Texto de Joana M. Soares
O vento corre e faz as árvores do jardim interior do Centro Hospitalar Conde de Ferreira (CHCF), no Porto, dançarem. Sente-se o ar frio no ouvido e o ruído das folhas é abafado pelo toque do telemóvel da médica psiquiatra Rosa Gonçalves, de 50 anos, também diretora clínica do hospital psiquiátrico portuense desde 2015.
Depois de algum tempo de conversa suspira: “Mais um caso”. “A mãe de um paciente nosso foi agora diagnosticada com esquizofrenia, o que é comum em mulheres adultas.” Soube pela assistente social. A esquizofrenia, essa doença complexa caracterizada pela incoerência mental, atinge cerca de 1% da população mundial e 48 mil pessoas em Portugal.
Números e estatísticas onde cabe a história de Manuel Torres, 57 anos, e da mãe Amélia, de 82 anos, ambos internados no CHCF, ainda que em enfermarias diferentes. Olhar doce, meio perdido no ar, olhos semicerrados. Muito focado. Enfia as mãos uma na outra. Demora a dizer palavras como se estivesse a escolher a melhor. Há 31 anos que o CHCF é a sua casa.
“Estou há 31 anos aqui, sabe, e só conheço a rua de Costa Cabral. Desejava fazer uma vida normal, lá fora, mas não sou capaz, sinto-me inseguro”, diz Manuel Torres. Herdou a esquizofrenia da mãe. A mãe está sentada a seu lado. O tempo tirou-lhe os dentes. Dá a mão ao filho, sorri muito, fala pouco e mal. Anda devagar, a condizer com uma perna recentemente partida numa queda.
Manuel fala pela vez de ambos. “A minha mãe adora-me. E eu a ela. Damo-nos bem aqui dentro. É muito protetora. Está bem melhor, coitadinha”, reconhece, enquanto encosta as costas da mão esquerda na palma da mão direita da mãe.
A mãe foi internada no CHCF quando o filho tinha seis anos. Manuel chegou nove anos depois. “Senti muito a falta da minha mãe.” Entre o internamento da progenitora e o diagnóstico da doença esteve na Casa do Gaiato, onde desperdiçou uma carreira de cozinheiro. “Tinha muito jeito para a cozinha. Nesse tempo, ninguém via, mas já me sentia alucinado, desgarrado do Mundo. Fugi de lá. Ainda agora parece que converso com alguém dentro de mim.” Tem dois irmãos, um entretanto falecido, outro, mais novo, que não sabe bem onde anda. “É complicado, esqueço-me, o que estava a dizer?” O caminho à lembrança do irmão é tortuoso. Muda de conversa.
Chegou de um “campo de lavradores”, em Telões, Amarante. “A minha situação é dramática.” Tem um sorriso fácil, como se estivesse à espera de um sonho por concretizar. Constantemente. Manuel é um empreendedor dentro do hospital. Instalou, para os companheiros-pacientes do CHCF, um mini café. Chama-se “O Bar do Torres”. Cada café custa 30 cêntimos. Com o que ganha, tem autorização “para ir à loja em Costa Cabral e assim reabastecer a máquina com copos e palhinhas”.
Manuel Torres desabafa que as manhãs são dolorosas. Muito dolorosas. E sente-se a dor no olhar, na voz. Pesada. “Parece que o Mundo vai cair.” Quantos comprimidos toma? Estica os dedos. Tenta chegar ao número exato. Não consegue. “São muitos – sete logo pela manhã, e mais depois. Depois dos comprimidos sinto-me melhor. Clinicamente estável.” Relata o quotidiano num discurso em piloto automático: “Faço as higienes, lavo os dentes, arranjo-me, vamos ao pequeno-almoço”. A seguir, o tempo é passado no bar. “Convive-se.”
Uma doença que atravessa gerações
O CHCF tem 340 doentes internados, muitos deles relacionados familiarmente. Rosa Gonçalves não consegue estabelecer um número exato. “Temos um filho e uma mãe, dois pares de irmãos, primos, um tio e um sobrinho, muitos casos em que de alguma forma existe um parentesco.” A contagem demonstra a carga genética que está por detrás da doença.
“O senhor Torres e a mãe visitam-se e encontram-se, as duas irmãs vivem juntas, outros não se relacionam bem e está cada um na sua enfermaria”, descreve a diretora clínica do Conde Ferreira. A história de Manuel Torres e Amélia é apenas uma entre muitas. E não é, em termos clínicos, a andorinha que faz a primavera. Não há uma prova provada, científica, de que a esquizofrenia seja apenas e só responsabilidade da genética. Para Rosa Gonçalves, é uma doença multifatorial.
“Em medicina, avaliamos a carga genética mediante diferentes tipos de estudos, nomeadamente estudos com gémeos, mono ou dizigóticos, estudos familiares. A verdade é que sabemos que há concordância em 50% em gémeos monozigóticos. Não sabemos qual é o padrão genético, se é dominante ou recessivo, mas, sem dúvida, há um fator genético. O que ainda não sabemos é o padrão hereditário. Por que motivo às vezes passa na primeira geração, noutras salta uma geração. Não sabemos bem. Não é possível quantificar.”
Habitualmente, descobre-se a esquizofrenia no início da idade adulta. O que não quer dizer que não existam casos na infância e outros bem mais tardios, até mesmo na terceira idade. O aparecimento da doença nas mulheres costuma ser mais tardio do que nos homens.
O psiquiatra Adrián Gramary, de 52 anos, trocou Vigo pelo Porto há mais de 20 anos. Imigrou no auge da crise espanhola em meados dos anos 1990. Foi 16 anos diretor clínico do CHCF. Fala na certeza da vulnerabilidade genética com a dúvida da falta de estudos. “A própria esquizofrenia continua a ser um enigma. Há muitos fatores envolvidos e um deles sabe-se que é o stresse perante a vulnerabilidade genética. Não é previsível que esses fatores sejam de relevo. Mas poderão ter influência.”
Vários estudos comprovaram que existe uma causa genética, mas não explicam tudo. 70 a 80% da doença pode ser sustentada na carga genética, mas análises feitas com gémeos monozigóticos, em que a carga genética é semelhante, revelam que a probabilidade de um gémeo adoecer quando o outro sofre de esquizofrenia é de 50%. Nos gémeos dizigóticos é de 15%.
Têm sido muitas as tentativas para encontrar outros fatores que estejam na origem da esquizofrenia, como problemas durante a gravidez, no momento do parto ou infeções líticas. Algumas dessas situações são, de facto, mais frequentes em doentes com esquizofrenia, mas a verdade é que nenhuma sozinha justifica a doença.
Adrián Gramary diz que “drogas como canábis ou cocaína são o gatilho para espoletar uma esquizofrenia que muito provavelmente já lá estava em termos genéticos”. “Havia uma vulnerabilidade genética, bioquímica. O consumo de uma droga desse tipo pode desencadear uma doença que possivelmente iria aparecer mais tarde, por outros motivos, ou mesmo sem motivo”, concretiza. O médico espanhol anota outra curiosidade: “Doentes com artrite reumatoide têm menos frequentemente esquizofrenia”.
“Não basta dar uma cama e um prato”
A ciência ainda não explica o mecanismo que faz nascer a esquizofrenia. Também por isso, os doentes não conseguem recuperar o suficiente para serem autónomos. “Necessitam de IPSS e associações religiosas para continuarem a ser controlados, necessitam de ambiente hospitalar para a medicação, para a higiene. Todas as necessidades básicas destes indivíduos têm que ser garantidas, assim como todas as atividades básicas que permitam pelo menos mantê-los no estado em que estão neste momento”, sustenta Rosa Gonçalves.
“Isto custa dinheiro, custa muito dinheiro.” A médica psiquiatra critica o desleixo do Estado português para com o estado da doença mental no país. Segundo a especialista, estudos mostram que uma em cada cinco pessoas padece de uma doença do foro mental. “O que indica que deveria haver um investimento maior na psiquiatria do ponto de vista económico. É umas das nossas lutas”, refere a médica, sublinhando que “não basta dar uma cama para dormir e um prato onde comer”.
A esquizofrenia é um labirinto. Ou melhor, é um conjunto de labirintos, uma vez que não há um único tipo de esquizofrenia, há vários, dependendo dos sintomas prevalecentes em cada caso. Adrián Gramary fala, por exemplo, “de um tipo de esquizofrenia que é compatível com uma vida laboral normal, embora mais ou menos adaptada.” Outros doentes, com sintomas negativos, têm perda de funcionalidade e muito dificilmente voltam a ter um comportamento idêntico ao que tinham antes da doença.
Segundo um estudo do Plano Nacional para a Doença Mental, as enfermidades mentais têm uma fatura anual para o Estado português de 436,4 milhões de euros. Os custos diretos – internamento, reabilitação, ambulatório, hospital de dia ou medicamentos – valem 96,1 milhões. Os custos indiretos – absenteísmo, não-participação no mercado de trabalho, produtividade reduzida – são de 340,3 milhões.
No CHCF existe um rol de atividades e de técnicas para otimizar competências, para fazer relacionar o paciente com a sociedade e o meio em que está inserido. “Não há camas nem recursos suficientes para tratar estes doentes.” Este dedo, apontado por Rosa Gonçalves às instituições públicas, a “Notícias Magazine” direcionou-o ao coordenador do Plano Nacional para a Doença Mental.
No entanto, Fernando Teixeira Xavier não quis comentar. Seja como for, o Plano Nacional para a Saúde Mental “prevê uma série de estruturas, a forma como está desenhado é muito boa, a implementação do mesmo tem sido muito lenta”. “Aqui [no Conde de Ferreira], tentámos com o fundo privado e público que recebemos criar uma residência de apoio máximo.” O objetivo é reabilitar o doente e proporcionar-lhe uma vida o mais normal possível.
É o caso de Zé Pedro – como gosta de ser tratado -, 53 anos, um dos pacientes residentes no CHCF. Tem trato gentil e um olhar atento. Fala imenso e gosta de atenção. “Não vai mudar uma vírgula às minhas palavras”, pede. Tem um lenço com losangos desenhados, padrão incerto, onde sobressai o azul. Há também amarelo. Usa bata cinzenta pintalgada com muitas cores, pintada de pintor-que-pinta-na-tela. Usa óculos escuros e não os tira. E uma bengala, apoia-se numa bengala.
Não é velho, nem novo. Tem uma filha com 35 anos. Zé Pedro começou assim a partir a pedra do seu caminho neste Mundo. Sabe ao que vem e atira: “Sou o Zé Pedro. Sofro de esquizofrenia paranoica, também psicose esquizofrénica e também de depressão”. E prossegue: “Tomo 17 comprimidos por dia. Mas não é só para a cabeça, é também para controlar a diabetes, a tensão”. Enfatiza, com orgulho, que conheceu a mulher antes dos 17 anos. “Eu fui o único homem dela, e ela foi a minha única mulher.” Tiveram uma filha. Já têm netos.
Vive o 25 de Abril como se fosse hoje. Criou um enredo para essa página da História portuguesa. A psiquiatra Rosa Gonçalves diz que é a obsessão de Zé Pedro na sua esquizofrenia. “Pensa que foi maltratado pelo antigo regime. Impossível. Era muito criança na ocasião.” Está no CHCF há 15 anos. Está internado durante a semana e tem autorização para passar o fim de semana em casa.
Do nada põe-se a enumerar as qualidades que a vida lhe ofereceu: “Sou limpo, sou asseado, sou capaz, sincero, voluntarioso, eficiente. Faço tudo o que a sociedade espera”. E repete: “Não vai mudar uma vírgula às minhas palavras”. Entre as atividades que lhe ocupam o tempo (terapia ocupacional) estão cartonagem, expressão plástica, teatro, pintura. Muita coisa. Tem habilidade para todos os serviços.
“Quando era novo, antes da doença, fui serralheiro, trabalhei na construção civil, trabalhei em artes gráficas.” Como é que olha para o estado da saúde mental em Portugal? “Com muita tristeza. O Governo não dá apoios para a pessoas viverem em casa. Deveria apoiar mais as famílias e instituições como o Conde de Ferreira, que ajuda muito as famílias e os doentes.” Como é que soube que tinha a doença? (silêncio) “Foi complicado. Magoamos sempre os que mais amamos.”
Sintomas e padrões comportamentais
Uma bola cor-de-rosa sobressai na paisagem verde do hospital. É o panótico. Hoje, é uma peça museológica que assinala um passado que efetivamente passou. Nasceu no Conde de Ferreira, entre 1893 e 1894. Na ocasião, o Conde de Ferreira chamava-se Hospital dos Alienados. O panótico era o Pavilhão dos Furiosos. Os doentes eram colocados numa enfermaria comum e estavam constantemente sob vigilância numa espécie de “big brother”. Para perceber melhor a palavra panótico basta decompô-la: “Pan” vem do grego “tudo” e “opticon” significa “visão”.
“Temos de ver no contexto da época, em que não havia quase tratamentos para este tipo de doentes, a possibilidade de os controlar era muito complicada”, enquadra Rosa Gonçalves. Ou seja, “quando estavam agitados, eram colocados nestes quartos sozinhos, de forma a não se aleijarem”. Nem a eles nem a terceiros. “Hoje, os avanços têm sido muitos, mas até 1960 quase não havia medicamentos e eram poucos os tratamentos eficazes. De lá para cá, temos evoluído muito ao nível dos fármacos, mas ainda não temos os ideais, pois ainda não atuam em toda a sintomatologia como gostaríamos”, partilha a diretora clínica do Conde de Ferreira.
De acordo com Adrián Gramary, há vários sintomas e padrões comportamentais que podem fazer suspeitar de uma esquizofrenia. “Quando a pessoa começa a ficar isolada, quando deixa de ter contactos com os amigos, com os pares que tinha habitualmente, pode dar uma aparência de quadro depressivo. Deixa de ter comunicação, cada vez fala menos. Pode ter monólogos, no quarto, em espaços fechados, fica desconfiado, tem quebra no rendimento académico ou profissional.”
Para muitos dos doentes internados, o hospital funciona como residência. É o que acontece com Gabriela Botelho, 51 anos, com um distúrbio bipolar, descoberto há 18 anos, quando iniciou tratamentos por causa da toxicodependência. A perturbação bipolar e a esquizofrenia são duas doenças psiquiátricas graves. Alguns estudos demonstram que podem existir fatores genéticos comuns, mas essa ligação não é linear. Por outro lado, alguns sintomas, como alucinações e delírios, existem nas duas doenças.
No caso de Gabriela, o hospital acabou por ser a luz ao fundo de um corredor de muita cocaína e heroína. A droga acordou a doença escondida no corpo. É natural da Lixa e foi lá que aos 13 anos perdeu o pai, quando este decidiu colocar um ponto final na vida, suicidando-se. Do lado da mãe há também um historial de suicídios.
De vez em quando, tem autorização para ir a casa, na zona das Antas, no Porto, visitar e passar uns dias com a mãe, já com o peso da idade em cima, mas que ainda “está aí para as curvas”. Gabriela tem uns olhos verdes. Um olhar descaído, mas feliz. Os dentes recompostos. E um terço que espreita na gola da camisola. “Gosto de andar com Deus.” Diz que a memória é fraca. Mas endireita-a.
“Foi um namorado que me pôs no mundo da droga. Um dia, disse-me: ‘vou batizar-te’. E pôs-me na heroína e na cocaína.” Foi a perdição de Gabriela, aos 17 anos, depois de ter a primeira filha. A segunda chegou mais tarde, de um segundo companheiro. Depois da droga, a bipolaridade. O suicídio poderia ser o passo seguinte. Foi no Conde de Ferreira que se curou. “Foi horrível o desmame, tinha muitas recaídas.” A médica psiquiatra diz que “a droga agrava o prognóstico de um distúrbio bipolar e mascara o quadro”. O tratamento é a desintoxicação e os fármacos.
“Curei-me aqui [Conde de Ferreira]. Adoro estar aqui.” Há muito por onde ocupar o tempo no hospital psiquiátrico portuense. A fazer tapetes, por exemplo. “Tenho jeito.” Gabriela visita a mãe, que a recebe, mas as irmãs e as filhas “não entendem” a doença. “Dizem que estou mal da cabeça.” A relação com as filhas não existe. E, nessa inexistência, Gabriela é todo um apelo.
“Amo-as, gostava que estivessem dispostas a conversar, a verem-me. Gostava de conhecer os meus netos. Não percebem a doença, mas aqui [CHCF] não há doentes, os doentes estão lá fora.” Porque “lá fora não são tratados”, completa, em jeito de explicação, Rosa Gonçalves. Para Gabriela, o destino está assomado. “A minha vida vai ser aqui. Sou muito feliz aqui.”
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[Vídeo] Esquizofrenia: um labirinto por resolver