Primeira ocorrência do resto da vida
O último minuto de um estado da vida, talvez o fim da juventude. O início de uma cabeça vigiada, de sustos vindos pelo ar, translúcidos e amarelos como folhas de Outono. A nova vida do rapaz começou debaixo de um viaduto em Lisboa, com um guiador de bicicleta a saltar entre mãos como se fosse uma brincadeira de miúdos. O rapaz levantou-se para ouvir a acusação:
— Lembro-me de estar no Campo Grande, ter-me dirigido ao outro rapaz… sim… e pedi-lhe, prontos, se podia andar de bicicleta. Mas depois houve uma ocorrência e não me lembro de mais. Já não me lembro do que aconteceu a seguir.
[O que ele acabara de ouvir: no dia 7 de Junho de 2017, pelas 18h30, aproximou-se de um jovem que levava a bicicleta pela mão, encostou-lhe a cabeça à cabeça, agarrou-lhe no pescoço e disse “preciso dessa bicicleta”, e “ó meu, passa para cá a bicicleta”, querendo apropriar-se da bicicleta, apenas não o conseguindo pela oposição do outro rapaz.] Agora o futuro dele estava suspenso deste guiador, a campainha sempre a tocar.
— O senhor nesta altura estava doente?, perguntou-lhe a juíza.
— Sim.
— E qual era a doença?
— Psicose.
— Estava descompensado, nesse dia?
— Como assim?
— Às vezes, nestes problemas, se tomarmos a medicação, podemos levar uma vida normal, se não tomarmos, a cabeça começa a funcionar de outra forma e fazemos coisas que não sabemos…
O rapaz ficou a pensar no que ouvia da juíza. Talvez não tivesse certeza do valor científico da afirmação, pelo menos para o seu caso. (A juíza pode até dizer uma verdade, mas eu é que sei, eu é que passo por isto, diziam as pausas nos olhos do rapaz.) O dono da bicicleta mais um professor de ginástica, que fora chamar a polícia no Campo Grande, viram os seus olhos e estavam “vidrados”, parados num sítio fora deste. O rapaz assaltado até lhe disse: “Dou-te outra coisa, a bicicleta não dou”. E o rapaz doente sorriu-lhe e foi-se embora. Dali foi meter-se com um grupo de idosos, tirou umas chaves de carro e telemóvel. Foi preciso um polícia e vários homens para o algemarem.
— Nesta altura não estava a ser vigiado. Não estava a fazer consultas, nem medicação, é isso.
— Onde é que vivia?
— Vivia em casa dos meus pais. Ainda vivo.
Depois falou do emprego num supermercado, da hora a que se levanta, da hora a que chega a casa, de quanto ganha. E de como leva a vida entre os buracos da doença mental. No dia do crime, segundo o relatório médico, um ladrão de bicicletas inimputável.
— Estou a ser seguido há cerca de dois anos.
— Começou a ser seguido pouco tempo depois deste incidente com a bicicleta?
— Foi no acto, disse o rapaz. Fui metido numa carrinha e levado para a urgência psiquiátrica.
Toma um comprimido por dia, paliperidona. Um antipsicótico. A juíza pedia-lhe mais substância dos sonhos, mesmo dos acordados.
— Diz que tem uma psicose. Consegue exemplificar melhor?
— Bom, costumava ouvir vozes. Sentia-me observado. Sempre que saía de casa, sentia que um Olho me perseguia. Cheguei a sair de casa de noite sem dizer nada aos meus pais.
— Mas tem consciência que tem que tomar a medicação, que tem que fazer tudo direitinho?
— Sim.
O procurador da República pediu-lhe mais.
— E outras coisas, antes?
— Sentia que era Deus que me ordenava coisas. Recordo-me vagamente de andar pela linha de comboio à noite. Recordo-me de andar com uma caixa e…
O rapaz respirava com rapidez no seu pescoço fino. Mas soltaram-no destes cabos de navio.
— Deixe estar, deixe estar, disse o procurador.
— Deixe estar, disse a juíza.
Fiquei com vontade de saber o que havia na caixa, mas não sei e ainda bem, não é connosco, nem com o Olho, nem sequer com Deus. O rapaz tem 20 anos. A namorada deu-lhe a mão e seguiram calmos pela rua.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)