Texto de Cláudia Pinto
Ninguém esquece o dia do incêndio de Pedrógão Grande: 17 de junho de 2017. O país ficou em suspenso. As pessoas, incrédulas com o que se estava a passar, ficariam ainda mais chocadas com o balanço frio de uma tragédia inesperada: 66 mortos e 253 feridos.
A mobilização de meios não demorou a acontecer e em outubro do mesmo ano voltaria a ser imposta por novos incêndios. 17 de outubro de 2017 viria a ser considerado “o pior dia do ano em termos de incêndios” em Portugal com a Proteção Civil a registar 443 ocorrências, 45 mortos e 70 feridos.
Os números não deixam ninguém indiferente. As marcas do rescaldo ainda estão bem vivas. Também é fácil recuar a março de 2001, quando a tragédia da ponte de Entre-os-Rios deixou todos em sobressalto. Ou a novembro de 2018, quando a derrocada da pedreira de Borba viria a causar mortos e feridos.
Depois do sucedido, o que se aprendeu? De que forma se passou a planear e a antecipar tragédias? Tem Portugal forma de prevenir? Os portugueses são um povo que vive a lamentar-se perante o “nunca irá mudar nada” ou foram propostas mudanças estruturais que permitam outro desfecho neste tipo de situações?
Cláudia Beato, com formação em Planeamento Regional e Urbano e professora auxiliar do departamento de Engenharia Civil e Arquitetura da Universidade da Beira Interior (UBI), considera que, na teoria, Portugal é um país com uma legislação atual e com instrumentos capazes de corresponder às necessidades nessa área. A questão prende-se mais com a sua aplicabilidade e com aspetos culturais.
“Não há uma cultura de responsabilização e de cidadania nestas questões, e mesmo uma cultura que valorize a nossa identidade, da qual faz parte o nosso território com as suas diferenças: o que se valoriza mais são os grandes centros urbanos”, defende.
“Não há uma cultura de responsabilização e de cidadania” (Cláudia Beato, especialista em Planeamento Regional)
“Paralelamente, tem-se vindo a assistir a uma passagem de competências para as autarquias que, no meu entender, sobre a capa de uma maior proximidade às populações, liberta a administração central de certas áreas que deviam permanecer na sua tutela, por questões até de operacionalização, racionalização de recursos e coerência territorial.”
Conhecedora da realidade vivida no interior do país, Cláudia Beato sustenta que a população residente [claramente envelhecida] e a desertificação tornam os desafios mais exigentes e os cidadãos mais vulneráveis. “Às medidas de política para reduzir custos, como o encerramento de funções do Estado em localidades do interior, a extinção dos guardas florestais, a privatização de infraestruturas, sem que seja feita uma fiscalização à manutenção das suas estruturas, por exemplo, juntam-se a pouca cultura na área do planeamento e a pouca valorização do espaço dito rural.”
Falta de prevenção
Silvério da Rocha Cunha, professor de Teoria Política na Universidade de Évora e diretor da Escola de Ciências Sociais na mesma universidade, é da opinião que os episódios referidos no início do artigo têm na sua base “falhas estruturais que se relacionam com a desertificação do interior de um país que é um processo longo e já antigo”.
A situação estaria já identificada há mais de quatro anos, como foi amplamente noticiado pelos meios de comunicação social. Para o professor, as normas legais no nosso país estão “na ponta do progresso”.
“Somos uma sociedade com uma baixa cultura jurídica, isto é, uma fraca interiorização das normas relativas ao bem comum. Já houve quem tenha dito que, em Portugal, são produzidas leis excelentes precisamente para não serem cumpridas! Ironia à parte, penso que tudo isso se relaciona com o facto de sermos um país que não distribui os recursos com eficiência porque nos falta consciência suficientemente capaz de identificar o interesse social e suficientemente racional para compreender que o cumprimento geral das normas é socialmente benéfico”, reforça.
“Somos uma sociedade com uma baixa cultura jurídica, isto é, uma fraca interiorização das normas relativas ao bem comum. Já houve quem tenha dito que, em Portugal, são produzidas leis excelentes precisamente para não serem cumpridas” (Silvério da Rocha Cunha, professor de Teoria Política)
Para Paulo Castro Seixas, sociólogo e professor associado com agregação do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), em Lisboa, “não se podem resolver problemas sociais difíceis a partir de decretos e de leis da Assembleia”.
Castro Seixas salienta que as mudanças sociais em territórios específicos implicam um trabalho em rede que engloba “a envolvência dos cidadãos, um planeamento cultural, a participação e o empoderamento das instituições locais e não um centralismo partidocrático ou a partir de Lisboa em que as presidências de Câmara acabam por ser fiéis às direções partidárias”.
O sociólogo considera que não existe uma cultura de planeamento estratégico, por um lado, nem de avaliação, por outro. E tudo isso resulta do facto de termos um “Estado frágil, partidocrático, que vive de amiguismos e em que nem sempre as pessoas certas estão nos cargos adequados”. Além disso, “vive-se em função da periodicidade das legislaturas”.
E, no momento em que as tragédias acontecem, há um excesso de zelo e a forma como se atua é exagerada, sublinha o professor do ISCSP, que tem vindo a estudar temas relacionados com políticas territoriais e urbanas e é o coordenador do livro “Ativar cidades – modelos de políticas de cidades”, com lançamento agendado para a primeira semana de fevereiro.
“Destruímos porventura tanta ou mais floresta do que aquela que foi atingida pelos incêndios em função das regras criadas pelo Governo a seguir aos mesmos. A atuação acabou por ser uma prevenção das construções, mais do que uma forma de prevenir incêndios florestais.”
As questões do ordenamento do território não fazem parte da agenda política nas campanhas eleitorais, assinala a professora da UBI. “Não se aposta na educação nessa área, não se efetuam exercícios e se sensibiliza a população para lidar com situações de sinistro, de catástrofe. Basta pensar em quantas vezes por ano se fazem simulacros de incêndio, por exemplo, nas escolas e nas universidades.”
Seria necessária uma convergência de atuação que envolvesse todos. Paulo Castro Seixas frisa que “os cidadãos e as instituições devem estar em rede e a resolução tem de partir a nível local e regional. Não é desde Lisboa que se vão resolver os problemas do país”. E como podem os portugueses atuar? O professor do ISCSP não tem uma visão positiva do tema. “Existe uma desresponsabilização e um delegacionismo em que, em última análise, o cidadão está sempre sozinho. Temos uma sociedade civil fraca”, afiança.
Cláudia Beato dá uma achega: “Não há uma responsabilização individual, dos vários setores, desde o cidadão até ao político mais proeminente, no que diz respeito ao Estado – identidade tratada de forma abstrata, como se não nos dissesse respeito nem cada um de nós fosse parte integrante da mesma”.
Falta de orgulho nacional
Perante as características culturais, políticas e sociais de um povo, de que forma é que se comportam os portugueses perante os problemas? “Somos de nos deixar levar no imediato, reagindo, mas depois vamos caindo no esquecimento e voltamos a adiar”, explica a psicóloga clínica Rosa do Amaral.
“Falta-nos orgulho em sermos o que somos, em termos um território valorizado, uma paisagem a que se dá valor, uma população que se orgulha do seu país e dos seus representantes” (Cláudia Beato)
O provérbio “depois da casa roubada, trancas à porta” parece assentar que nem uma luva mas também o “longe da vista, longe do coração”, porque o povo português aparentemente “esquece depressa, amargura-se, mas nem sempre toma atitudes, acabando por aceitar as coisas com uma certa fatalidade”. É quase como se as pessoas considerassem constantemente que terão tempo para reagir. “Não acautelamos e somos confrontados com a tal dita falta de planeamento, como se, por vezes, misturássemos essa resignação com uma certa entrega à sorte.”
Silvério da Rocha Cunha não acredita em fatalismos nem em saudosismos. Considera que “desde que se cultive a cultura e a participação cívica muda quase tudo”. Cláudia Beato realça que a educação e a valorização de um povo não têm sido acauteladas.
“Falta-nos orgulho em sermos o que somos, em termos um território valorizado, uma paisagem a que se dá valor, uma população que se orgulha do seu país e dos seus representantes. Falta-nos educação e conhecimento da importância do planeamento do território enquanto mais-valia para o nosso quotidiano e desenvolvimento, porque vemos o crescimento a curto prazo e nos deslumbramos com o que vem de fora sem dar valor ao que temos.”