Rui Cardoso Martins

Perderam-se a favor do Estado

Ilustração: João Vasco Correia

Um dia destes, durante um intervalo de julgamento, parei diante de um quadro de vidro no corredor. Estava cheio de editais públicos, avisos presos com fita-cola. Li algumas folhas, deslizando os olhos pela vitrine, apanhando pedaços de nomes, fragmentos de crimes, avisos, ameaças, datas.

Todas as frases tinham aquele ar de fim de mundo que os juízes gostam de dar às suas decisões escritas. As maiúsculas até assustavam!

E então fui apanhado pela urgência das mensagens, postas ali para que alguém as lesse, mas não eu. Eram avisos para arguidos ou ex-arguidos que quase de certeza nunca os iriam ver. Pus-me a pensar naquelas pessoas, imaginei-lhes um nariz, uma forma de vestir (há pelos editais calças e camisolas para devolver), pensei qual seria a história que os metera em sarilhos com a Justiça. Mas depois, por assim dizer, fui eu que me meti noutros trabalhos – na escrita e na chamada vida -, passaram semanas e só agora releio os editais (fotografei-os, nas fotos vem a sombra do meu próprio reflexo). Espero ainda ir a tempo de avisar algumas pessoas. Atenção, a Justiça portuguesa procura-vos. A uns quer tirar a liberdade, é verdade, mas a outros quer devolver objectos e dinheiro!

Por exemplo, senhor Paulo, cabo-verdiano-holandês de Queluz:

“É notificado por esta forma para no prazo de NOVENTA DIAS, a contar da afixação do presente edital e finda que seja a dilação de TRINTA DIAS, proceder ao levantamento da quantia monetária apreendida nos presentes autos no montante de 70,00 euros, sob pena de, não o fazendo, passar a pagar os custos do depósito, com a advertência de que, caso não seja reclamada, será a mesma declarada perdida a favor do Estado no prazo de UM ANO.”

Sr. Milton, do Laranjeiro, continuam à sua espera as coisas que lhe foram tiradas, para o senhor ir buscar:

“T-shirt preta; calças de ganga; ténis pretos”.

Quanto aos srs. Ricardo e Paulo Jorge, de Lisboa, são um mistério os objectos que vos apreenderam (auto-rádios, coisa que parece dos furtos de antigamente), e o facto de os senhores não parecerem interessados em reaver tanta coisa:

“Auto-rádio de marca Sony, modelo CDX-S2250S, de cor cinza, com o número de série 6523444;

Auto-rádio de marca Pioneer, modelo DEH-2900MP, de cor cinza, com o número de série GFPG258368EW;

Carregador de isqueiro de marca Ndrive, de cor preta.

Computador Portátil de marca Acer, modelo MS2231, de cor cinza escuro, com respectivo carregador e cabo de alimentação.”

O camaronês Theodore, de 51 anos, com última morada conhecida em Villiers Le Bel, França, deve apresentar-se “para proceder ao levantamento da quantia de 502 euros que lhe foi apreendida”. Sr. Theodore, onde é que anda? São 502 euros, não longe do ordenado mínimo, dinheiro pelos vistos mal confiscado e que agora se perderá nas goelas do Estado…

Aviso também para o brasileiro Leandro, nascido em Abril de 1984, com último domicílio na Parede, e que soube inscrever o seu nome na Justiça em Portugal pelos crimes de abuso de confiança qualificada, falsificação de documento, burla qualificada. Todos praticados em Junho de 2014, o amigo Leandro decerto se lembrará, é melhor entregar-se em breve “sob pena de, não o fazendo, ser considerado CONTUMAZ”. Quer dizer, alguém que voluntariamente evita cumprir uma pena, espécie de foragido à Justiça. Sabemos que o Leandro não cometeu nada que um qualquer banqueiro português não tenha praticado durante anos na sua Linha de Cascais, mas são assim as coisas, em Portugal como no Brasil. Uns são filhos, outros enteados, outros Espírito Santo.

Finalmente, um apelo ao Sr. João, que é do Fundão e nasceu em 1960. Autor de três crimes de ameaça agravada praticados em Março de 2013, e condenado a quatro meses de prisão por cada um dos crimes, com cúmulo jurídico de nove meses, convertido em multa de 1 890 euros. Sr. João, não pagou a multa e tem de se entregar para cumprir os nove meses na prisão, ou vira também (as maiúsculas assustam, como avisei) CONTUMAZ!

Ó diabo, vendo bem, o prazo era só de CINCO DIAS. Já não vai a tempo, bolas. Espero que se tenha entregado, João, e um final de 2019 em liberdade. Depois dos nove meses poderá, talvez, RENASCER.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)