Os mortos que a Guerra Colonial deixou para trás

Foto: Rui Miguel Pedrosa/Global Imagens

Propriedade esquecida da memória coletiva, quase metade dos soldados portugueses tombados em combate continuam sepultados em África. São 3 736 os que ainda permanecem enterrados em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, em campas que há muito foram comidas pelo avanço da vegetação ou desprezadas pela incúria humana. Há famílias, porém, que não desistem de os trazer para Portugal.

O veículo Unimog seguia tonto, bruto e desengonçado pela picada que aproximava a coluna de exaustos soldados ao quartel-general instalado na Fazenda Tentativa, no Caxito. Homens da Bateria de Artilharia 147, uma das primeiras a chegar a Angola nesse 1961 que acordou com Salazar a responder em força ao massacre dos independentistas da UPA – 800 mortos, a grande maioria colonos brancos. “Para Angola rapidamente e em força”, ordenou o ditador aos microfones da RTP e da Emissora Nacional a 13 de abril. E Aquilino Silva Gonçalves, 21 anos por completar e noiva por desposar, foi. Ele que mal sabia manejar uma arma e poucos meses de tropa tinha cumprido.

Por culpa do piso traiçoeiro ou apenas pura incompetência do destino, ninguém sabe, a pesada viatura de fabrico alemão desgovernou-se e atirou ao solo os jovens militares que na caixa aberta tentavam aguentar-se sentados a cada metro de buracos e lombas. Aquilino foi dos primeiros a ser projetado.

O franzino aldeão de Ponte de São Vicente, concelho minhoto de Vila Verde, mergulhou violentamente de cabeça na terra cor de barro, que mais parecia cimento de tão dura e seca. Morte imediata naquele chão inóspito de uma Angola armadilha mortal. E um corpo que demorou quase 60 anos a regressar à terra que lhe dera berço e vida. À Metrópole, como então Portugal era apelidado por quem se lhe queria referir.

Aquilino Silva Gonçalves foi das primeiras vítimas de uma guerra que haveria de prolongar-se por mais 13 anos, até 1974, e deixar um rasto de 8 600 mortos entre os mobilizados para defender o que restava de um império em ebulição – o número é das Forças Armadas e consta do relatório da Comissão para o Estudo das Campanhas em África, nomeada pelo Governo da Aliança Democrática (AD), de Francisco Sá Carneiro, em 1980, e liderada pelo general Themudo Barata. Destes, 3 736 nunca retornaram a Portugal. Quase metade, portanto.

“É um assunto sensível”, reconhece o tenente-general Chito Rodrigues, presidente da Liga dos Combatentes, única entidade que fez o levantamento oficial dos militares portugueses falecidos que permanecem em solo africano. Pouquíssimos acabaram por regressar e ter funeral junto dos seus. “Talvez cerca de meia centena, não há informação concreta. Aliás, não há qualquer pedido pendente.”

Aquilino parecia condenado a ser mais um dos que teria África como sepultura eterna. Valeu Otília Gonçalves, a irmã caçula, que nem nascida era aquando da tragédia mas que se habituou a conviver com a dor dos pais por não terem condições de trazer o corpo do filho para casa. “Ainda durante a guerra, o Governo pediu 10 contos [3 300 euros ao câmbio atual, contas da Pordata] para fazer regressar o caixão. Com o meu pai pedreiro, a minha mãe doméstica e dez filhos vivos, eram uns na barriga e outros no colo, como é que eles tinham esse dinheiro?”, questiona.

A revolta interna de Otília sempre a desassossegou. Aliás, com o passar dos anos foi-se acumulando ao ponto de não a fazer descansar enquanto o irmão não fosse chamado à sua presença. “Contactei tudo e todos sem que ninguém me adiantasse sobre como trazer o meu mano de volta. Andei 20 anos nisso. Ou mais”, recorda. Escreveu cartas ao Governo, ao Exército, a uma infinidade de organismos e entidades. Desgosta-se. “Nunca obtive resposta, só acusaram a receção das cartas.”

Um irmão de Otília Gonçalves foi dos primeiros mortos no Ultramar, em 1961. Ela nunca desistiu de o trasladar para Portugal. (Foto: Rui Miguel Pedrosa/Global Imagens)

Como a esperança teimava em não esmorecer, Otília comprou campa no cemitério de Ponte de São Vicente, mesmo sem saber se algum dia ela teria ocupante certo. Até que chegou a quem em Angola deu com a campa do irmão.

Tomados os procedimentos necessários, “e foram muitos”, pagas as despesas para que a transladação recebesse luz verde – “ninguém ajudou nada, só a TAP” -, Aquilino regressou à aldeia de onde saiu, há 57 anos, para nunca mais voltar pelo seu pé. O funeral, com direito a honras militares, foi em abril do ano passado.

“Agora, o mano está perto de mim, não em terra de outros. Foi um anjo que o trouxe de volta. O meu anjo”, reconcilia-se consigo mesma Otília, que guarda a chapa carcomida que Aquilino levava pendurada ao pescoço quando perdeu a vida.

Golpes de perseverança

O anjo que caiu na vida de Otília e lhe trouxe o irmão dá-se pelo nome de Carlos Rosa. Português emigrado em Angola durante uma década, Carlos, 50 anos e responsável pela segurança numa empresa de construção, foi ponte para quem por cá desesperava pelo paradeiro de familiares enterrados lá longe. Fez do encontro de campas militares “missão cívica” e desbravou caminhos por onde antes ninguém se atrevera entrar.

“Muitas lápides desapareceram, perderam-se documentos, há cemitérios improvisados que hoje são tudo menos cemitérios, tomados que estão pelo capim. É muito difícil encontrar túmulos que estejam identificáveis. Mas não desisti, isso nunca. Cheguei a empurrar caixões da frente para trás para encontrar militares portugueses mortos na guerra”, afiança à NM.

Foi assim, a muitos golpes de perseverança, que conseguiu descobrir onde parava o túmulo de Aquilino Gonçalves. Vasculhou campas, revolveu processos burocráticos, desbloqueou delicadezas, afrontou pessimismos. Após eternos meses de incessantes buscas, conseguiu descobrir a campa de Aquilino, confirmar-lhe a veracidade e iniciar o processo de trasladação.

“Acompanhei tudo, mesmo a exumação”, rebobina Carlos Rosa, que, pouco antes de devolver Aquilino às origens, ajudara a resolver mistério idêntico de um militar que se queria em casa.

Carlos Rosa, emigrado em Angola durante uma década, ajudou famílias a encontrar soldados mortos, vasculhando campas e revolvendo processos burocráticos. Foi a sua “missão cívica”. (Foto: Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens)

Ernestina Silva procurava o pai, António Conceição Lopes da Silva, e quase perdera a expectativa de o poder devolver à terra que o viu nascer, a aldeia de Lobão da Beira, concelho de Tondela, distrito de Viseu. Sabia-o morto desde 3 de outubro de 1963, era ela bebé de colo, quando bala certeira perfurou o coração de António durante uma operação em Úcua, na angolana província do Bengo. “Os camaradas paraquedistas levaram-no em ombros durante cinco horas. Acabou enterrado em Luanda”, desfia Ernestina, 57 anos, emigrada nos Estados Unidos vai para 33.

A vida da mãe de Ernestina entretanto compôs-se com outro companheiro, mas a memória do pai de sangue e o desejo de o fazer regressar da terra onde morreu foram mote a que entregou todas as forças. “Sempre o procurei, embora não fazendo a mínima ideia de onde poderia estar sepultado.”

Foi um antigo companheiro de armas do pai, com quem Ernestina se cruzou quase por acaso na rede social Facebook após mais de meio século de buscas infrutíferas e de certezas abaladas, quem lhe deu pistas. Daí até chegar ao contacto com Carlos Rosa – “um anjo, lá está, o que ele fez nunca o saberei agradecer” – foi trajeto curto. “Fiquei horas a chorar de contente quando soube do sítio da sepultura”, confessa.

António Conceição Lopes da Silva caiu morto com 22 anos e esteve perdido em tumba quase incógnita a milhares de quilómetros de Portugal durante 54. Em 2017 chegou a Portugal e teve direito a funeral militar. “Quando vi pela primeira vez o caixão fiquei em paz. E senti que também o meu pai a encontrara”, relata Ernestina.

“Ninguém quer saber”

São várias as razões para que seja regra aquilo que poderia ser confundido com desinteresse e que leva a que milhares de soldados portugueses combatentes na Guerra Colonial permaneçam sepultados em África. Porque as trasladações são dispendiosas – cerca de 10 mil euros, apurou a “Notícias Magazine” -, porque os familiares mais próximos dos mortos foram desaparecendo com o avançar das gerações, porque a burocracia é muita, porque há memórias em que é preferível não tocar para que feridas antigas não reabram.

As razões são avançadas por Fernanda Pereira, que em 2015 ajudou a fundar a União dos Antigos Combatentes da Guerra do Ultramar e Índia (UAC), 5 000 sócios. “Ninguém quer saber de quem lá ficou, ninguém faz nada, ninguém ajuda quem os quer de volta. Isso acaba por levar à descrença de quem quer trasladar”, denuncia.

Auxílios financeiros para quem pretenda trazer os seus são quase nulos, apenas o transporte do caixão é assegurado gratuitamente pela TAP. De resto, tudo são expensas de quem faz missão resgatar quem perdeu a vida fardado por Portugal. E depois há o tempo, que não perdoa e faz cair no esquecimento inconsciente quem ficou para trás.

“Os pais desses soldados morreram, os filhos eram muito pequenos quando os pais tombaram, as noivas e mulheres refizeram as suas vidas. Apenas os irmãos poderiam eventualmente estar interessados na trasladação. A questão é que estamos a falar de soldados provenientes de meios pobres, com poucos recursos”, explica Manuel Loff, do departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Universidade do Porto e investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.

Desde o início do conflito nas ex-colónias, em 1961, que a norma do Estado Novo foi clara: quem morresse e não fosse oficial de carreira, ficava obrigatoriamente em África. Apenas regressariam a Portugal aqueles a quem as famílias pagassem transporte e funeral. Tal regra esteve em vigor até ao virar de 1967 para 1968, quando o Governo de Salazar providenciou transporte sem custos para mortos de guerra, continuando, todavia, a não suportar qualquer despesa adicional.

O pai de Ernestina Silva morreu em Angola, onde esteve sepultado 54 anos até a filha o trazer para o cemitério da aldeia natal, em Tondela. (Foto: DR)

“Havia uma injusta lógica hierárquica do esforço de guerra, ao considerar que apenas os oficiais tinham direito à trasladação”, resume Manuel Loff.

Esforços diplomáticos

O Estado continua a considerar o regresso dos mortos à terra pátria assunto sensível. No entanto, vai levantando delicadamente a ponta de um véu desbotado, dando passos que não haviam sido dados no período entre o final da guerra nas colónias e a consolidação do regime democrático em Portugal.

Em abril último, o assunto foi discutido entre os presidentes de Portugal e de Angola. Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou uma deslocação oficial a Luanda para abordar a situação com João Lourenço. À chegada a Lisboa, Marcelo terá recebido garantias por parte do Ministério da Defesa de que os processos começariam a ser revistos.

Fonte da Presidência da República não quis adiantar mais pormenores à NM, remetendo qualquer posição sobre esta matéria para a Defesa. Ou seja, para o Governo. Certo é que bastaram poucos meses para que os governos de Portugal e Angola tocassem, embora ao de leve, no tema.

“O trabalho de estudo da localização e de recuperação das campas em Luanda, e que num momento posterior deverá abarcar toda o país, será feito em estreita ligação com as autoridades angolanas”, garante à “Notícias Magazine” João Gomes Cravinho, ministro da Defesa, que, também recentemente, se deslocou a Angola e discutiu o tema com o Executivo local. “A visita contribuiu para consolidar a compreensão mútua quanto a este tema”, sublinha o governante, sem mais adiantar.

Fica a certeza de que, para o Governo, “Portugal tem um dever de memória para com os militares que tombaram em combate e cujos restos mortais se encontram ainda hoje fora do território nacional”.

Para já, porém, as trasladações serão apenas feitas internamente. Ou seja, os restos mortais de soldados portugueses espalhados por Angola serão reunidos em ossários comuns, em Luanda, cuja preservação ficará a cargo da Liga dos Combatentes. “Estamos já no terreno a fazer diligências nesse sentido, nomeadamente identificando os caixões dos militares, naquele que é um programa estratégico e estrutural de conservação de memórias”, confirma a Liga através de Chito Rodrigues.

O croqui da esperança

Noutra sangrenta geografia da guerra, a Guiné-Bissau, combateu António Vitoriano, alentejano de Castro Verde, 20 anos quando foi emboscado por elementos do PAIGC na zona do Guidaje. O calendário marcava 23 de maio de 1973. António e outros dois militares ao serviço de Portugal foram atraídos a um descampado que os deixou à vista clara do inimigo. Acabou abatido e sepultado muito perto do local onde caiu em sangue. “Foi impossível trasladar logo o corpo porque a zona estava sob ataque cerrado”, elucida Conceição Vitoriano Maia, irmã de António.

António Vitoriano esteve mais de 40 anos sepultado na Guiné-Bissau.

A guerra prolongou-se até ao ano seguinte, sempre debaixo de forte ofensiva do PAIGC, o que tornou impossível acelerar diligências para poder realizar funeral condigno.

“Depois do 25 de Abril a minha mãe ainda pediu para que o corpo viesse para Portugal, mas ninguém do Governo de cá abriu portas. Sobrava um croqui que indicava, aproximadamente, onde poderia estar o corpo do meu irmão, mas era tudo muito vago”, descreve Conceição.

Valeram-lhe os conhecimentos de arqueologia, curso em que se formou e que exerceu antes de partir para Angola, como professora num colégio em Luanda, para que a esperança de recuperar os restos mortais do mano António não fosse vã e se fechasse definitivamente porta aberta de dor. “Em 2008 solicitei ao Ministério da Defesa a trasladação. Disseram que não, que não queriam abrir precedentes porque se poderia estar perante uma Caixa de Pandora. Então avancei eu.”

Reuniu uma pequena equipa, partiu para a Guiné-Bissau e cavou terra no perímetro que o precioso croqui indicava como destino final do irmão. Encontrou-o. “Limpámos mato, fizemos prospeção geofísica para localizar anomalias no terreno que pudessem levar à sepultura e em dois dias detetámo-la. Ao terceiro dia começámos a escavar. O corpo foi identificado por antropólogos”, acentua Conceição. António veio para Castro Verde, onde agora repousa na paz que a família procurara durante mais de 40 anos.

“Um peso que um gajo carrega a vida inteira”

Mário Guerreiro morreu um dia após completar 60 anos, corria o ano de 1974 e poucos meses sobravam para o que viria a ser o dia inicial inteiro e limpo, como escreveu Sophia de Mello Breyner. Militar de carreira, fez os 13 anos de Guerra do Ultramar servindo variadas unidades, até acabar destacado em Luanda. Onde morreu de doença em pleno quartel. Ao serviço da tropa portuguesa.

O corpo de Mário Guerreiro continua perdido em Angola; Eduardo, o filho, aponta o nome do pai inscrito no memorial de homenagem aos mortos na Guerra Colonial, em Lisboa.

Eduardo, o filho, também fez a guerra, também calcorreou picadas, também enfrentou delicadas operações contra os grupos armados que lutavam por uma Angola independente do jugo colonial. Hoje, aos 79 anos, percorre-lhe a mágoa de nunca ter conseguido trazer para Portugal o corpo do pai. “Sei que a urna esteve na capela do cemitério de Santa Ana, em Luanda, e que desapareceu depois do 25 de Abril”, conta.

Depois de uma saída atribulada de Angola, onde entretanto se estabelecera, Eduardo Guerreiro foi viver para África do Sul, depois para os Açores, até se mudar para Lisboa, quando a filha foi para a capital estudar Medicina. Ali foi ficando, com o remorso de nunca ter conseguido recuperar o que sempre desejou recuperar. “Tentei averiguar onde possa estar a urna, fiz imensas diligências, contactei as autoridades, tentei tudo. E nada, nem uma pista”, desabafa. “Nem mesmo as pessoas lá em Angola conseguem saber alguma coisa que seja, é muito difícil. Impossível.”

Passaram quatro décadas e meia, a idade avançou e a esperança de Eduardo esmoreceu para níveis que não encaixam no otimismo. “Sinceramente já não acredito em nada. Não acredito. É um desgosto, um peso que um gajo carrega a vida inteira”, revolta-se Eduardo Guerreiro, o homem que perdeu o pai numa guerra que ambos serviram.

Não houve adeus para mais de 3 000 famílias portuguesas, que, um dia, abraçaram quem partiu para a guerra sem adivinhar que aquela seria despedida definitiva. Luto infinito e impotente em nome dos seus que nunca regressaram. E a revolta por uma pátria que os deixou para trás.