É possível apagar o nosso rasto online? Fomos descobrir

Quem navega pela internet fica eternamente subjugado pelo digital. Os nossos dados estão online e o anonimato é hoje conceito inexistente. Somos da rede na mesma medida em que a usamos. Sem caminho de regresso.

Consultar o email, fazer uma busca, pesquisar num site, procurar direções em mapas online, guardar documentos numa nuvem, partilhar pastas de ficheiros. Quase tudo o que parece corriqueiro no dia a dia de quem usa a internet deixa pelo caminho digital um enorme rasto de informações pessoais. A maior parte das vezes não damos conta disso, mas o certo é que esses dados podem ser utilizados para os mais variados fins. Muitos deles maliciosos.

A privacidade online é hoje quase mito, de tão impossível de alcançar. “Uma grande poesia”, como classifica José Tribolet, fundador e presidente do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Investigação e Desenvolvimento (INESC), em Lisboa, especialista em engenharia informática com formação no Massachussetts Institute of Technology (MIT).

Para este especialista, todo o percurso que fazemos quando navegamos na internet é como que uma marca que irá permanecer eterna, pegadas impossíveis de eliminar por muitas precauções que sejam tomadas. “Todo o trajeto feito num computador fica sempre exposto, é inevitável. Desde os sites a que acedemos até aos servidores utilizados, tudo é vulnerável. Duvido que alguma vez essas marcas possam ser apagadas, até porque não há nenhuma instituição que tenha capacidade para validar tal.”

Além do mais, existem outros interesses que impedem a tomada de medidas de fundo que alterem o panorama. Uma espécie de espiral interminável que não deixa morrer o atual cenário e, pelo contrário, o torna mais imparável a cada dia que passa. “Os produtores dos cinco maiores browsers são empresas que exploram comercialmente os nossos dados, como o mercado digital de marketing, por exemplo. Por isso, são parte interessada em que a situação se mantenha inalterável”, explica Luís Antunes, diretor do Centro de Competências em Cibersegurança e Privacidade da Universidade do Porto.

Luís Antunes duvida que o cidadão comum tenha noção de como “está a ser vigiado 24 horas por dia”, um autêntico Big Brother controlador global como no livro “1984”, escrito em 1949 pelo britânico George Orwell, qual premonição. “Vivemos numa sociedade global e cada vez mais pública, a liberdade individual está em causa. É esta a sociedade que queremos?”, questiona o responsável da Universidade do Porto.

A vulnerabilidade digital é delicada não apenas para o cidadão comum que navega pela internet como para as mais altas instâncias. Em abril deste ano, José Tribolet surpreendeu ao afirmar que “com 100 mil euros e uma pequena equipa conseguiria deitar abaixo o Governo em 15 dias”. Declarações de choque para provar que a segurança nas redes é quase lirismo de quem ainda acredita em sistemas seguros de privacidade online. “A fragilidade dos nossos sistemas vitais, dos sistemas críticos que fazem a sociedade funcionar, é assustadora”, criticou então.

Só a tecnologia nos salvará

Tudo o que fazemos online é suscetível de deixar pistas sobre o que somos e o que fazemos no nosso quotidiano. Um dos exemplos mais claros é o do Google Maps Timeline, que permite aos utilizadores de smartphones (ou seja, quase toda a população adulta) saber ao pormenor todo o percurso pessoal nos últimos dias, meses, anos. Basta aceder ao programa, escolher uma data concreta e a Google dir-lhe-á por onde andou e o que fez. O sistema GPS do telemóvel permite livremente que os apontamentos pessoais fiquem gravados, mesmo que o acesso às redes de Wi-Fi ou de 4G não esteja ligado. É a vida registada nos arquivos das redes, o controlo pessoal de nós próprios a fugir-nos por entre os dedos.

Resumindo, o que somos na internet não é secreto e, pior, fica para a posteridade. A nossa identidade digital é, obrigatoriamente, resultado da perda total da identidade pessoal? Até que ponto é possível salvar o que ficou para trás online é a grande questão a que especialistas mais têm prestado atenção ultimamente. “Quem nos trouxe até este ponto foi a tecnologia e será a tecnologia a tirar-nos daqui. Como? Só a inovação o dirá e fará nos próximos anos. Mas sim, tenho esperança de que a tecnologia nos tire deste buraco em que nos colocou”, acredita Luís Antunes.

Diz o bordão popular que tudo o que aparece na internet fica na internet. Algo publicado neste preciso instante poderá ser encontrado daqui a um ano, daqui a dez anos, daqui a décadas. “Não há forma total de apagar o rasto, por muito que se tente viver anónimo numa sociedade que é cada vez mais densa e global”, frisa José Tribolet. O risco de tais dados poderem ser utilizados para uso ilegal “é inevitável” e as probabilidades de poderem ser protegidos escassas. “O grande perigo é que haja no mundo físico quem os use ilegalmente para outros fins.”

“Vivemos numa sociedade global e cada vez mais pública, a liberdade individual está em causa. É esta a sociedade que queremos?”
Luís Antunes
Diretor do Centro de Competências em Cibersegurança e Privacidade da Universidade do Porto

Numa perspetiva pessimista, quem utiliza a internet (ou seja, quase todos) como que deixa de poder mandar em si mesmo e de controlar o que é seu. Evitá-lo é tarefa que exige exercícios praticamente inconciliáveis com o mundo global em que se vive. O especialista americano Bob Gellman é radical: “A primeira e única coisa a fazer é deixar de usar o Google. Quanto mais o usamos, mais ele sabe sobre nós do que qualquer outra instituição”.

Em declarações ao jornal “The New York Times”, Gellman aconselha o uso de outro motor de busca, o DuckDuckGo, fundado em 2008 em Filadélfia (EUA) e conhecido por garantir a privacidade dos utilizadores ao não registar qualquer informação pessoal (ver abaixo).
José Tribolet concorda que juntar as palavras privacidade e internet no mesmo conceito é deveras difícil. Mas aponta soluções que podem conduzir a consultas mais seguras se a intenção for limitar o rasto pessoal. “Motores de busca como o Firefox ou o Google têm modos de navegação anónima, por exemplo. Mesmo assim não é garantido que assim não sobrem dados que depois permaneçam na rede. Quem quiser permanecer anónimo, o melhor que tem a fazer é criar personalidades falsas que impeçam qualquer tipo de confusão com a pessoa própria.”

Parar para refletir

Outra fonte de contaminação que mina a capacidade de proteção pessoal na internet são as caixas de email. Também aí os dados estão vulneráveis, por muito que comecem a aparecer soluções que permitam contrariá-lo. Como o ProtonMail, que assegura políticas de privacidade que protegem o anonimato de quem o usa, impede a recolha de informações pessoais e possibilita que toda a correspondência online seja encriptada, ou seja, codificada ao ponto de terceiros não lhe poderem aceder.

“É tempo de parar para refletir. O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados foi um bom contributo europeu para tentar solucionar o problema, mas não o soluciona totalmente. Lá está, terá de ser a tecnologia a criar soluções para abater o monstro que criou”, prevê Luís Antunes, que, através do Centro de Cibersegurança da Universidade do Porto tem estudado o problema e pensado em soluções para o combater.

Tal como no ProtonMail, encriptadas são também as mensagens trocadas no WhatsApp, aplicação que cria chaves de segurança através de um sistema desenvolvido pela Open Whisper Systems, o qual garante que tudo o que é escrito apenas pode ser lido pelos emissores e recetores das mensagens. No entanto, nem tudo são rosas e este processo aparentemente infalível – tão infalível que nem as agências de espionagem a ele supostamente conseguem ter acesso – também pode ter falhas.

Há dois anos, uma universidade americana estudou o WhatsApp e detetou pequenas vulnerabilidades, nomeadamente a possibilidade de terceiros acederem a conteúdos que não lhes são destinados. O Facebook, proprietário do WhatsApp, garantiu que o problema foi entretanto resolvido. As dúvidas, essas, permaneceram. Esta semana, na Web Summit realizada em Lisboa, o Facebook anunciou estar a estudar o alargamento da encriptação de mensagens a todo o Messenger, solução atualmente apenas disponível se for escolhida a opção “Conversas Secretas”.

“Sem dúvida que a tecnologia nos oferece boas ferramentas, o uso que dela fazemos é que deve ser tido em conta. É uma questão de equilíbrio. Nada substitui a ética e o sistema de valores. Uma guerra permanente entre o bem e mal, digamos”, define José Tribolet.
O rasto digital é uma realidade incontornável, herança de uma sociedade cada vez mais próxima, embora menos segura. Como se todos fossem de todos, sem qualquer barreira que o impeça.

Dicas para uma navegação mais segura

DuckDuckGo
Motor de busca que não coleta os dados pessoais dos usuários.

Startpage.com
Motor de busca com modelo que exclui informações privadas dos utilizadores.

ProtonMail
Serviço de email que permite mensagens encriptadas.

CounterMail
Fornecedor de correio eletrónico que também é conhecido por encriptar os conteúdos dos utilizadores.

Hushmail
Email que codifica mensagens e pode ser usado em diversas plataformas.

Disconnect
Plugin que impede o rastreamento de dados e permite bloquear quem tenta controlar as informações acedidas via qualquer browser.

Navegação anónima no Google e Firefox
Embora não totalmente segura, esta alternativa permite que menos informações privadas sejam coletadas digitalmente.