Padres às claras, pais em segredo

Foto: Gerardo Santos/Global Imagens

Por Ana Tulha

Há muito que Maria se habituou a ter o pai a centenas de quilómetros. A distância não a aflige. Aprendeu cedo que não há ausência que o peso de um laço de sangue não esmague. Nem saudades que o amor não amarfanhe. Os quilómetros dissolvem-se nos telefonemas diários, nos conselhos que a ajudam a fugir aos becos dos dias, nos jantares demorados, vertidos em felizes copos de vinho, como se o tempo fosse deles por inteiro. Não é.

Compensam com os momentos que conseguem passar juntos, em pedaços de fins de semana aqui e ali. E com as férias. Ou com os Natais. Mesmo que, para os celebrarem em família, tenham de trocar as voltas ao calendário. “Juntamo-nos e trocamos prendas. Só não o fazemos no dia de Natal, porque o meu pai tem de estar na paróquia.” A paróquia rouba-lhes a ilusão do tempo por inteiro e o recato de uma relação normal entre pai e filha. O nome também. Maria não tem o nome do pai. “Sou bastarda.” Mas não lhes rouba o amor. Nunca o amor.

O pai de Maria é padre. Já o era quando ela nasceu, há mais de 30 anos. Já o era há quase 50, quando os pais se apaixonaram, indiferentes à batina e a tudo o que vem com ela. Os amores proibidos têm esse vício maldito, de ignorar as regras da lógica. O deles fez da lógica gato-sapato. E cresceu, tão interdito quanto resiliente. “Os meus pais são namorados há 45 anos. Posso duvidar de muita coisa, mas nunca do amor daquelas duas alminhas”, orgulha-se a filha.

Só que o orgulho de Maria não liberta o pai do peso das normas da Igreja. O amor, este amor, não cabe no voto de castidade e no celibato obrigatório. Nem na “continência perfeita e perpétua por causa do Reino dos Céus”, inscrita no cânone 277 do Código de Direito Canónico. E assim, com perto de 80 anos, o homem que Maria jura adorar “de morte” é padre às claras e pai em segredo (e companheiro, de há uns anos para cá também avô). Ironicamente, padre vem do latim “pater”, que significa pai.

Encontrámos Maria em Lisboa, bem longe da paróquia onde o pai continua a exercer o sacerdócio de corpo e alma. “Tenho a certeza que deixar de ser padre nunca lhe passou pela cabeça.” Restou-lhe, por isso, esconder o segredo no fundo da gaveta da moral e dos bons costumes, onde só a abelhudice do povo pode chegar.

Foto: Gerardo Santos/Global Imagens

“Eu fui criada na terra dos meus avós maternos, não na dele. Mas na paróquia as pessoas devem comentar. Ainda por cima, sou a cara chapada do meu pai. Até desconfio que o bispo chegou a saber. Mas não sei ao certo, porque os meus pais nunca falam no assunto.” É como se falar tornasse a sombra do pecado mais viva, mais incómoda também. Para Maria, não.

“Sempre soube que era filha de um padre e não tenho problema nenhum com isso. Os meus pais sempre me disseram que era fruto do amor, não do pecado. Tanto que os meus amigos sabem todos que sou filha de um padre. E não admito que ninguém goze. Digo logo: ‘O meu pai deu-me uma casa. E o teu?’ Só não digo quem ele é para o proteger.” Por isso, diz apenas que a paróquia do pai é no norte do país. E esconde o rosto. Até Maria é nome fictício. Não por ela. Pelo pai. Pelo homem que nunca lhe faltou com nada.

“Fui a Benidorm na minha viagem de finalistas porque o meu pai me pagou a viagem. Tive o meu primeiro Pentium [computador] em 1997, porque o meu pai mo deu. Estive numa relação abusiva durante anos e, enquanto as associações me bateram com a porta na cara, porque não tinha marcas de agressão física, o meu pai deu-me dinheiro para comprar uma casa e mudar de vida”, congratula-se, vaidade indisfarçável num pai que, ao longe, nunca deixa de estar perto.

O amor, o carinho, a devoção paternal resvalam para os netos. “Costumo dizer que os mima demasiado. A dada altura, queria dar-lhes uma viagem à Disney. Eu é que não deixei.”

O pior é o resto. O que custa ao pai sentir-se pecador. Maria põe-se a adivinhar. “Desconfio que vive numa espécie de dilema pessoal por ter quebrado as regras. Acho que lhe dói ter de negar uma parte dele. Sempre achei que não falava no assunto porque isso o faz sofrer.” Isso, sentir-lhe os contornos de uma dor constante, alimentada em surdina, é o que a revolta.

E ainda assim continua a dizer-se crente. “À minha maneira. Isto da fé pode ser simples. Eles é que complicam.” A prova está no anelar da mão direita, num anel grosso, prateado, uma oração a correr a toda a volta. “É uma Ave Maria que o meu pai me deu, quando fiz 30 anos.”

Entre o amor ao pai, e a fé que alimenta como bem entende, Maria passou anos a braços com as mesmas perguntas: “Porque é que os padres não hão de poder ter filhos? Quantos somos, afinal?” Até que ouviu falar da Coping, uma associação internacional de filhos de padres criada na Irlanda, em 2014. “Demorei um ano a mandar o primeiro e-mail. Só pensava: ‘O que raio eu vou dizer?'”. Só que a curiosidade de saber se seriam “assim tantos” moía-a a cada dia. Deixou-se de indecisões e carregou no “enviar”. Pouco tempo depois, conhecia Vincent Doyle (36 anos), fundador da Coping.

“Enterrar o assunto para sempre”

Maria cresceu a saber que era filha de um padre. Vincent não. Por muito que a intuição já lhe gritasse que o homem que se habituara a chamar “padrinho” era bem mais do que isso. Chamava-lhe JJ. A descoberta que lhe desanuviou os dias aconteceu aos 28 anos, quando foi dar com poemas de amor dirigidos à mãe, assinados por um tal de… JJ. Confrontou-a e ela deixou a verdade vir à tona.

Por essa altura, o pai já tinha morrido. E ainda assim foi uma descoberta redentora. Até porque as memórias que tinha eram fartas em afetos. “Faço parte da minoria de pessoas que são filhas de padres e tiveram um pai carinhoso.”

Por isso, abraçou a notícia de ser filho de um padre como se de uma dádiva se tratasse. E foi então que viu o estigma fazer-se diabo em forma de gente. “Na altura, era inocente. Achei que não tinha mal nenhum dizer que o meu pai era padre. Acabei por descobrir que tinha, que a sociedade não aceitava isso. Partilhei a notícia com várias pessoas que me aconselharam a enterrar o assunto para sempre”, lamenta Vincent Doyle, formado em Psicoterapia e mestre em Teologia.

Vincent Doyle (à direita), fundador da Coping, xom Charles Scicluna, arcebispo de Malta e alto representante do Vaticano

A Coping nascia aí, dessa consciência de um estigma que o tempo e a modernidade não curaram, com um objetivo bem definido: conseguir uma resposta clara da Igreja Católica Romana a propósito do fenómeno dos filhos dos padres. “A Igreja advoga uma ética pró-vida. Pró-vida exige respeito pela vida em todas as fases, do útero ao caixão. Como é que uma Igreja pró-vida pode ignorar o assunto e encorajar o silêncio em torno dos filhos dos padres, que estão a sofrer? Coloquei-lhes estas perguntas simples e os moldes da Coping começaram a ganhar forma.”

Em 2014, três anos após os primeiros contactos com a Conferência Episcopal Irlandesa, o site da Coping ficava disponível. No mesmo ano, entregou ao Papa Francisco uma carta sobre os filhos dos padres. Pouco tempo depois, o arcebispo irlandês Diarmuid Martin acedia a suportar os custos do apoio terapêutico que viesse a ser requerido por filhos de padres e a definir diretrizes, no sentido de obrigar os padres que se tornaram pais a assumir-se como tal.

Já este ano, em fevereiro, foi o próprio Vaticano a confirmar que tem um documento com normas sobre o que devem fazer os padres que tenham filhos. “Ao confirmar que o documento existe, a Santa Sé fez mais do que isso. Ao dizer as palavras ‘filhos dos ordenados’, fizeram-nos sentir que existimos. E que sofremos danos irreparáveis ao longo dos séculos, por se ter ignorado este assunto”, enfatiza Doyle.

Ao “The New York Times”, Alessandro Gisotti, porta-voz do Vaticano, garantiu que o documento aconselha os padres que tiverem filhos a deixar o sacerdócio “para assumirem as suas responsabilidades como pais”. Só que Doyle, que já teve oportunidade de ler o documento em 2017, quando se encontrou com Charles Scicluna, arcebispo em Malta, garante que não é isso que o documento diz. Que advoga, isso sim, o “primordial interesse da criança”. A “Notícias Magazine” tentou clarificar a situação junto de Alessandro Gisotti, mas não obteve resposta.

“Estou grávida e o pai é um padre católico”

Cinco anos volvidos, o site da Coping já contabiliza mais de dois milhões e meio de cliques (destes, dez mil partiram de Portugal). Mas dizer quantos filhos de padres há no Mundo continua a ser missão impossível. Em 2014, a Organização das Nações Unidas chegou a pedir ao Vaticano que os contabilizasse, para que fossem adotadas todas as medidas necessárias ao seu bem-estar.

E para que acabassem de vez práticas como as dos acordos de confidencialidade, assinados para calar as mães dos filhos proibidos. Só que até hoje a Santa Sé não avançou com qualquer número. Vincent ousa uma estimativa, mas é o primeiro a dizer que a extrapolação está nivelada por baixo.

“Se 10% dos padres que houve nos últimos cem anos em todo o Mundo – cerca de um milhão – não forem 100% celibatários, e se desses houver 10% que tiveram filhos, são cerca de dez mil em todo o Mundo”, aponta. Partilha ainda um dado curioso relativo ao site que criou. Cerca de 2% dos internautas que pesquisaram a Coping em 2016 fizeram-no com a frase “estou grávida e o pai é um padre católico.”

Em Portugal, uma estimativa feita há dois anos pela Fraternitas, associação de padres casados, apontava para 18 padres com filhos a exercer o sacerdócio em Portugal. Alguns destes casos são de conhecimento público. O do padre Giselo Andrade, do Funchal, por exemplo. Ou o de José Júlio Almeida, de São Pedro do Sul. Ainda assim, questionada pela “Notícias Magazine”, a Conferência Episcopal Portuguesa disse não ter “conhecimento de casos nem estatísticas”, garantindo que o assunto “é da autonomia de cada bispo diocesano”.

Certo é que o número de filhos de padres existentes em Portugal ultrapassa largamente o dos 18 presbíteros assinalados pela Fraternitas. Ora porque muitos dos padres que conheceram a paternidade já faleceram, ora porque há uma imensidão de casos que continuam guardados a sete chaves. Em muitos deles, a incúria dita as leis.

Paulo (nome fictício, “para evitar a exposição”) sentiu a negligência na pele. Anos a fio. Mas só na antecâmara da maioridade atou as pontas soltas do silêncio e da indiferença.

“Com 17 anos, ia fazer uma viagem à Suíça e precisava de uma autorização dos meus pais. Mas o meu pai nunca mais mandava os documentos. Comecei a ficar irritado com aquilo e a pressionar o meu tio, para perceber o que é que se passava, porque é que ele não mandava a autorização.”

Mais de 20 anos depois, recorda a história com a nitidez de quem acabou de a viver. “O meu tio, já nervoso, acabou por se descair. Foi assim que soube. Ele não queria mandar a autorização porque, num dos documentos, tinha o ‘Pe’, de padre.” Na altura, confessa, ficou “um bocado abalado”. Mas a revelação pouco mudou.

Di-lo com um misto de conformismo e descrença. “Vi-o umas cinco vezes. Quando morreu, houve quem me dissesse: ‘Então, nem uma lágrima?’ Mas as coisas são como são. Ele sempre foi praticamente um desconhecido.” Antes, nos anos que antecederam o dia da descoberta, já tinha questionado a mãe, vezes sem conta, a propósito do pai, mas a resposta era sempre a mesma: estava longe, a trabalhar.

Concebido numa aldeia do distrito de Viseu, onde ainda hoje se comenta o filho que o antigo padre teve mas que poucos conheceram, Paulo nunca soube o que era crescer ao lado dos pais. A mãe foi dar à luz a mais de 50 quilómetros da paróquia e a cria por lá ficou, com um casal conhecido feito família de acolhimento.

Quanto à mãe, ainda está viva, mas nunca largou a pequena aldeia em que viveu a vida toda. “De vez em quando ia ver-me. Uma vez por mês, diria. Mas nunca tivemos uma relação próxima. Acho que ela sempre teve vergonha, por ter um filho de um padre.” Ainda hoje se veem, sem grande frequência nem apego. “Quando as pessoas estão longe e, mesmo quando estão presentes, estão sempre com pressa para ir embora, não dá para criar uma relação próxima.”

As marcas ficam. Não há volta a dar. Mesmo quando se tenta não pensar muito no assunto. Até porque, quanto mais não seja nas alturas de maior desânimo, a “sensação de abandono” instala-se de mansinho. E depois há a fé. Ou a falta dela. E o desdém pela Igreja. Mas isso são contas de outro rosário. “Quando soube disto, já não tinha fé. Mas acho que a Igreja não está preparada para aceitar falhas ou desvios. Uma Igreja que diz ‘ou os teus filhos ou nós’ não pode ser uma boa Igreja.”

O celibato sacerdotal, “um dom especial de Deus, pelo qual os ministros sagrados podem mais facilmente unir-se a Cristo de coração indiviso e dedicar-se mais livremente ao serviço de Deus e dos homens” (Código do Direito Canónico, cânone 277) anda longe de ser uma questão pacífica.

António Ary, padre jesuíta que está a completar o doutoramento em Direito Canónico em Roma, sublinha que apareceu como “uma coisa boa, uma opção desejável, um modo de consagração a Deus”, mas que sempre foi uma questão “tensa”, porque “sempre houve gente que não cumpria”.

A questão é aflorada em várias passagens do Novo Testamento. Nos Evangelhos segundo São Lucas e São Marcos, por exemplo, Jesus garante que “ninguém que tenha deixado casa ou irmãos, pai, mãe ou filhos […] deixará de receber a vida eterna”. No Evangelho segundo São Mateus, refere mesmo “os eunucos por causa do Reino dos céus”.

A regra do celibato sacerdotal torna-se universal a partir do Concílio de Elvira (século IV), nascendo aí as primeiras regras jurídicas sobre o assunto, mas é preciso esperar até ao Concílio de Trento (1545 a 1563) para ver o celibato obrigatório ser ratificado. “Passou a haver aí uma formulação jurídica mais definitiva, como regra absoluta, inclusive com consequências jurídicas, nomeadamente a invalidade do casamento, no caso de ocorrer”, explica o padre António Ary.

A obrigatoriedade do celibato resiste desde então e tem sido reforçada ao longo das décadas. Em 1967, por exemplo, na Encíclica do Papa Paulo VI, o celibato era apresentado como “uma brilhante pedra preciosa” guardada há séculos pela Igreja, que conservava “todo o seu valor” em tempos caracterizados por transformações profundas “na mentalidade e nas estruturas”.

E se, em março do ano passado, numa grande entrevista ao JN, D. Manuel Linda, bispo do Porto, até admitiu que o fim do celibato não o chocaria, as declarações do Papa Francisco, no início de 2019, refreiam qualquer ideia de mudança breve. “Acho que o celibato é um dom para a Igreja. Não concordo que seja opcional.”

O padre António Ary assente que dificilmente o futuro trará uma inversão de marcha: “Estou seguro de que a regra não vai mudar de forma generalizada. Não acho possível que agora a Igreja chegue à conclusão de que esteve enganada durante dois mil anos. Que se abra a possibilidade de essa não ser a via escolhida, não acho provável, mas acho pensável”.

Voltar para morrer e acabar a constituir família

José Augusto Guerra, falecido no final dos anos 1960, não hesitou na via escolhida. Natural de Freixo de Espada à Cinta, rumou a Macau ainda garoto para se fazer padre missionário. Esteve em Timor, na Índia, em Angola, Cabo Verde e São Tomé. Até que, em São João dos Angolares (São Tomé), contraiu paludismo e pediu para “ir morrer à terra”.

“Nessa altura, houve uma jovem de 18 anos que foi tratar do meu avô. E tratou tão bem que ele só faleceu muito mais tarde, já com 91 anos”, graceja o neto, Jorge Duarte, que se tem dedicado a investigar a vida do avô. Pelo meio, o padre missionário e a jovenzinha que dele tratou apaixonaram-se e, avessos às amarras da Igreja, consumaram o amor numa mão-cheia de filhos.

“Os meus avós nunca casaram, nem nunca dormiram no mesmo quarto. O quarto da minha avó era um local de passagem para o quarto dele. Às vezes brinco com a minha mãe e digo que, quando o meu avô ia a passar, tropeçava e caía na cama da minha avó.” A mãe de Jorge é a mais nova dos cinco filhos (três já faleceram). Quando nasceu, o pai já tinha quase 60 anos. Ainda assim, Áurea Duarte, 82 anos, tem a memória do progenitor bem presente, “uma pessoa muito íntegra e disciplinadora”, que não fazia caixinha quanto à vida familiar.

Tanto que nem quando as filhas mais novas foram estudar para Lamego abdicou de estar com elas. Metia-se no comboio até à Régua, apanhava a camioneta até Lamego, e lá ia ele, cabeção (colarinho do traje eclesiástico) sempre visível, visitar as garotas. “Chegava e dizia: ‘Vim ver as minhas filhas.’ As freiras entravam em pânico. Aquilo não era comum”, recorda o neto, que de tantas vezes ouvir a mãe contar a história já quase a sabe de trás para a frente.

Áurea Duarte e Jorge Duarte, respetivamente filha e neto de José Augusto Guerra, padre de Freixo de Espada à Cinta já falecido (Rui Manuel Ferreira / Global Imagens)

Áurea lembra o homem culto e carinhoso, a quem foi beber muita da fé que ainda hoje carrega. “De manhã, dizia-lhe sempre: ‘Bom dia, meu pai. Faz o favor de me dar a sua bênção.’ E ele respondia: ‘Que Deus te abençoe, minha filha.’ À noite igual. Ainda hoje não me deito sem lhe pedir a bênção.” A religiosidade de Áurea está espalhada pela casa onde vive, em Freixo de Espada à Cinta. Logo à entrada, há uma foto do Papa. Do pai também. E depois há cruzes. E terços. Um pouco por toda a casa.

“A melhor prenda que podem dar à minha mãe é um terço. E faz questão de ir à missa todos os dias, esteja como estiver. Acho que para a remissão do pecado do meu avô dedica-se de alma e coração à religião. Eu tenho um orgulho imenso em ser neto de um padre, até porque ele assumiu sempre os filhos. Mas a minha mãe e os meus tios viveram sempre com o anátema de serem filhos do pecado”, conta o neto.

Para José Augusto Guerra, foi ainda pior. De homem “muito respeitado” na terra, passou a padre proscrito, desterrado pelo bispo de Bragança para a aldeia do Larinho, a 30 quilómetros de Freixo, numa altura em que os transportes, nos meios rurais, eram uma perfeita miragem. Ia-se a pé. Ou a cavalo. Demorava-se quase um dia. Na perspetiva do bispo, o retiro forçado era a solução perfeita para não levantar ondas. “O meu pai sofreu muito com isso, sobretudo por ter de estar longe da família”, lamenta a filha.

Hoje, os tempos são outros, o longe fez-se mais perto, mas continua a haver relatos de padres que se dizem ostracizados e perseguidos pela Igreja por terem sido pais. Nalguns casos, a exclusão chega a braços com as dificuldades financeiras, provocadas pela falta do sustento que sempre tiveram.

A “Notícias Magazine” questionou a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) sobre esses casos, procurando ainda obter uma tomada de posição em relação aos filhos de padres negligenciados. No entanto, a CEP limitou-se a dizer que “os bispos sabem quais são as orientações da Santa Sé e certamente procuram agir de acordo com os casos que porventura tiverem nas suas dioceses”.

A NM questionou ainda as três maiores dioceses do país (Lisboa, Braga e Porto), mas obteve apenas uma curta e inconclusiva resposta. “O Patriarcado de Lisboa informa que continuará a cumprir todas as normas do Direito Canónico, tanto universal como particular, protegendo todos os direitos dos fiéis, nomeadamente o direito à defesa da própria intimidade.”

Também Vincent Doyle, o fundador da Coping, escreveu ao secretariado geral da Conferência Episcopal Portuguesa e pediu-lhe que considerasse discutir o assunto. Ou que divulgasse um comunicado que ajudasse os filhos dos padres. Mas a pretensão do irlandês continua por atender. Diretamente para Portugal, Doyle deixa uma questão: “Qual é o maior escândalo: reconhecer o problema dos filhos dos padres ou continuar a ignorar o assunto e a provocar-lhes danos?”.

Entretanto, Maria, bastarda que garante ser “fruto do amor”, não do pecado, acaba sempre assombrada pelas mesmas perguntas: “Porque é que ele não pode ser padre e pai? Porque é que não pode ser as duas coisas. Porquê?”.