Percorrer o mundo à boleia de um sonho

Texto de Célia Soares

O desafio era grande. Mas a vontade de viver “momentos únicos” também. Por isso, mesmo tendo precisado de três meses para conseguirem partir, Joana Oliveira e Tiago Fidalgo apanharam a primeira boleia de sorriso rasgado.

Antes de conhecer o marido, Joana garante que “não era pessoa de viajar”. Contudo, Tiago tinha um sonho. E Joana fazia parte dele. Em vez de uma lua-de-mel num resort, Tiago queria dar a volta ao Mundo à boleia. Joana aceitou. Mas, “custou muito” deixar a vida que tinha. “Era um desafio muito ambicioso e sair da nossa zona de conforto custa muito”, observa a psicomotricista, que antes de partir se orgulhava de ter “uma estabilidade que a maior parte dos colegas não tinha alcançado”.

Deixar o emprego e a família não foi fácil. E prova disso é que o casal acabou por se despedir três vezes das mesmas pessoas. Com uma gargalhada, Tiago explica a demora: “É como fazer jogging. Por mais que gostemos mesmo de correr, se estamos quentinhos no sofá, queremos sempre ficar mais um bocado”.

Tal como Joana, Tiago é natural das Caldas da Rainha, e foi lá que o casal apanhou a primeira boleia. De casa foram até Lisboa. E foi na viagem até Elvas que aconteceu “um episódio muito marcante”. O condutor que parou para lhes dar boleia questionou-os: “Então vão até Elvas?” Tiago respondeu: “Não, nós vamos dar a volta ao Mundo!” E, ao ouvir isso, Joana assegura que “o senhor reagiu com o olhar”, como quem pensava: “Estes só podem ser malucos”.

Esse foi o primeiro de muitos momentos surpreendentes. Mas, por mais imprevisível que fosse a viagem, Joana e Tiago tinham bem presentes as regras que haviam combinado antes de partir. Em primeiro lugar, a viagem tinha de ser feita por terra e sempre à boleia. E o casal nunca se poderia separar. “Isso nem sequer era hipótese, até porque se tratava da nossa lua-de-mel”, salienta Joana.

Além disso, sendo vegetarianos, também tencionavam “provar que é possível correr o Mundo sem comer carne nem peixe”. Mas, havia mais uma regra. “Decidimos que nunca iríamos pagar para dormir”, acrescenta Joana. À primeira vista, o desafio parecia quase impossível. Contudo, todas as regras foram cumpridas.

Relativamente à estadia, Joana e Tiago socorriam-se, em primeiro lugar, de alguns amigos que estavam a viver nos países por onde passavam. Mas, caso não houvesse essa possibilidade, recorriam à “CouchSurfing”, uma conhecida plataforma de troca de sofá em que, na verdade, “se troca muito mais do que isso, porque permite partilhar experiências e conhecer as culturas de uma forma incrível”.

E mesmo nos momentos em que a plataforma não era solução o casal tinha outro trunfo. “Se nenhuma dessas hipóteses resultasse, procurávamos portugueses a viver naquela cidade. O que também era muito fácil porque há portugueses em todo o lado”, comenta a viajante. Só depois de todas essas tentativas esgotadas é que Joana e Tiago recorriam, então, à tenda que traziam às costas.

“A prova de que há pessoas muito boas em todo o Mundo é que conseguimos ir até à China sem precisar de montar a tenda” (Joana Oliveira)

“E a prova de que há pessoas muito boas em todo o Mundo é que conseguimos ir até à China sem precisar de montar a tenda”, partilha Joana, confessando que, mesmo nas noites em que pensavam que iam ter de dormir na tenda, parava alguém que, ao observá-los, lhes oferecia estadia.

Mochila “levezinha”
Ao longo da viagem, a generosidade das pessoas foi sempre denominador comum. Algo que o casal guarda, até hoje, com “um carinho muito especial”. Mesmo que nunca mais tenham falado com muitos dos que os acolheram, Joana e Tiago não esquecem a ajuda que tiveram. E, tal como eles, Marta Durán, de 23 anos, fala, com saudade, das “pessoas incríveis” que conheceu quando se arriscou a deixar Portugal para viajar à boleia pela Europa. Sozinha e determinada.

A lisboeta conta que teve a primeira experiência de polegar em riste, “há três anos, por necessidade”. E a verdade é que “correu tão bem que ficou aquele bichinho de andar à boleia”. Na altura, Marta estava a estudar em Macau e não tinha dinheiro para ir até ao aeroporto. Por isso, como estava com uma amiga, decidiu experimentar.

“Já tinha conhecimento de algumas histórias de quem andou à boleia e achei que era uma boa altura para o fazer”, esclarece a jovem. Entretanto, regressou a Portugal para terminar a licenciatura. Mas, depois disso, não hesitou: tinha chegado o momento para “viajar a sério à boleia”. Os pais sabiam que ia para fora, mas não sabiam tudo. Marta explica: “Só quando cheguei à Alemanha é que contei à minha mãe que tinha feito aquele caminho todo à boleia” (risos). Do outro lado da linha, a reação foi imediata. “Disse-me para voltar para casa porque era muito perigoso viajar com desconhecidos e que até podia ser raptada.”

Mas Marta não voltou. E mesmo que a mãe repetisse “mil vezes” que era preciso ter cuidado, a jovem queria conhecer mais pessoas e visitar mais países. Na bagagem, levava “o essencial”. Uma mochila “levezinha”, mas que tinha de ser suficientemente “pesada” para aguentar o frio dos últimos três meses do ano. “Sim, tive a infeliz ideia de fazer a viagem nesse período”, reconhece, enumerando o que não podia faltar na mochila.

“Tinha o essencial para a minha higiene, o telemóvel, a máquina fotográfica e a roupa. Por camadas, claro.” Hoje, quem vê as fotografias facilmente percebe que Marta não estava a viajar como turista. “As fotos nunca ficavam muito ‘instagramáveis’”, completa. E o casaco, claro, “era sempre o mítico casaco verde – o mais quente”.

Na rua, Marta pedia boleia a tremer de frio, mas nem isso a demovia. E a reação daqueles que a acolhiam em cada país era sempre muito calorosa. O mesmo pode dizer Renato Vasques. O jovem algarvio já se tinha aventurado à boleia em 2016, quando estava em França, e, ao regressar a Portugal, chegou com uma certeza. “Queria mais!” Por isso, em janeiro do ano passado, meteu pés ao caminho. Do Algarve até ao Irão. E não foi sozinho.

Renato tinha recebido em casa uns amigos que lhe deram boleia em França, “numa carrinha muito engraçada”, e foram eles – que pretendiam ir até França no início do ano – que lhe deram a primeira boleia. “Foi incrível, mas deixaram-me em Barcelona, porque eu expliquei-lhes que a viagem tinha de ser feita com a adrenalina de estar a pedir boleia na rua.” Assim foi.

Chegado a França, arranjou diversos trabalhos. “Primeiro, a apanhar morangos. Depois, a vender pizzas numa aldeia.” Dessa forma, mais do que um trabalho, Renato conseguia um sítio para ficar. Com famílias que o tratavam, assegura, “como se fosse filho deles”. Tal como Marta, Joana e Tiago, também recorreu à plataforma do “CouchSurfing”. “E correu sempre muito bem.” De França, seguiu por Suíça, Itália e Eslovénia. Sempre à boleia.

E foi na Roménia que o jovem teve “o único momento negativo” da experiência. Lá, voltou a encontrar-se com os amigos franceses, que lhe deram a primeira boleia, e deixou o telemóvel na carrinha. “Mas houve um assalto e roubaram-mo”, lembra, garantindo que, “mais do que ficar sem o telemóvel, foi difícil ficar sem os contactos e as músicas”. Isto porque o algarvio viveu a experiência à boleia de uma forma muito especial. “Desde o início, fiz questão de guardar não só os contactos das pessoas que encontrava e me davam boleia, mas, também, as músicas que mais gostavam. Era uma coisa minha e com muito significado.” Contudo, depois disso, teve, novamente, muitos motivos para sorrir.

“Fiquei um mês e meio sem telemóvel e isso acabou por ser uma experiência boa”. Para falar com os pais, recorria a quem lhe dava boleia ou, então, àqueles com quem se cruzava na rua. “E nunca me disseram que não. Pelo contrário.” Muitas pessoas não só aceitavam, de bom grado, emprestar-lhe o telemóvel como lhe diziam “para passar lá em casa e fazer chamada de vídeo pelo computador”.

Hoje, ao recordar esses gestos, Renato não se cansa de dizer que “foi tudo incrível” porque as pessoas queriam, genuinamente, ajudar. “Era mesmo assim. Aqueles a quem eu pedia o telemóvel diziam-me que ficavam mais descansados se soubessem que a minha família também me pudesse ver. Para saberem que eu estava, de facto, bem e feliz.” Por isso, o jovem reitera: “Há gente muito boa em qualquer parte do Mundo”.

Um jogo de sorte e azar
Ao longo da viagem, muitas foram as histórias “memoráveis”. Renato diz que percorrer tantos países à boleia e acabar a aventura com uma mão cheia de coisas boas também foi, em parte, “uma sorte”. Joana e Tiago subscrevem, sublinhando que “há alguns riscos”.

Contudo, o casal soube sempre que “mais vale recusar uma boleia certa do que aceitar uma errada”. E, por isso, não baixaram a guarda. Sorte ou não, Joana diz que, depois da aventura, “o que fica é, sobretudo, uma certeza muito genuína de que a bondade humana é transversal a todas as culturas e a todos os lugares”. E o que é preciso para deixar uma vida estável e partir à descoberta é “a vontade de quebrar a rotina” e, acima de tudo, “lutar por um sonho”. A volta ao Mundo à boleia foi, juram, uma lua-de-mel muito enriquecedora.

O mote era sempre o mesmo: “Em Roma, sê Romano”. Tiago fazia questão de comunicar com as pessoas falando a mesma língua. Mesmo que para isso fosse preciso ir à internet ver como se diziam as palavras mais básicas. “No fundo, o mais importante era fazermos nos outros países todas as coisas de bem que nos habituamos a fazer em Portugal”, explica Tiago. Tão importante como isso era respeitar e valorizar a cultura que os rodeava.

“Queríamos que as pessoas notassem o menos possível que éramos turistas e isso era algo que se conseguia pela nossa roupa e pela abordagem que fazíamos na comunicação com os locais.” Joana exemplifica: “Se na Indonésia, por exemplo, não havia chuveiros, então nós não íamos tomar banho de chuveiro, mesmo que conseguíssemos arranjar forma de o fazer. Porque, para nós, a verdadeira experiência de estar na Indonésia só era possível com uma aproximação muito grande aos costumes e à cultura daquele local”.

E conhecer as tradições de cada país foi algo que o casal nunca pôs de lado. Mesmo que estivessem – porque também estiveram – em algumas das cidades mais visitadas pelos turistas. O que fez sempre a diferença foi, asseguram, a forma como encaravam cada um desses momentos e se relacionavam com as pessoas. E uma relação de proximidade com as pessoas foi algo que Marta sempre valorizou.

Inconformada com as vidas rotineiras das sociedades modernas, a jovem não tem dúvidas: “Andar de mochila às costas e à boleia é uma das formas mais bonitas de conhecer as outras culturas”. Durante a viagem, a lisboeta tentou sempre “fugir dos pontos mais turísticos”. Precisamente porque o que mais lhe interessava era “as pessoas, as suas histórias e a sua cultura”. Tudo era uma aprendizagem.

Desde a língua, às crenças e às tradições, passando, também, pela música. “É que, quando a língua é um obstáculo, a música mostra o seu caráter universal.” Mais do que qualquer outra pessoa, Renato conhece bem o poder de união da música, responsável por uma das histórias mais bonitas que guarda com saudade. “Uma vez, na Turquia, conheci uma família incrível. Um casal com dois filhos que, mesmo não tendo quase nada e a viver numa casa que nem tinha mobília, quis dar-me tudo, com um carinho tão, mas tão grande…e sem conseguirem dizer uma única palavra.”

Através de “uma mímica impressionante”, Renato percebeu que estavam a convidá-lo para jantar. E aceitou. “Não tinham fogão e fizeram o jantar à moda antiga, com meia dúzia de paus e uma fogueira. Mas, estava delicioso”, recorda. No final da refeição, “o senhor foi buscar uma flauta e começou a tocar… Foi um momento lindo”. Viagens que o fazem sonhar com mais viagens.

Hoje, Marta está a viver na Guiné e é à boleia que, todos os dias, parte para o estágio que está a desenvolver na UNICEF. Mas ambiciona bem mais do que isso: “Quero conhecer o continente africano à boleia”. Pais de uma bebé de cinco meses, é com o “CouchSurfing” que Joana e Tiago matam saudades do tempo em que carregavam a tenda às costas. Na casa onde moram, acolhem outros viajantes.

E, claro, sempre que alguém pede boleia, fazem questão de ajudar. Essa é a forma que os dois escolheram para recordar o tempo em que andavam de polegar em riste na berma da estrada. “Uma experiência destas dá muita, muita saudade.” Agora, aprumem-se as velas. Marta, tal como Joana, Tiago e Renato, continua a sonhar. E tem uma certeza: “Um dia, vou atravessar o Atlântico à boleia de um veleiro”.