Por que razão alguns se lembram dos sonhos e outros não?

A forma como o avô “partiu” afetou-a. “Morreu sozinho”, disse-lhe o tio, relatando o momento do ataque cardíaco. Para Francisca Almeida, 29 anos, “foi fácil imaginar, mas difícil de aceitar”. A partir desse dia, durante uma semana, mal adormecia, a missão era sempre a mesma: salvar o avô. “Assim que ele colocava a mão no peito eu corria logo para o ajudar.”

Na primeira noite, chamou o 112, mas foi tarde de mais. Na seguinte, tinha comprimidos, mas não atuaram a tempo. O sonho ficou cada vez mais complexo. Francisca montou esquemas, mas corriam sempre mal. “Não havia nada, mas nada, que eu pudesse fazer para o salvar.” Angustiada, acabou por aceitar o conselho de uma amiga da mãe. “Rezei um Pai Nosso, antes de dormir, e resultou.”…

Lembrar-se dos sonhos sempre foi normal para Francisca. “Os que me ficam mais na mente são os que dizem respeito à minha família.” No entanto, também se recorda dos outros, em que fala e é quase invencível. Como das muitas vezes em que é perseguida. “Sou sempre muito forte, pego em pistolas e corro velozmente.” Certa vez, teve de se atirar de uma falésia para que o “vilão” não a matasse. “Enquanto caía disse-lhe, em tom de gozo, um ‘ohhh’ com voz chinesa. Nesse momento, acordei o meu namorado que me ouviu dizer ‘ohhh’ como se estivesse na ópera.”

Acontece o mesmo a Graça Salgueiro, 31 anos. Os sonhos são como filmes. Narrativas completas. Com princípio, meio e fim. Dormir exige, quase sempre, completar missões. Com cores e cheiros. De que se recorda ao pormenor.

Às vezes é de tal forma intenso que acorda a chorar ou com dores compatíveis com as “pancadas” que acontecem no subconsciente. “Uma noite, sonhei que me espetavam agulhas na mão. Acordei com dores e passei parte do dia com essa sensação.” O caso repete-se. Também é assim desde que tem consciência de existir. “Sempre me lembrei dos sonhos. E sempre tive de todos os tipos. Alguns até se repetem.” Um desses recorrentes envolve a caixa do correio da sua antiga casa. Desesperada, sentiu mesmo a necessidade de lá voltar. “Fui vê-la, literalmente, para ver se isto passava.”

Quando Catarina Loureiro, 30 anos, acorda, as memórias são sempre frescas. Porém, vai esquecendo as aventuras dos sonhos com o passar das horas. Costumam estar relacionados com coisas do dia-a-dia, como o trabalho. Mas também há episódios caricatos que ocorrem, por exemplo, se adormece logo depois de ver televisão. “São coisas mesmo estúpidas”, ri antes de contar. 2Estes dias, sonhei que estava num convívio com a minha família no Santuário do Sameiro, em Braga, e veio o devorador de mentes da série Stranger Things e matou um de nós.”

Tal como Francisca, Graça e Catarina, muitas outras pessoas passam por situações idênticas. Recordam os sonhos com mais ou menos pormenores, mas lembram-se quase sempre de algo. E, depois, há muitos outros casos como João Silva, 36 anos. Há anos que acorda todos os dias a achar que não sonha. “Não me lembro absolutamente de nada. Em pequeno ainda sonhava, agora não. É como se passasse a noite num túnel negro, não acontece nada. Pelo menos, que eu me lembre. E eu já deixei de tentar. Se calhar não sonho mesmo.”

Não nos lembrarmos dos sonhos não significa que não sonhamos. Como explica Ana Rita Peralta, neurologista no Hospital CUF Descobertas e no Hospital CUF Torres Vedras: “Durante o sono, e também nas fases de transição entre o sono e a vigília, não temos uma boa retenção de memória”. Isso acontece porque “algumas das áreas cerebrais responsáveis pela memória estão ‘desligadas’ nesses períodos”. Facto que contribui para que não tenhamos sempre recordações dos nossos sonhos.

Mas, se os sonhos são emocionais, como é o caso de Francisca ou de Graça, as probabilidades de nos lembrarmos deles aumentam. Principalmente se acordarmos exatamente no momento em que estavam a acontecer. Uma fase conhecida por sono REM – Rapid Eye Movement – traduzido como movimento rápido dos olhos, porque acontece exatamente isso, os olhos mexem freneticamente.

Esse é o tipo de sono em que mais sonhamos. Um período em que a atividade cerebral é similar àquela que se passa nas horas em que estamos acordados. “Se despertarmos uma pessoa em REM, ela vai lembrar-se do sonho em 80% dos casos. Como o sono REM é mais intenso e duradouro de manhã, também temos tendência para nos lembrarmos mais desses sonhos”, justifica a especialista.

Os sonhos recorrentes, como já vimos, também são mais suscetíveis de ficar na memória. Uma recordação que “pode ser treinada” (ver caixa). Mas o facto de nos recordarmos, frisa Ana Rita Peralta, “não tem qualquer valor patológico, na generalidade dos casos”. Até porque, acrescenta, “na vida em geral, não há um benefício claro comprovado em a pessoa lembrar-se ou não dos sonhos”. Por isso, ninguém deve ficar “ansioso com o facto de sonhar pouco e raramente”.

Porque é que sonhamos? Não se sabe. Contudo, há muitas teorias. As que dizem que os sonhos não têm significado, que o seu conteúdo é apenas um subproduto de uma ativação cerebral, com outras funções que a nossa consciência interpreta de uma forma narrativa. “No entanto, as que são mais aceites dizem que os sonhos servem para funções importantes, tais como contribuir para uma melhor gestão emocional na vigília e fornecer momentos de ‘fuga e luta’ com o cérebro desligado do mundo real.” Sem possibilidade de fazer movimentos e em segurança.

Simulando situações de perigo na vida real e treinando o cérebro para as respostas motoras, autonómicas, emocionais, que serão muito relevantes para a sobrevivência do indivíduo se ocorrerem na vida real – isto é a Threat simulation hypothesis. Esta hipótese – de que o sonho está conectado à vida enquanto estamos acordados – não é nova.

A Interpretação dos Sonhos foi amplamente desenvolvida pelo modelo conceptual Freudiano, como instrumento de compreensão clínica dos pacientes. Álvaro Ferreira, psicólogo clínico e psicoterapeuta no Hospital CUF Descobertas, recorda que os sonhos são fruto do “material caótico que habita o nosso inconsciente e que podem surgir associados a vivências presentes manifestas ou irem ligar-se a múltiplas vivências passadas”.

Conteúdos que muitas vezes são difíceis de interpretar. E, tal como Sigmund Freud, muitos têm sido os autores que desenvolveram processos terapêuticos de interpretação dos sonhos, como Carl Jung, discípulo de Freud. “Estes (entre outros) modelos teóricos evidenciam a ‘cura’ (como se referia na altura) dos pacientes, ou melhor, dos seus sintomas, utilizando-se a compreensão do significado dos sonhos. O que permite acesso direto aos conteúdos inconscientes recalcados, que se expressam também pelos sintomas”, salienta o psicólogo.

A compreensão do significado dos sonhos mantém “assinalável interesse na clínica”, não como fim terapêutico, mas “como acesso a conteúdos inconscientes/pré-conscientes, que estão muitas vezes na base de sintomas e de conflitos manifestos que os pacientes apresentam”, assinala Álvaro Ferreira. Cada vez mais se valoriza a “compreensão a dois”, ou seja, “a compreensão do significado do sonho pelo próprio, dando-lhe novo sentido, sendo o terapeuta o catalisador do processo de compreensão/transformação”.

Luís Filipe Saraiva, membro da International Association of Analytical Psychology e da International Association of Jungian Studies, defende que o significado dos sonhos varia de paciente para paciente e deriva de diversos fatores. “Analisar o significado dos sonhos é algo muito complexo”, mesmo para este especialista. “É preciso acompanhar largamente os pacientes. Não pode ser um trabalho superficial.”

Uma vez que a corrente junguiana identifica os sonhos com atitudes inconscientes que se escondem na mente consciente. “Podem ser uma compensação da atitude consciente ou uma correção dessa mesma atitude. Por exemplo, os sonhos recorrentes podem dizer respeito a algo que não está bem na vida dos pacientes. Como sonhar com a mãe. Tanto pode querer dizer sonhar com o complexo da mãe verdadeira como com a carência ou inexistência da mãe interior.”

Dicas para recordar os sonhos

Escrever um diário, logo pela manhã
Fazer um diário de sonhos de forma continuada, escrevendo as memórias da noite, de preferência no momento em que se acorda.

Dominar a técnica do sonho lúcido
Aprender técnicas para induzir o chamado “sonho lúcido”, que ocorre quando temos consciência parcial de estar a sonhar (algo raro, que nem toda a gente consegue).

Acordar em sono REM
Se acordarmos no momento em que estamos em sono REM (o que implica fazer um exame de sono para saber quando essa fase ocorre) a probabilidade de nos recordarmos dos sonhos é enorme.

Dormir sem interrupções
Acordar naturalmente, sem ser com o despertador, por exemplo, ajuda-nos a não nos privarmos das últimas horas de sono, quando há mais sono REM.