Pequenas torres do Aleixo
Era o início do “caso do Aleixo”, o histórico Aleixo do Porto, com as famosas pessoas incógnitas do infame Aleixo, falando à maneira do típico Aleixo sobre o maior problema das altas torres do Aleixo (fora a demolição), o tráfico de droga do Aleixo.
A juíza pediu aos arguidos, advogados e polícias que fossem pontuais nas sessões seguintes, e eram tantos homens e mulheres sentados nas fileiras de bancos dos réus, que a todos pareceu de bom senso o pedido. Talvez 30 pessoas. Do fundo da sala do Tribunal de São João Novo, eu espreitava pelas frestas entre guardas prisionais e vi uma parada de magros, gordas, novas, velhos, barbudos, imberbes, de óculos, rabos-de-cavalo, carecas, cabelos esculpidos, calças, leggings, sandálias, ténis, mulheres e homens, mas o que mais eu via era um selo de tribo proscrita nas caras, a marca da pobreza, do anátema de ser do Aleixo, mas também o desafio, a saudade e o orgulho contra o Mundo.
Pequenas torres humanas diante duma grua de demolição: acusados de tráfico de droga na sua própria casa, condenada a desaparecer. Primeira e segunda torres: implosão e betão em pó num segundo, 2011 e 2013. Até ao fim de 2019, serão demolidas por fases as últimas três das cinco torres do Bairro do Aleixo que desde 12 de Abril de 1974 (dias antes da Revolução) foram a habitação social de centenas de famílias da Ribeira e de outros locais, criando, com ingenuidade histórica, mais improvisos das ocupações do 25 Abril que se seguiram, o maior “bairro problemático” (a linguagem cola-se…) do Porto. Quase ninguém quis falar nessa manhã. A primeira foi uma mulher com cara de couro, uma máscara de comédia de arte italiana, não se percebia se ria, se chorava. Tinha de ir ao tratamento matinal:
– Está acusada de tráfico de estupefacientes.
– Eu vou falar!, gritou a mulher.
– Vá então tomar a metadona e volta da parte da tarde.
– Muito obrigado.
Saiu apressada, como um saquinho suspenso por ossos.
Depois apresentaram-se um vendedor de automóveis, uma cabeleireira, uma cuidadora de idosos, um empregado de balcão, um estudante de Educação Física, uma vendedora ambulante, um desempregado, um empresário de restaurante, um futebolista que trabalha num hospital, um cantoneiro, um trolha, um taxista, uma desempregada, um gerente de agência de viagens, um estafeta, um ajudante de electricista, uma empregada de limpeza, um lavador de carros, uma ajudante de cozinha, um feirante (algemado). Não queriam falar “por enquanto”, só o jovem estafeta Tiago.
– No fundo, os senhores foram acusados uns, de associação criminosa, outros de tráfico de estupefacientes.
– É mentira.
Não era verdade que ele, com os seus pai e mãe, tivesse em casa uma cozinha de drogas. O que falava ao telefone, ou em mensagem de texto, não eram doses ou gramas. Eram mesmo pares de calças. Também o Hugo contou que pediu um telemóvel emprestado mas que logo nessa noite o partiu, e depois o pai do Tiago apertou-o porque “quem parte velho, paga novo”, mas afinal tinha muitos telemóveis e o procurador irritou-se com tanto código mal gerido:
– Mas o senhor faz colecção de telemóveis?
A meio da manhã, no entanto, levantou-se Alda.
– Quase tudo o que aí está de tráfico de droga é verdade. Eu vendia tudo.
– O quê?
– Haxixe, cocaína, heroína, tudo.
Disse que nunca teve qualquer relação com qualquer pessoa que ali estivesse na sala. Isto é, Alda assumiu as culpas de todos, de todo o Aleixo ali com ela, era ela quem controlava tudo. Trabalhava com outros traficantes de fora mas não podia dizer quem eram por razões de segurança pessoal. Uma brisa soprou do Douro.
-Sei que isto a vai magoar, disse o advogado. No meio deste processo, houve alguma coisa que a marcou e quer dizer ao tribunal?
Silêncio. Depois a rapariga chorou.
-Foi a perda da minha filha.
A bebé morreu há um ano, um dos últimos filhos do Aleixo, o Aleixo, o Aleixo, nome que ainda roda no eixo. Tantas torres, casas, famílias demolidas, esta mãe aguentava-se de pé.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)