Padre Mário da Lixa: “Jesus foi um preso político”

Foto: Octávio Passos/Global Imagens

Texto de Sérgio Almeida

O sorriso não larga facilmente o rosto de Mário Pais de Oliveira, o Padre Mário da Lixa, como é popularmente conhecido há muitas décadas. Nem mesmo quando desfere críticas violentas ao poder religioso ou recorda as circunstâncias do seu afastamento da Igreja, as expressões agrestes tomam conta de si.

“Com humor e amor” é um lema que só não se esforça por seguir à risca porque garante que lhe é natural. Serviu mesmo de antetítulo à “espécie de autobiografia” publicada há dois anos, “Evangelho no Pretório”.”Se tivesse deixado o azedume tomar conta de mim, já não estaria aqui, de certeza. Teria feito como o Papa Bento XVI e saía de cena”, atira, com o invariável gracejo.

Aos 82 anos, passa os dias num pequeno anexo alugado, nas traseiras de uma moradia em Macieira da Lixa, no concelho de Felgueiras. É nessa humilde habitação que concentra o seu trabalho de presbítero-jornalista ou de “teo-jornalismo”, como o define. Dirige, há 21 anos, o jornal online “Fraternizar”, com forte presença nas redes sociais, e escreve livros: exatamente 50 desde que, há meio século, escreveu “Evangelizar os Pobres”, reunião das suas homilias na freguesia de Paredes de Viadores (Marco de Canaveses), onde começou a paroquiar um ano antes.

Subsiste com uma reforma de “pouco mais de 600 euros”, proporcional aos descontos que fez enquanto jornalista durante 25 anos, e encaminha “na totalidade” os direitos de autor provenientes da venda dos seus livros para o projeto Barracão de Cultura, a que está ligado desde o início, em 2005.

“Sou um padre pobre por opção. Isso gerou em mim uma liberdade interior muito forte”, diz. O regresso à freguesia de onde foi expulso em 1974 aconteceu há 15 anos. “Precisava voltar a sentir este chão”, resume. A comunidade que, três décadas antes, exigiu, sem resultado, a sua reintegração ao bispo D. António Ferreira Gomes voltou a acolhê-lo de forma calorosa. Apesar das incontáveis horas passadas ao computador, não é difícil vê-lo em público e a conviver com as suas gentes.

A boa forma física atribui-a tanto “à alegria de viver” como às caminhadas matinais que faz todos os dias. Alguns desses trajetos levam-no a passar em frente ao monumento de homenagem a Nossa Senhora de Fátima, em pleno centro da freguesia, uma “provocação” da junta e paróquia locais a que diz ter reagido com o proverbial bom humor.

Embora calcorreie todos os recantos da freguesia, há um local onde ainda não pôs os pés: a igreja local. “Não preciso disso. Os rituais são próprios da infância. É por isso que nos afastamos dela ao crescermos. Quando se atinge a maioridade interior, descobrimos que podemos viver sem isso”, aponta.

É num pequeno anexo, à medida da reforma de 600 euros, que o Padre Mário passa boa parte dos seus dias, sentado a escrever no computador. (Foto: Octávio Passos/Global Imagens)

Se, para uma boa parte dos portugueses, o Padre Mário da Lixa é sobretudo sinónimo de “Fátima, Nunca Mais!” – o livro, publicado em 1999, no qual denunciava o pretenso embuste do fenómeno das aparições -, a verdade é que a controvérsia sempre andou de mãos dadas com a sua vida. Muito antes das duas detenções de que foi alvo, em 1970 e em 1973, pela PIDE/DGS, já o autor de “Fátima, $A” se vira envolvido em celeuma.

Nascido na freguesia feirense de Lourosa no ano de 1937, no seio de uma família de parcos recursos, cedo demonstrou uma apetência pelo mundo da fé.

“Aos oito anos, quando me perguntavam o que queria ser, respondia logo ‘padre’. Mas, muito baixinho, acrescentava: ‘Para fazer diferente, para fazer diferente'”, recorda.

À entrada no Seminário da Diocese do Porto, em outubro de 1950, seguiu-se um período de 12 anos de estudos e preparativos ecuménicos. Da centena de alunos matriculados no mesmo ano, Mário Pais de Oliveira foi um dos escassos 14 que, a 5 de agosto de 1962, seria ordenado padre na Sé Catedral do Porto, pelo bispo D. Florentino de Andrade e Silva, administrador apostólico da diocese.

A “subversão dos jovens”

A fé, solidamente construída até então, começou a ruir em pleno ritual de ordenação, durante o qual os novos presbíteros tinham que estar 15 minutos deitados no chão a escutar as palavras dos superiores hierárquicos. “Quando apareci perante o bispo que me ia ordenar, nasci de novo. Comecei a ver tudo de forma diferente. Até o edifício e os próprios trajes já me faziam aflição. Tive que fazer um esforço enorme para que ninguém notasse o turbilhão que estava a sentir dentro de mim. Os meus olhos brilhavam de entusiasmo pela revelação que acabara de ter”, explica.

Numa equipa de hóquei em patins do 6.º ano, época 1955/1956 (à direita, em cima).

A sua inquietude começou a manifestar-se nesse mesmo ano, enquanto coadjutor na Paróquia de Santo António das Antas, no Porto. A forma “evangelicamente desestabilizadora de exercer o ministério” não tardou a entrar em confronto com a visão conservadora do pároco, que pediu a sua transferência imediata, não obstante terem passado apenas dois meses do par de anos que era suposto cumprir na nova função.

O cargo seguinte que lhe foi atribuído – de professor de Religião e Moral, no Liceu Alexandre Herculano – parecia ser tranquilo para sossegar as hostes eclesiásticas. Puro engano. Após a transferência, ao fim de dois anos, para o Liceu D. Manuel II, também no Porto, continuaram a chegar relatos de uma excessiva proximidade entre professor e alunos.

“Começaram a suspeitar de que estava a promover a subversão dos jovens”, detalha o antigo professor. Em vez da rigidez dominante, as aulas consistiam no diálogo constante com os alunos, desafiados a assumir a condução das mesmas, o que poderia abrir caminho a movimentos associativos juvenis, então proibidos pelo regime. O impacto foi notório e o presbítero recorda que ainda hoje encontra antigos alunos que vêm ter consigo a agradecer a forma como contribuiu para o seu desenvolvimento e autonomia.

A experiência foi abruptamente interrompida. Nomeado capelão militar, desembarcou na Guiné-Bissau em novembro de 1967 como alferes do Exército, integrado no Batalhão 1912, na região de Mansoa. “Mal cheguei, comecei a defender o direito de todos os povos à independência e à autodeterminação”, lembra o Padre Mário, cuja memória ainda conserva bem intacto o desagrado que essa mensagem causou junto dos oficiais.

Um “padre irrecuperável”

Quatro meses depois estava de regresso à chamada “Metrópole”, com o então bispo castrense, D. António dos Reis Rodrigues, a apelidá-lo de “padre irrecuperável”. Enfrentou ainda um processo judicial que, ao contrário do esperado, não foi julgado em tribunal militar. Nada que travasse, todavia, a sua primeira nomeação paroquial, no mês de abril de 1968, para a freguesia de Paredes de Viadores.

Mário de Oliveira em 1963. A sua ordenação como padre acontecera um ano antes, na Sé Catedral do Porto.

Mal chegou, as homilias do Padre Mário causaram brado. Habituados às versões ortodoxas dos representantes da Igreja, os fiéis ouviram com espanto o seu novo pároco a alertá-las para a exploração de que estavam a ser vítimas, ao trabalharem por uma ninharia terras que não eram delas. “Muito antes de o PCP fazer disso bandeira, já eu andava nas homilias a dizer que a terra devia ser de quem a trabalhava”, sustenta.

Um mês foi quanto a Diocese do Porto demorou a exonerá-lo. O processo não cumpriu sequer as formalidades legais – foi afastado por telefone e instado a abandonar a aldeia em 24 horas -, mas o jovem padre nem sequer teve tempo de reagir, porque, apenas três meses depois, recebeu a boa nova de que ia começar a paroquiar em Macieira da Lixa. O responsável pela nomeação fora D. António Ferreira Gomes, o célebre bispo que fez frente a Salazar e, em consequência disso, sujeito a um exílio de dez anos.

A primeira detenção feita pela PIDE aconteceu em julho de 1970. Após nove meses passados na prisão política de Caxias, o Tribunal Plenário do Porto decidiu-se pela sua absolvição. Se dessa vez D. António Ferreira Gomes estava à sua espera e concordou com o seu regresso, a atitude seria bem diferente quando foi detido em 1973 e libertado no ano seguinte.

“A pessoa que me fez a festa da primeira vez foi a mesma que depois me disse que eu não sabia manter a distância devida com os paroquianos. Essa razão devia ser motivo de alegria pastoral”, sublinha.

Sem paróquia, ainda chegou a integrar uma equipa pastoral da Zona Ribeirinha do Porto, mas, no início de 1975, já sentia que os seus tempos na Igreja estavam a chegar ao fim. Firme na intenção de não voltar a atribuir-lhe responsabilidades sacerdotais, D. António Ferreira Gomes ainda lhe acenou com uma proposta tentadora: estudar, a expensas da Igreja, em universidades europeias. Recusou. “Sou filho da Ti Maria do Grilo, jornaleira analfabeta. Disse-lhe apenas que, se me tirassem o chão, morria.”

Sobreviveu, ao contrário do que muitos esperavam, abraçando o jornalismo como sustento, mas sobretudo como forma de fazer chegar a sua mensagem às multidões. “Quando consegui o meu primeiro emprego como jornalista, no jornal ‘República’, fui contar a novidade a D. António Ferreira Gomes. Ele levou as mãos à cabeça. ‘Então tirei-lhe uma tribuna e arranjou outra ainda maior?'”, conta.

Esse receio não era infundado. O que encontramos nos seus livros é uma visão demolidora da Igreja e dos seus membros. Críticas que, defende, nada têm que ver com o ressentimento por ter sido afastado. “Não renunciei nem deixei de ser padre. Se não estou em nenhum ofício foi por decisão de um bispo”, acusa.

O seu livro mais recente, “Jesus Segundo os 4 Evangelhos em 5 Volumes”, carrega uma dupla efeméride: é o 50.º que publica desde que, em 1969, reuniu as suas homilias em “Evangelizar os Pobres”. “Este novo livro vai provocar um abalo muito grande. Superior, até, a ‘Fátima, Nunca Mais!'”, afirma, convicto.

Publicada pela Seda, à semelhança dos últimos 15, a obra retoma o seu fascínio pela figura de Jesus, que afirma ter sido manipulada pela Igreja depois da sua morte. Para o controverso autor, é preciso fazer a distinção entre o autêntico Jesus, de Nazaré, e a posterior adulteração da sua figura pelo cristianismo: “Jesus e Cristo são antónimos. O primeiro foi um preso político, assassinado em virtude da sua conceção social. A sua morte foi na cruz, porque era a condenação máxima do regime para com os insurretos. O outro é um mito que nasce na Casa Real de David, que apenas pretendia difundir a sua mensagem e conquistar o Mundo”.

Os rendimentos provenientes das vendas dos seus livros são encaminhados para o Barracão de Cultura.

A investigação partiu dos quatro evangelhos canónicos e foi complementada com o recurso a “novos dados histórico-científicos”, permitindo desse modo “desencriptar a mensagem original, soterrada nos comentários e notas de rodapés que encontramos nas traduções com o objetivo de condicionar a leitura”.

Uma Igreja “imperial”

Mais de 17 séculos depois da intervenção do imperador Constantino, tida como fundamental na propagação da fé cristã, o que mudou? Pouco ou nada, acusa Mário de Oliveira. “A estrutura continua imperial”, assinala, e até “as vestes ricas dos sacerdotes são disso exemplo”. “Nem os padres sabem o que estão a dizer nas missas. Alguém percebe o que quer dizer ‘consubstancial ao pai’?”, questiona.

A esperança que chegou a acalentar na renovação do Vaticano desabou quando viu que os resultados do Concílio Vaticano II, entre 1961 e 1965, foram “colocados na gaveta”. “A estrutura hierárquica tal como a conhecemos, na qual o Papa está em cima e os crentes em baixo, ia ficar muito abalada com o Concilio Vaticano II. O primeiro Papa que quis aplicar as novas regras foi assassinado ao fim de 33 dias. E o seu substituto, João Paulo II, da Polónia, só foi escolhido porque se soube que tinha votado contra o concílio, ou seja, seria a garantia de que tudo ficaria na mesma, como acabou por ficar.”

Às suas profundas reservas papais não escapa nem Francisco, o primeiro Papa jesuíta da História. Apesar da sua afabilidade e dos níveis de popularidade que mantém, garante nunca ter tido “ilusões a seu respeito, e nem apenas pelo facto de, na juventude, ter sido seguidor do ditador argentino Videla”. “Não acredito nas proclamadas reformas. É tudo superficial. Enquanto não houver algum Papa que coloque em causa o cristianismo, tudo o resto é folclore.”

As críticas contundentes que dirige à estrutura religiosa devem-se ao próprio afastamento etimológico. Religião significa religar, mas “ela só religa cada um para cima e nunca um para os outros”. O modelo adotado foi tão eficaz que até “os partidos políticos se inspiraram nele”, observa, severo com “a auto-humilhação” associada a Fátima.

“Em nome de Jesus, os bispos deviam afastar-se daquilo. Não o fazem porque sabem que, nesse mesmo dia, outra religião se apoderava daquilo.” Apesar da denúncia incessante que faz, continuamos a viver numa sociedade clericalizada. Mas não por muito tempo, realça: “O século XXI é pós-cristão, pós-católico e pós-religioso”.

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