horas para cumprir uma rotina que só não é mais madrasta porque a mãe, Luísa, não consegue deixar de lado os cuidados. Chama-a todos os dias e prepara-lhe o pequeno-almoço. “Nos 5.º e 6.º anos, quando ela era a única da aldeia a ir, levava-a de manhã à carreira e ia buscá-la à noite. Agora, no 11.º, já vai sozinha.” Entre a casa e o autocarro são mais ou menos dez minutos a pé. Assim que as portas se fecham começa uma viagem quase sem luz, que pode chegar a ter 20 paragens. Tudo vai depender se há gente nelas. Em Moscoso, logo a seguir à Uz, só entra Matilde, ensonada, para ocupar o lugar do costume, ao lado de Margarida.

Margarida e Matilde sentam-se sempre nos mesmos lugares

O 15 e o 16 são sagrados. Como uma herança de família. “A minha prima e a irmã da Matilde já se sentavam nestes lugares.” E agora cabe-lhes a elas irem juntas. Ao todo, são duas horas de estrada. Uma no início e outra no fim do dia. Guiadas por Evaristo. Juntamente com outros que, por viverem longe da escola, dependem deste homem que trata “cada um pelo nome” e que tem “um orgulho enorme de os ver crescer e voar”. Para que cheguem à escola, levanta-se todos os dias às 5.15 horas. Há mais de seis anos. Feliz por ter um emprego que adora.

Evaristo trata cada um dos seus passageiros pelo nome

As meninas costumam aproveitar as viagens para pôr a conversa em dia. Mas, por vezes, a escuridão engana-lhes o muito que têm para contar. Por isso, não é raro que acabem por se deixar dormir entre os solavancos. Não naquele dia, em que chovia e fazia frio. Apuram-se os sentidos. A estrada, um jogo de obstáculos que Evaristo contorna com mestria, é mais difícil em dias assim. “São muitas curvas e contracurvas”, explica Margarida, acrescentando que, quando amanhece, a “vista do autocarro até é bonita”.

Porém, nessas condições, a paisagem são os poucos metros que o nevoeiro cerrado deixa ver. “It’s a kind of magic” (“é uma espécie de magia”), canta Freddie Mercury na rádio. Como se adivinhasse o momento em que o motorista passa à tangente uma ponte estreita de pedra. Margarida estica o pescoço para ver melhor a manobra que conhece de cor. “Ainda temos outra destas mais adiante.”

O caminho até Cabeceiras de Basto é feito de muitos obstáculos

Já Matilde, habituada à rotina, afunda-se no banco. Olhinhos de sono. “O que custa mesmo é acordar de manhã, o resto faz-se bem.” O resto é uma viagem em que “não se consegue estudar”. Por isso, Margarida aproveita os “apoios” que a escola disponibiliza no final das aulas. “Acabamos por rever o que aprendemos, enquanto rentabilizamos o tempo de espera pelo autocarro.” É a única forma. “Quando chego a casa, já passa das 19 horas. Janto, arranjo as coisas para o dia seguinte, tomo banho e vou dormir.” O que acontece geralmente entre as 21 e as 21.30 horas. O corpo não aguenta mais.

“No inverno, a minha filha não chega a ver a luz do dia na aldeia dela”, atesta Luísa. Acontece o mesmo a Matilde, que tem uma média de 11 valores. “Acho que o cansaço me prejudica um bocadinho.” Margarida anda entre os 15 e os 16. “Quando estou mais cansada não sou tão produtiva nas aulas, mas consigo ter boas notas.” Para ambas, fazer qualquer atividade extracurricular é impensável. Até tinham pensado no ginásio ou na patinagem. “Só que depois já não tínhamos autocarro.” E isso não era uma opção. “Se não tivéssemos transporte tinha de ser a nossa família a ir levar-nos e buscar-nos à escola. Seria muito dispendioso”, diz Margarida pelas duas. Para Matilde, “já é tudo tão normal que nem vale a pena” queixar-se.

A um ano e meio de deixar o secundário, Margarida atreve-se a prever o futuro com um sorriso: “Ainda vou sentir saudades disto”.
Todos os dias, centenas de crianças são transportadas de lugares ou aldeias distantes para as escolas. Essas deslocações – uma responsabilidade das autarquias – são articuladas com os estabelecimentos de ensino para minimizar o impacto que as rotinas podem ter na aprendizagem dos estudantes.

Maria do Céu Caridade atesta que a escola faz de tudo para minimizar os danos que as longas viagens fazem nos alunos

Maria do Céu Caridade, diretora do Agrupamento de Escolas de Cabeceiras de Basto, não nega que “a realidade destes alunos é difícil”. No entanto, assegura que não estão de maneira nenhuma condenados ao insucesso. “Temos prova de muitos que fazem um percurso longo nos transportes escolares e conseguem ter resultados muito positivos.” É o caso de Margarida. No entanto, tal implica “sempre um acréscimo de esforço, de trabalho e de dedicação por parte do aluno”.

Uma vez que se torna necessário que haja um controlo muito maior do seu tempo. De descanso e de outras atividades a que se possam dedicar. “Enquanto um aluno que reside perto da escola se pode levantar às 7.45 ou às 8 horas para entrar às 9.15, estes têm de se levantar às 6 horas.” E a escola está ciente das consequências. “Se o descanso e o estudo não forem bem organizados, aproveitando o fim de semana e os momentos extra-aulas, com certeza que não terão sucesso.”

Atenta ao fator da distância, a escola tem especial cuidado na hora de atribuir os horários aos que mais sofrem com as deslocações. “Esses alunos estão dispersos pelas aldeias. Portanto, não pode haver um autocarro que os leve a qualquer hora para casa, têm de esperar uns pelos outros. O que fazemos é organizar as turmas de forma a que os da mesma zona e circuito de transporte saiam à mesma hora.” O que “tanto obriga a um esforço por parte da escola como por parte da autarquia”, no sentido de conciliar o melhor possível esses horários. “Para que os alunos que são os primeiros a entrar não sejam os últimos a sair. Para que acabem as aulas o mais próximo possível da hora do transporte e que esse transporte escolar seja o mais cedo possível.” Uma realidade que não afeta só os alunos do básico e do secundário, mas é vivida também pelas crianças do primeiro ciclo e do pré-escolar, uma vez que, “na maior parte das aldeias, as escolas fecharam porque só tinham um, dois ou três alunos”.

“Temos de nos organizar, para permitir a essas crianças terem um ensino de qualidade, para desenvolverem todo o potencial, minorando esses ‘senãos’, esses problemas que vão aparecendo pelo facto de estarem distantes da escola. Isto é uma situação um bocado esquecida. Todos nós falamos dos professores que se deslocam todos os dias para a escola e às vezes esquecemo-nos que isso acontece também com os nossos alunos.” Nesse sentido, continua Maria do Céu Caridade, os docentes tentam que todo o trabalho seja feito em ambiente de aula. “Têm o cuidado de no conselho de turma conversarem sobre isso. Haverá meninos que chegam muito tarde a casa e se não fizerem os trabalhos é porque não terão tempo.

Muitos deles ainda fazem tarefas, algumas até no campo. Ajudam com o gado, outros têm avós idosos, um acrescento que outros jovens não têm nos dias de hoje.” Luísa, a mãe da Margarida, assiste de perto ao esforço da filha. O que a leva a dizer, sem rodeios, que tem “um enorme orgulho” na sua menina. “Um caso extremo no nosso concelho”, reconhece Susana Pavão, professora de Física e Química.

Susana Pavão, professora de Física e Química de Margarida ajuda Margarida a gerir as expectativas

Diogo Cardoso é digno de estar na mesma categoria. Também ele é caso único na freguesia de Sarzedas, em Castelo Branco. De tal maneira que o pequeno de 14 anos anos é conhecido como o príncipe da Lisga, por ser, desde há muitos anos, a única criança residente naquela lugar rodeado de floresta, sem rede, sem Internet, aonde nem o autocarro vai. Tem de ser João, o taxista, a apanhá-lo e a levá-lo à paragem. “Acordo às 6.15 horas. O João costuma aparecer meia hora depois. É o tempo de tomar o pequeno-almoço, vestir-me e sair.”

Nos 20 quilómetros que fazem juntos falam do que lhes apetece, quando Diogo não vai a dormir. João pergunta ao miúdo o que fez no dia anterior, depois de chegar. “Às vezes, ajuda os pais em casa ou no campo.” Há uma grande cumplicidade entre os dois. E segredos que não se revelam. São questões de namoro, lê-se no entreolhar. A escola vai mais ou menos. “O Inglês é que é muito complicado.” Mais até do que a Matemática e o Português. “É que em Português eu ainda entendo as palavras”, justifica-se, brincalhão. As três disciplinas juntas já o fizeram reprovar dois anos. “Uma chatice. Fiquei sem telemóvel. Uma chatice”, repete o príncipe, mesmo que um telemóvel numa Lisga sem rede não lhe sirva de grande coisa.

Diogo, o príncipe da Lisga, e João, o taxista que todos os dias o vai buscar e levar a casa

Se o dia está soalheiro a viagem corre sem sobressaltos. Às vezes é complicado quando há gelo na estrada. É preciso ir mais devagar. João calcula tudo na noite anterior. É que aqui os minutos contam ainda mais. “Uma vez perdi o autocarro. O João adormeceu”, denuncia Diogo. E riem-se os dois dessa vez sem exemplo. Chegados às Sarzedas, despedem-se na Estrada Nacional 233, ao lado do único restaurante da freguesia. No mesmo sítio onde o autocarro também pára, diariamente. Voltarão a ver-se depois das aulas. A partir dali, Diogo está por conta própria. Quando o autocarro chega, valida o passe e arranja um lugar no veículo já composto. “Agora não posso dormir.

Uma vez fechei os olhos. Quando dei conta já tinha passado a paragem da escola e tive de andar a pé para trás.” As aulas começam às 8.30 horas. Mas Diogo, depois de andar 45 quilómetros até à Escola Afonso de Paiva (se juntarmos o táxi ao autocarro) ainda tem de esperar 40 minutos para entrar na sala. “Fico a falar com os meus amigos”, diz, conformado. “O tempo que se perde nas viagens não é problema. Fazer o mesmo percurso escolar dos meus irmãos é importante para mim e para a minha família”, termina.

Celeste Rodrigues, presidente da Junta de Sarzedas, conhece bem o caso e corrobora a afirmação. “Foi tudo conversado com os pais. Havia várias alternativas, uma delas era ficar num lar em Castelo Branco, ou até ir para Oleiros, que fica a 12 quilómetros, embora seja já noutro concelho. Mas a opção do Diogo e da família foi esta, por causa do bom ambiente que tem em casa.” Segundo o Ministério da Educação, existem no país 19 residências para estudantes do ensino básico e secundário, com um total de 780 vagas, geridas pelas autarquias. Servem para casos como estes. A estas casas ainda acrescem outras quatro integradas em escolas agrícolas e de desenvolvimento rural, com capacidade para acolher 200 alunos. Diogo preferiu o conforto de casa. E todos compreenderam.

“Felizmente, nas nossas aldeias, isto de partilharmos, de fazermos parte da solução e do que é melhor para os nossos meninos é uma mais-valia. Eles tinham todos os motivos para a desmotivação, para contribuírem para as elevadas taxas de absentismo. E nós não temos alunos na nossa freguesia que tenham desistido do ensino. O que significa que este acompanhamento é muito importante”, constata a autarca, frisando a importância de ter pessoas certas a fazer o trabalho certo. “O João dá-se muito bem com os meninos que transporta. Trata-os com afeto, com carinho. Brinca com eles. Faz com que uma viagem tão longa de táxi, e que poderia ser muito maçadora, se torne divertida. Com música.

Com conversa. Toda essa vivência faz com que nos sintamos parte da família.” Numa semana, há dois dias em que Diogo chega à aldeia pelas 14.30 horas. Nos outros três dias, só às 19.15 horas. Nesse caso, o táxi que vai para a Lisga, e que integra o transporte escolar pago pela Câmara de Castelo Branco, acaba por ser uma mais-valia, apesar da despesa elevada, refere Celeste, já que lhe “permite chegar a casa mais cedo”. E, ao contrário de Margarida, que paga 36,25 euros pelo passe escolar, o de Diogo é gratuito.

O financiamento dos transportes escolares é feito através do Fundo Social Municipal, uma transferência financeira do Orçamento do Estado para as autarquias, gerida pela Direção-Geral das Autarquias Locais. O direito para essas deslocações só se verifica se o aluno residir a mais de três quilómetros da escola que frequenta e se a matrícula ocorrer em cumprimento com as normas estabelecidas. Isto é, se o Estado disponibilizar uma vaga numa determinada escola, mas o aluno preferir outra mais distante, não terá direito, nos termos da lei, a apoio para o transporte. A gratuitidade nas deslocações escolares, alargada a todo o ensino obrigatório, está dependente da adesão dos municípios ao novo regime de competências. O que pode ocorrer até 2021.

João Lourenço é acordado todos os dias pela mãe

Em Mértola, Beja, ainda não aconteceu. João Lourenço, 15 anos, paga todos os meses 60 euros pelo passe escolar. Mas nem é isso que o deixa maldisposto. É acordar cedo. Está sentado na cabeceira da mesa da cozinha a comer os cereais, de cara fechada. Graça Mestre, a mãe, que o levantou às seis da manhã, sorri da porta. “Tenho sempre muito medo que se deixe dormir. Ele é bom miúdo, mas acorda com mau feitio.” De Monte Fialho à escola é mais ou menos uma hora. “Ele fica na gare e depois ainda anda uns minutos a pé até à EB 2,3 de S. Sebastião de Mértola.” Naquele dia o mau feitio estava pior. E tinha motivo. “Hoje só tenho uma aula das 9 às 10.30 horas.

E a minha mãe obrigou-me a levantar cedo na mesma porque não tenho outro transporte a não ser o autocarro, que sai daqui já depois das 6.40 horas. Se o meu avô não me conseguir ir buscar, tenho de esperar o dia todo pela carrinha das 16 horas.” Graça Mestre encolhe os ombros. “A gente está ao pé de tudo, mas também está longe de tudo. A estrada é boa. O problema é a distância que não se pode encurtar.” Há dias em que João chega a casa já de noite, quando as aulas se estendem tarde adentro. Às sextas não lhe resta outra opção a não ser esperar pelas 16 horas. Mesmo que acabe as aulas às 12.30 horas.

“Como às vezes tem lá os colegas fica a conversar.” João está no 10.º ano. “É um aluno razoável, até agora tem passado todos os anos.” Graça pensa melhor. “Se calhar isto de se levantar muito cedo não ajuda a estar concentrado.” No mesmo sítio, sem tirar os olhos da tigela, João acrescenta o que lhe vai na alma. “Eu devia estar dormindo.” O que por norma faz nas horas de viagem. Depois de chegar, fica na escola à conversa com os amigos, até ao toque de entrada. “Tenho sempre de esperar entre 40 a 45 minutos, o que ia ficar a fazer?”. A mãe continua a sorrir da porta e desculpa o mau feitio do filho. “Ele é o único da idade dele aqui, ao menos nós antigamente éramos muitos. Podíamos brincar. Ele já não teve isso.”

Jorge Matias, o motorista que todos os anos vê o número de alunos diminuir

Jorge Matias, o motorista que leva João, também fala do passado com saudade. “Há 14 ou 15 anos eram dois autocarros que faziam a carreira. Iam cheios. Agora, um é demasiado grande para tão poucos.” Em todo o caso, prefere frisar: “Agora, é melhor do que no nosso tempo, que tínhamos de fazer o caminho a pé se queríamos estudar na escola primária. Ainda andávamos cinco quilómetros até apanhar o autocarro. Hoje, quase que os vamos buscar a casa”. Quando Ana entra, a conversa anima e os holofotes passam a estar no futuro. Arrancado a ferros, João lá acaba por dizer que quer seguir arqueologia.

Mas a colega de escola contrapõe: “Para isso é preciso estudar!”. O rapaz bufa. Tem média de 10 ou 11, tinha de fazer melhor as contas. Ainda era cedo e não lhe apetecia. Acordar cedo é mesmo um problema. Mas garante que não é por causa disso que as notas são baixas. “Eu é que estudo pouco”, afirma com sinceridade, sem vontade de abrir mais a boca. Jorge dá uma gargalhada. “O João é uma joia de pessoa, mas de manhã não é muito falador. Poucos são, não é? É do sono. Às vezes custa-lhes acordar. É normal.” Se se atrasam, vale-lhes Jorge. “Temos confiança com eles para esperar. O importante é levá-los a todos. Isto é uma camioneta de carreira, não de corridas”, brinca.
Uma vez, conta o motorista, o João também se atrasou.

“Fui-lhe bater à porta. ‘Vá João, vamos lá embora’. Com tranquilidade.” Assaltado pela tristeza, pensa como será o dia-a-dia daqui a uns anos. “Quando o João deixar de vir, o monte dele ficará vazio, não terei ninguém para apanhar por lá”, diz. Aponta para uma escola primária abandonada, algures no caminho. “Há 15 anos que é a casa das osgas e das aranhas. Não é a única por aqui. É uma pena. Uma pena.” Por causa da falta de jovens por aquelas bandas, um dia até pode ser que Jorge deixe de ter aquele trabalho, do qual tanto gosta. João vai de olhos postos no telemóvel. Não diz nada. Talvez vá a pensar que não vê a hora de ter oportunidade de acordar todos os dias mais tarde. A alegria de uns vai sempre ser a tristeza de outros.