Notre-Dame: portugueses em Paris sem chão mas ainda com céu

Foto: Benoit Tessier/Reuters

Texto de Filomena Abreu

“Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.” António Rebelo Lopes, o primeiro português ordenado diácono na diocese de Paris, precisamente na Catedral de Notre-Dame, podia ter feito uma de duas coisas naquele Domingo de Ramos. O dia anterior à tragédia.

Ou tratava das leituras, ou estava ao serviço do altar, encarregando-se também da mensagem final aos fiéis. Calhou-lhe a segunda. Foi a última vez que pisou a velha rainha. Tão desgastada, que a Cidade Luz se verá forçada a remodelar.

“Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.” Disse-o inundado de alegria. Porque era a grande celebração que marca a entrada na Semana Santa dos cristãos. “Ámen”, ecoou nas naves a resposta da assembleia. Incapaz de prever o pavio curto que a paz desejada teria.

A do diácono “acabou-se com o incêndio”, assume consternado. “Foi um pedaço da minha casa que perdi.” Foram mais de 850 anos de história da humanidade. Dois terços do telhado. Num inferno que chegou sorrateiro, ao final de segunda-feira, 15 de abril. O alarme soou duas vezes com um intervalo de 20 minutos. Pelas 18.50 horas locais (17.50 em Portugal continental) o assunto estava nas mãos dos bombeiros.

Ninguém há de esquecer. Um curto-circuito, apontam as investigações preliminares. Terá começado nos andaimes montados junto às águas furtadas, onde havia traves do século XII. Espalhou-se pela zona da “floresta”, a estrutura em madeira, feita com 1 300 carvalhos, que dava suporte à cobertura da catedral francesa.

Começou no alto, como que vindo do céu, para depois se elevar ainda mais e consumir o pináculo (em francês, “fléche”), até o derrubar aos olhos do Mundo. Caiu. Desfeito. “Comme une Fléche”. Rendido. Ao som do horror de quem levava as mãos à boca, à cabeça, ao coração. “Esta catedral deu sentido à minha vida. Foi como se perdesse uma parte de mim.” António, olhos postos naquele Domingo de Ramos, recorda o futuro impossível de acontecer.

“Ia voltar na quarta-feira [dia 17] para a missa crismal e consagração dos óleos. Eu e todos os diáconos e padres da diocese de Paris…”. As palavras somem-se no murmúrio de dor. “Está toda a gente ferida. Os católicos e os não católicos. Toda a gente sofre porque a catedral é a coroa de Paris. Mas a vida é assim e temos de seguir em frente.”

Recolhe-se no consolo dos milhões de donativos que não param de chegar para uma reconstrução, para já, de custos incalculáveis. É uma promessa de Emmanuel Macron, o presidente francês: reerguer Notre-Dame nos próximos cinco anos. “Ainda mais bonita do que antes.” António Rebelo Lopes acredita.

“A Notre-Dame é história, é arquitetura. O que aconteceu chocou-nos, mas também nos uniu.” (António Rebelo Lopes)

“As pessoas estão de mãos dadas. A UNESCO, os países europeus. Há uma grande esperança. Porque a catedral tem muito valor para todo o Mundo, independentemente da crença. A Notre-Dame é história, é arquitetura. O que aconteceu chocou-nos, mas também nos uniu.” É a chamada identidade coletiva que brota da dor de ver um símbolo que todos conhecem e reconhecem quase desaparecer. Mesmo para os que nunca lá estiveram.

“O símbolo faz isso, une a profundidade de nós mesmos à profundidade da realidade e dos sentidos. O seu significado não é unívoco, atravessa diversos níveis de forma nem sempre consciente. Notre-Dame é um símbolo vivo das origens da Europa, das gerações que nela inscreveram a sua fé, na espiritualidade que irradia, no passa-palavra de um lugar incontornável para milhares de visitantes, turistas ou peregrinos.”

A explicação pertence ao padre jesuíta João Norton, arquiteto e assistente de Estética e Teologia na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. Ele próprio já viveu em Paris. Durante cinco anos. Esteve na Notre-Dame e assistiu à necessidade dos turistas se acercarem dela. Mas não é tanto para esse debate que quer contribuir. Existem questões técnicas que interrogam atitudes culturais de fundo.

“Como pode um símbolo tão significante para todos não ter sensores altamente afinados e meios de extinguir um incêndio no seu início, antes da sua deflagração total?”. Inevitavelmente, João Norton coloca o assunto sobre a mesa. “O incêndio faz-nos tomar consciência de que certos valores de património são valores espirituais, geradores de vida, constituintes da nossa identidade. São, portanto, prioritários relativamente a tantas outras opções orçamentais. Há aqui uma chamada de atenção para a situação portuguesa.” São janelas de oportunidade. De prevenção.

Inês Cristo não teve tempo de se preparar para o que iria ver da janela da sua casa. Tem 33 anos. Vive a 500 metros da catedral. Dada a proximidade, tentou depois chegar o mais perto que conseguiu, apesar do “perímetro que foi montado pelas forças policiais, de uma forma bem expedita, o que é de ressalvar”, contou. Mesmo confessando não ter “grande ligação sentimental ao monumento”, não esconde a tristeza que sentiu quando viu a catástrofe de perto.

“[Notre-Dame] é de facto um monumento simbólico e insubstituível nas memórias de muita gente”. (Inês Cristo)

Nas pessoas ao lado encontrou o espelho de si mesma. “Todos bastante tristes e incrédulos”, até porque, continua, “se percebia que no início os bombeiros pouco podiam fazer para travar o consumo do telhado, da abóbada e do pináculo”. Confirmando in loco o receio que as corporações que combateram a chamas chegaram a revelar: “Temia-se a destruição total do edifício”. E Inês não duvida: “Isso teria sido devastador para a comunidade, porque é de facto um monumento simbólico e insubstituível nas memórias de muita gente”.

Um testemunho que encaixa com o de Manuel Antunes da Cunha, investigador da área da Sociologia dos Media e das Migrações, que se dedica ao estudo da comunidade portuguesa em França. Quando falou à NM tinha aterrado há poucas horas em Paris. De lá e de cá, não tem tido descanso. Sempre a ser contactado por portugueses. “Estão em choque, porque têm uma ligação muito forte à Notre-Dame, à Nossa Senhora.”

Um laço que se aperta desde Fátima. Foi por isso que a catedral albergou tantas vezes grandes celebrações da comunidade portuguesa. Porém, o incêndio trouxe outras coisas à luz do dia, segundo o investigador. “Ter visto aquelas pessoas, aqueles jovens, ajoelhados, a rezar o terço e a cantar junto à Notre-Dame, enquanto ardia, num país em que a componente religiosa tem sido remetida para a esfera privada, foi impressionante.”

Di-lo porque a França está massacrada pelo debate da xenofobia, das políticas anti-imigração, pelo racismo. Manuel Antunes da Cunha interpreta a imagem dos parisienses prostrados, que correu Mundo, como “um sinal de que em França há católicos sem medo de rezar no espaço público”. Algo tão improvável de se ver nos dias de hoje como um incêndio naquele monumento gótico, barroco e romântico. Onde Napoleão foi coroado. Onde Joana D’Arc foi beatificada. O que, no seu entender, é revelador do poder das “raízes cristãs da Europa” e do “ADN cultural” do Velho Continente.

Arregaçar as mangas depois do choque

Cristina Fernandes sentiu-o na pele. Há dois anos que acolhe turistas e peregrinos lusófonos na Catedral de Nossa Senhora de Paris. Uma iniciativa gratuita da Associação CASA (Comunidade de Boas Vindas nos Sítios Artísticos), que pretende apresentar a mensagem espiritual deste alto lugar da cristandade através da sua história, arquitetura, esculturas, vitrais. Cristina fazia-o mais ou menos duas vezes por mês.

“Sempre gostei de história e quando soube que havia falta de guias de língua portuguesa na Notre-Dame, logo nesta cidade onde a comunidade é tão grande, voluntariei-me.” Já sabia muito sobre o passado do lugar. Foi fácil deixar-se apaixonar à medida que lhe ia desvendando outros mistérios. A parte que mais gostava de explicar eram os frisos de madeira do século XIV. Uma catequese esculpida nas naves. A próxima visita era no domingo, dia 28.

“Infelizmente, não vai acontecer.” Por causa do incêndio a que assistiu pela televisão, “horrorizada”, e que “curiosamente” a fez perceber – são palavras suas – “o quanto gostava da Notre-Dame”. Depois do choque, é hora de arregaçar as mangas. “Sabe-se que naquele local já se reza há vários séculos. É um sítio importante a nível espiritual, não só católico. É a alma de Paris. Já foi salva antes, graças ao romance de Victor Hugo, e espera-se que também seja agora. A história de Notre-Dame é de evolução e de reconstrução.”

O padre jesuíta João Norton confirma “o caráter de organismo vivo” do monumento. Destacando que foi redimensionada logo na origem, e que ao longo da sua existência reuniu “intervenções com que a sensibilidade religiosa e cultural dos séculos seguintes a foi cumulando”.

“Já foi salva antes, graças ao romance de Victor Hugo, e espera-se que também seja agora. A história de Notre-Dame é de evolução e de reconstrução.” (Cristina Fernandes)

Assumindo que a Notre-Dame é um “edifício complexo”, antevê que “os problemas técnicos e artísticos serão diversos” e só encontrarão soluções singulares. “Hoje podemos, e talvez devamos em certos aspetos, refazer alguns elementos destruídos com tecnologias atuais, mas também sabemos como é fácil adulterar a sua expressão. A intervenção pedirá, antes de mais, autenticidade de estilo para com o seu tempo.”

Acrescentando que “o desafio da autenticidade gera a diferença entre o símbolo vivo e o pastiche” (definido como obra literária ou artística em que se imita abertamente o estilo de outros). Testemunha de que os franceses têm uma consciência fina do significado espiritual de uma tal intervenção, receia porém que no terreno afetivo dos símbolos e das artes, apegos e preconceitos diversos entrem em conflito: “Diálogo e decisões participadas serão incontornáveis”.

No entanto, confia que a reconstrução da catedral abrirá “oportunidade de debate e de revitalização do diálogo inseparavelmente religioso e cultural sempre em curso. A França tem os recursos necessários para o levar a bom termo”.

Em frente à Nossa Senhora do Paris, ainda com as chamas a lavrar nas suas costas, Macron apelou à resiliência. “Tenhamos orgulho. Construímos esta catedral há mais de 800 anos. Construímo-la e, ao longo dos séculos, deixámo-la crescer e evoluir. Por isso, esta noite, digo solenemente: vamos reconstruí-la juntos.”

E graças aos homens, que os católicos acreditam serem feitos à semelhança de Deus, o estrago não foi maior. Por volta das 7.50 horas do dia seguinte, terça-feira 16, os bombeiros de Paris anunciaram que o combate tinha terminado. Três pessoas ficaram feridas, uma delas com gravidade. Salvaram-se a estrutura e as torres da fachada, bem como duas das relíquias mais preciosas do interior da catedral: a coroa de espinhos, que terá fragmentos da usada por Jesus Cristo na sua crucificação; e a túnica de São Luís.

As 16 estátuas de bronze, representando os 12 apóstolos e os quatro evangelistas, tinham sido retiradas para restauro quatro dias antes do incêndio. Há uma lista de peças danificadas que podem ser restauradas sem perder importantes marcas originais. Entre elas, o maior e mais antigo dos três órgãos do edifício.

No final, a verdadeira imagem da esperança combina cinzas e luz. Está nas fotos que mostram a cruz de Cristo no interior de Notre-Dame. Quase brilhante. E à frente dela, e da bela Pietá de Nicolas Coustou, que agora abre os braços aos escombros que lhe jazem aos pés, está o altar-mor. Incólume. Exatamente no mesmo sítio onde António Rebelo Lopes, o primeiro português ordenado diácono na diocese de Paris, o viu naquele último domingo antes da Páscoa. “Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.”