Porto Editora: do Piolho para o Mundo, sempre em família

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Por Ana Tulha

Eram os primeiros anos da década de 1940. A Segunda Guerra Mundial contaminava a Europa com um rasto de destruição irreparável. Portugal assistia ao desenrolar dos acontecimentos ao longe, mas agonizava com o impacto do conflito. Era o tempo de Salazar e do Estado Novo. Do medo e das restrições a todas as formas de liberdade.

E ainda assim, no Porto, um grupo de professores, parte deles universitários, conspirava para rasgar horizontes. Indiferentes às amarras da ditadura, numa Europa demasiado entorpecida pela escuridão da guerra para alimentar a produção intelectual, teimavam que haviam de abrir uma livraria. Uma editora também. Assim foi.

Chegaram-se à frente com uns quantos contos e encarregaram Vasco Teixeira, professor universitário de Química e benjamim do grupo, de dar corpo à ideia. O académico, então com 28 anos, não tremeu.

E eis que a 2 de maio de 1944, após incontáveis reuniões à mesa do histórico Piolho, nascia a Porto Editora, uma pequena empresa familiar que se fez coisa séria à custa dos livros escolares e que, 75 anos depois, ostenta com orgulho o pergaminho de maior editora portuguesa, com uma faturação anual superior a 160 milhões de euros. Sem perder a resiliência gravada no ADN do Porto. E os traços de uma empresa que soube crescer a bom crescer e ainda assim manter o cariz familiar.

A primeira livraria da Porto Editora, na Rua da Fábrica (Crédito: Porto Editora)

A prova está no número 365 da Rua da Restauração, paredes-meias com o Hospital de Santo António e os jardins do Palácio de Cristal. É lá que os 785 funcionários do grupo – 1 400, se se incluírem os do Grupo Bertrand Círculo, adquirido em 2010 – continuam a trabalhar para fazer da empresa portuense uma editora de referência.

Tudo sob a batuta dos filhos de Vasco Teixeira. E da mulher. São eles os quatro administradores da Porto Editora. Vasco, 63 anos, é também o diretor-geral editorial, José António, 61, está mais virado para a área financeira e comercial, Graciete, a mais velha das filhas (65 anos), superintende tudo o que tenha a ver com os dicionários.

Os três filhos trabalham em sintonia com Rosália Teixeira, a viúva do fundador que, aos 86 anos, continua a ser parte ativa na empresa. Mais focada nos processos de produção e relacionamento com os autores, faz questão de marcar presença diariamente e, garante quem lá trabalha, é muitas vezes a última a sair.

Em quatro gabinetes justapostos, ladeados por vidros bem transparentes e com as portas sempre abertas, mãe e filhos trabalham à vista de todos. Exposição mediática é que não. Vasco, o diretor-geral editorial, é o elemento “designado” para dar entrevistas, enquanto os restantes membros da família preferem ficar na sombra.

Da esquerda para a direita: José António Teixeira, Graciete Teixeira, Rosália Teixeira (a mãe; à frente), Vasco Teixeira, filho (Crédito: Artur Machado / Global Imagens)

Tanto que, muitos pedidos de entrevistas depois, Rosália continua a responder a todas as solicitações com um simpático não. Recentemente, também a neta de Vasco e Rosália entrou para empresa. Filipa Teixeira, 30 anos, trabalha na área do design.

Os subsídios antes dos subsídios

Nascida pela mão de professores, que tinham consciência das dificuldades com que docentes e alunos se deparavam diariamente, a Porto Editora fez dos livros escolares uma bandeira desde os primórdios.

Só que estávamos em pleno Estado Novo e os alvarás para gráficas eram missão impossível. Por isso, logo nesse ano, Vasco Teixeira comprou a Bloco Gráfico, uma tipografia falida na Rua da Fábrica. E assim se começaram a produzir livros, primeiro timidamente, depois em massa, em particular a partir de 1956, quando a Bloco Gráfico passou para a Rua da Restauração.

Mas os tempos eram outros. Até porque as escolas só escolhiam os livros que seriam utilizados em cada ano no princípio do ano letivo, o que obrigava as editoras a produzir a ritmo vertiginoso entre outubro e novembro e os funcionários a trabalhar quase de sol a sol, numa altura em que os subsídios e as horas extraordinárias ainda eram uma miragem. Vasco Teixeira, o fundador, fazia questão de os recompensar ainda assim.

Terminada a fase de maior trabalho, pagava aos trabalhadores um subsídio que era equivalente a um mês de ordenado. Além da lembrança que religiosamente gostava de lhes dar no Natal. Ou da mão estendida, sempre que alguém precisava.

Uma generosidade que, garante Vasco Teixeira (o filho), os descendentes se esforçam por preservar. “O humanismo do meu pai ficou entranhado na empresa. Sempre valorizou muito a relação com as pessoas que trabalhavam com ele. Conhecia todos pelo nome, sabia o nome das mulheres, quantos filhos tinha cada um. Preocupava-se com eles e chegava ao ponto de lhes emprestar dinheiro se precisassem. Não era uma relação de patrão-trabalhador, era uma relação muito humanizada. E o mesmo com os autores. Estava sempre disponível para falar com eles, fosse à noite ou ao fim de semana. Essa humanização das relações é uma parte que nós procuramos manter”, recorda Vasco Teixeira, engenheiro de formação, que entrou para a Porto Editora em 1980.

A oferta de todos os livros aos filhos dos funcionários, do 1.º ao 12.º ano, seja qual for a editora, é um dos “mimos” que a empresa se orgulha de dar.

Richard Zimler, escritor que trabalha com a Porto Editora desde 2012, elogia o cariz diferenciador que tem resistido à voragem dos tempos: “Nos últimos 20 anos, quase todas as editoras independentes e familiares desapareceram e passaram a ser controladas pelos grandes grupos. Mesmo nos Estados Unidos, em Inglaterra, em França. Na Porto Editora, embora a empresa cresça, a atmosfera é muito mais pessoal. Há uma relação humana com a família e um carinho que já não se vê.”

O ADN vincado

Com três publicações marcantes logo na década de 1950 (o Dicionário da Língua Portuguesa, Os Lusíadas e a História da Literatura Portuguesa), a Porto Editora ganhou novo fôlego após o 25 de Abril – mesmo que, entre 1974 e 1975, tenha sofrido, como quase todas as empresas, o impacto das convulsões pós-revolução.

Certo é que o fim da censura e a democratização do ensino permitiram que o trabalho editorial na área da educação ganhasse maior projeção. Com aumentos sucessivos no volume de vendas (e por consequência na mão-de-obra), a editora fundada por Vasco Teixeira foi florescendo, sem deixar cair os traços vincados de uma empresa intimamente ligada ao Porto.

“As pessoas do Porto têm características próprias, algumas das quais estão na base do ADN da Porto Editora. Desde logo o ‘invictus’, o facto de nós, portuenses, sermos lutadores e não desistirmos à primeira, de sermos frontais, de sermos leais. Orgulhamo-nos disso e acho mesmo que seria impossível termos o mesmo ADN fora daqui”, sublinha Vasco Teixeira, admitindo, meio a brincar meio a sério, que, volta e meia, a distância de Lisboa causa uns quantos “dissabores”.

Nada que tenha impedido a Porto Editora de traçar um percurso singular, sempre com a vanguarda como premissa – mesmo após a morte do fundador Vasco Teixeira, em 1987. Nos anos que se seguiram, os descendentes dos restantes sócios que deram origem à Porto Editora foram vendendo as quotas, até estas ficarem nas mãos dos quatro administradores da família Teixeira, mas a queda para a novidade manteve-se.

Vasco Teixeira, um dos fundadores da Porto Editora (Crédito: Porto Editora)

Um dos grandes passos rumo à modernidade foi dado em 1995, com a criação do centro multimédia, num tempo em que a Internet era ainda, em Portugal, um “luxo” reservado a poucos.

“Foi uma decisão arrojada e inovadora. Na altura não havia um volume de negócio que o justificasse. A decisão decorreu da observação direta de alguns exemplos nos Estados Unidos, por parte da administração da empresa”, explica Rui Pacheco, que tinha entrado na Porto Editora em 1993 e assumiu a liderança do projeto multimédia desde o princípio.

Mesmo com as dificuldades inerentes à época, que começavam na escassez de recursos qualificados e acabavam no uso ainda incipiente da tecnologia por parte do comum dos mortais, o centro multimédia começava aí a traçar um percurso crucial para a diversificação de produtos da Porto Editora. “No início, concentrámo-nos fundamentalmente em produtos de edutainment (educação e entretenimento), jogos educativos vendidos em CD-ROM”, recorda Rui Pacheco.

Mas em 1996 já a empresa avançava com o Dicionário da Língua Portuguesa em CD-ROM. E em 1997 com a Diciopédia, que seria um dos maiores sucessos multimédia da empresa, com mais de 500 mil vendas, ao longo de dez anos. Seguiram-se o site, a Webboom.pt, a primeira grande livraria online em língua portuguesa (hoje Wook), a Infopédia, um dicionário enciclopédico online, e mais tarde, já em 2005, a Escola Virtual, a primeira plataforma de e-learning com conteúdos curriculares, do 1.º ao 12.º ano.

“É mais uma escola do que uma área de produção de conteúdos. Podemos dizer que começámos como uma indústria, mas que somos hoje uma empresa multifacetada, que vai da produção de conteúdos aos serviços”, orgulha-se Vasco Teixeira.

Uma empresa multifacetada

Paralelamente, a Porto Editora ia crescendo em várias latitudes. Em 2000, por exemplo, a Bloco Gráfico deixou a Rua da Restauração para se instalar definitivamente na Maia, numa infraestrutura que custou perto de dez milhões de euros.

A premissa de controlar todas as fases do processo, da edição à impressão, passando pela logística (em 2010 nasceu a Zuslog, empresa de logística do grupo) e a distribuição é outro dos pontos de honra da Porto Editora. “Se não formos nós a fazer as coisas e subcontratarmos a terceiros eles têm de se adaptar às nossas especificidades. Ao passo que se formos nós a fazê-lo, adaptamo-las logo às nossas necessidades”, justifica o administrador.

A Bloco Gráfico, na Maia, foi inaugurada em 2000. Sofreu um duro revés no ano passado, quando o mau tempo abalou parte da estrutura (Pedro Granadeiro / Global Imagens)

A viragem do milénio trouxe também um rol de aquisições: a Areal Editores, em 2001, a Lisboa Editora (hoje Raiz Editora), em 2002, a Sextante Editora e o Grupo Bertrand Círculo em 2010. Em 2015, a editora portuense relançaria também a Livros do Brasil.

Manuel Alberto Valente, escritor e editor com quase 40 anos de experiência na área literária (e diretor da Divisão Editorial e Literária de Lisboa da Porto Editora desde 2008), defende que o sucesso da empresa assenta precisamente aí. “O segredo reside na preocupação que sempre existiu de reinvestir na empresa grande parte daquilo que ela dava.”

A prova é que, entretanto, a Porto Editora rasgou horizontes e alargou-se a outros países de língua portuguesa, com a implementação de editoras em Moçambique (2002), Angola (2005) e Timor-Leste (2014). “Temos feito um esforço grande para trabalharmos mais com os PALOP. Esses mercados não são fáceis, até porque dependem muito das políticas dos governos, não são mercados abertos. Mas são mercados importantes para a diversificação”, realça Vasco Teixeira.

A redução da natalidade e do número de alunos a isso obriga. “Em 1983, tínhamos no primeiro ciclo mais de 800 mil alunos. Hoje temos 300 mil.”

E tudo o tornado testou

O esforço de diversificação ganha particular alento em 2006, com a entrada na área da literatura. Hoje, 13 anos depois, o sucesso da aposta revela-se numa vasta lista de autores já publicados pela Porto Editora, entre os quais José Saramago, Patrick Modiano e Svetlana Alexievich, todos vencedores do prémio Nobel da Literatura.

A diversificação de conteúdos é tal que, em pouco mais de 20 anos, o peso dos livros escolares no volume de negócios da empresa passou de 80 para apenas 30%.

Ainda que os números atestem o sucesso, os 75 anos da Porto Editora não se fizeram sem percalços e dificuldades. Desde os primeiros meses mais titubeantes, em que faltava quase tudo, aos altos e baixos do pós-25 de Abril, passando pelas ruturas curriculares nos anos 1980, que provocaram grandes prejuízos para a empresa, e pela guerra com Maria de Lurdes Rodrigues, quando a ministra da Educação de Sócrates quis avançar com um processo de certificação de qualidade dos livros escolares.

Polémicas também as houve: em 2016, por exemplo, quando Paulo de Morais, então candidato à presidência da República, acusou três grupos editorais, entre os quais a Porto Editora, de terem ao seu serviço políticos no Ministério da Educação e na Assembleia da República. Ou em 2017, quando a Porto Editora foi acusada de discriminação de género, a propósito da criação de livros de exercícios distintos para rapaz e rapariga.
Obstáculos menores face ao que estava para vir.

A 14 de março de 2018, o mau tempo provocou a queda da estrutura de parte da cobertura na gráfica da Maia. O acidente não causou baixas humanas (houve três feridos ligeiros), mas traduziu-se num prejuízo de milhões de euros. “Estivemos sem poder fornecer livros e até sem faturar durante semanas. Foi muito complicado”, lembra Vasco Teixeira. A solução passou por adjudicar provisoriamente a publicação dos livros a gráficas por todo o país e até em Espanha.

Entretanto, a gráfica da Maia foi totalmente reconstruída e, apesar de já estar em funcionamento desde março, só será oficialmente inaugurada no início de junho. “Felizmente, já passou e olhamos para o futuro com confiança”, congratula-se o administrador.

Pedro Granadeiro / Global Imagens

Ou outra prova de que a resiliência que, há 75 anos, levou um grupo de professores a ousar um projeto arrojado contra a corrente de guerra continua bem viva no espírito desta empresa “made in Porto”. Tanto que nem o futuro do livro tira o sono ao filho do homem que ergueu a Porto Editora.

“Há dez anos, quando a Amazon começou a promover o kindle e a fazer a promoção do ebook, quase toda a gente ligada ao setor do livro ficou assustada. Hoje, o ebook já está a reduzir. Não vai desaparecer, mas já ninguém põe em causa a convivência. O livro tem características ímpares, que lhe garantem a vida por mais umas décadas”, atira Vasco, confiante.