Quando a música é um “medicamento” afinado e sem contraindicações

Engana-se quem pensa que a música tem unicamente um desígnio cultural. Pode ser moldada por um musicoterapeuta com um objetivo medicinal ou utilizada para humanizar o ambiente de uma unidade de saúde.

Sofia é de Fátima e (con)vive há dois anos com um cancro que “não a quer largar”, mas diz ser mais teimosa. “Não lhe tenho facilitado a vida. Canto e afasta-se com músicas que exprimem o que não quer ouvir”, comenta a assistente técnica numa escola secundária, que teve contacto com a doença oncológica aos 38 anos, durante a gravidez do terceiro filho.

As dores sentidas nas ancas e na coluna atiraram-na para uma cadeira de rodas durante cinco meses, deixando-a dependente do marido. “Qualquer movimento que fazia era uma gritaria sem medida”, lembra, enquanto conta que o diagnóstico de cancro da mama, com metástases nos ossos, chegou às 20 semanas de gestação.

Nessa altura, fez sete sessões de quimioterapia e o Santiago nasceu às 36, saudável. Como Sofia não estava a conseguir lidar com a situação, por sugestão da psicóloga iniciou sessões de musicoterapia em fevereiro de 2017. “Contrariada, porque a música não fazia sentido para mim.”

Trata-se de uma intervenção estruturada e sistematizada, com objetivos terapêuticos, realizada por um profissional com formação académica superior, que utiliza como recurso música, sons e silêncio. “Tem um potencial incrível e uma ação holística no ser humano atuando nas dimensões motora, cognitiva, emocional, social e espiritual”, refere Ana Esperança, musicoterapeuta e presidente da Associação Portuguesa de Musicoterapia (APMT), sublinhando que este tipo de atividade clínica pode mudar a vida das pessoas.

“Não é uma terapia alternativa, mas complementar, como é a terapia da fala e a psicologia. Ainda é procurada como último recurso, porque a música está mais associada ao lazer, à cultura e à performance do que a contextos terapêuticos.”

“[A musicoterapia] Tem um potencial incrível e uma ação holística no ser humano atuando nas dimensões motora, cognitiva, emocional, social e espiritual”
Ana Esperança
musicoterapeuta

Humanizar pelo bem-estar

Nuno Ramos, de 35 anos, e Teresa Nunes, de 39, pertencem à equipa de 23 músicos intervenientes do projeto Música nos Hospitais da Associação Portuguesa de Música nos Hospitais e Instituições de Solidariedade (APMHIS), pelo que intervêm sempre em duplas semanalmente.

Teresa começou em outubro de 2004, quando os primeiros músicos intervenientes em meio hospitalar iniciaram os estágios. “Foi uma experiência que me marcou profundamente”, assinala, e sublinha “a experiência de tocar olhos nos olhos, sem filtros, para alguém que não conhece, que está numa situação de fragilidade física e emocional”.

Para Nuno, representa muito ter integrado o projeto há cerca de um ano e meio. “É possível fazer com que as pessoas saiam por momentos do clima negativo onde muitas vezes se encontram numa instituição de saúde”, sustenta. E observa que, atendendo ao feedback, pensa que o projeto devia chegar a um maior número de locais, profissionais e doentes.

Música nos Hospitais é um modelo adaptado à realidade portuguesa de um projeto que a pediatra Ana Jorge conheceu em Estrasburgo, França. “Foi concebido na perspetiva de proporcionar bem-estar, criando momentos de rotura no ambiente institucional, de forma organizada, contribuindo para que se torne mais humanizado e para que proporcione a otimização da qualidade de vida do doente, procurando também chegar a familiares e profissionais de saúde. Tem por base a formação de músicos, durante cerca de 400 horas, para poderem ser intervenientes em ambiente de saúde”, explica a presidente da APMHIS e ex-ministra da Saúde.

A primeira experiência em Portugal foi no serviço de pediatria do Hospital Garcia de Orta, com músicos franceses e italianos

A primeira experiência em Portugal foi no serviço de pediatria do Hospital Garcia de Orta, com músicos franceses e italianos, durante um seminário de divulgação do projeto. Depois, os portugueses interessados em aderir ao projeto fizeram a formação, entre 2004 e 2005, e, em 2006, foi formalmente constituída a associação, que hoje chega a sete instituições (seis da Grande Lisboa e uma no Porto).

Para exemplificar os sinais positivos em relação ao trabalho desenvolvido, Ana Jorge acrescenta: “Os profissionais querem saber quando regressamos, se suspendemos as intervenções e algumas crianças com patologias crónicas que pedem para ir ao hospital fazer os tratamentos no dia das intervenções”.

A antiga ministra já presenciou inúmeros momentos e recorda um dos mais marcantes: “Uma senhora de origem goesa estava internada há algum tempo sem comunicar verbalmente. Com a entrada dos músicos no quarto, que cantavam uma música tradicional goesa, foi como se despertasse de um sono e começou também a cantar”.

Diana Matos é responsável pela coordenação executiva da APMHIS e faz parte do grupo de músicos que fundaram a associação em conjunto com Ana Jorge. Licenciada em música, ensina alaúde, acompanha coros, faz animações para diversos públicos e, neste projeto, tem trabalhado em várias instituições e serviços de pediatria, geriatria, obstetrícia, oncologia e cuidados continuados e paliativos.

Diz que a cativou aliar a música a uma parte mais social, de contacto mais próximo com as pessoas, e congratula-se por sentir que faz a diferença na vida do outro. “Ainda que por instantes, posso contribuir para que a pessoa saia da esfera da doença, do sofrimento, da tensão, do tédio ou da apatia e ganhe vida de qualidade”, destaca.

“Uma senhora de origem goesa estava internada há algum tempo sem comunicar verbalmente. Com a entrada dos músicos no quarto, que cantavam uma música tradicional goesa, foi como se despertasse de um sono e começou também a cantar”

A mentora da iniciativa chama a atenção para outras intervenções com música, como a musicoterapia, cujos objetivos são diferentes da Música nos Hospitais. “A dupla de músicos toca e canta junto de cada criança ou adulto, procurando estabelecer relação através da música e proporcionando momentos de bem-estar, portanto, sem finalidade terapêutica ou de animação”, sustenta Ana Jorge.

De facto, a musicoterapia “é uma disciplina única e não o somatório da psicologia com música”, frisa Ana Esperança, que encara com positivismo a existência de projetos que usem igualmente a música. Porém, indica que é preciso saber a diferença. Segundo explica, “a musicoterapia não é momentânea e contribui para a resolução de problemas, até porque o musicoterapeuta elabora planos terapêuticos com objetivos delineados com base nas necessidades da pessoa”.

Hoje, Sofia reconhece que “estava enganadíssima”, pois, com a musicoterapia, criou letras que lhe permitiram falar de emoções, negativas e positivas. “Estou muito grata por ter conhecido esta vertente da música, que me tem ajudado não só no cancro, mas com outras situações que tinha dificuldade de gerir. A primeira música criada fala sobre os meus pais e foi com ela que fiz o luto, 11 anos depois de falecerem”, menciona a mãe de Santiago, também chamado de Salvador, por ter mesmo sido “salvador”. “Ajudou-me muito, lutamos os dois e estamos muito felizes”.