Os hippies ainda moram aqui

O movimento hippie nasceu na década 1960, nos Estados Unidos

Não são muitos, mas resistem, indiferentes ao que o mundo deles diz. Uma aldeia de Viseu foi resgatada ao abandono por uma nova geração de hippies. Isolados, formam uma comunidade única onde a regra principal é o respeito pelo próximo. À portuguesa, num movimento global que teve em Woodstock expressão máxima, faz agora 50 anos.

A estrada desce em ziguezague sem destino aparente. No limite da freguesia de Calde, uma das 25 que fazem o concelho de Viseu, o asfalto acaba e o infinito começa. Um infinito feito de terra batida, de muito calhau pequeno, de alegre desafio para carros que não foram feitos para tanta aventura, de curvas e contracurvas em terreno traiçoeiro, de paredes estreitas de eucaliptos e pinheiros como companhia (o pasto preferido dos incêndios, é do senso comum).

Há zero de indicações que façam adivinhar como, quando e exatamente onde poderá acabar viagem prometida curta mas que segue longa de minutos. Apenas pequenos sinais para peregrinos que por ali se aventuram pelos Caminhos de Santiago indicam que ali também é sítio onde passa gente.

Até que, quase escondido de tão pequeno pendurado num tronco, sobressai à vista um pequeno dístico de cores garridas. Cabrum, diz. A aldeia morta que uma dúzia de gente cansada do sistema tomou como sua e ali montou mundo fora do Mundo, fazendo-a ressuscitar da lista dos lugares desaparecidos à conta do despovoamento do interior. E reduto de quem privilegia as raízes dos princípios do movimento hippie e os faz perdurar em Portugal.

“A comunidade tem 12 pessoas fixas, muitas outras que nos vão visitando ao longo do ano e ficando cá umas temporadas”, apresenta Manuela Correia, 49 anos, a grande mentora e dinamizadora da nova Cabrum hippie. Ali se partilha identidade de vida comum. Não há televisão, o saneamento básico é ecológico, os animais são respeitados enquanto seres individuais, respira-se budismo, pratica-se a convivência sã entre todos, celebra-se o respeito pelo próximo, pratica-se agricultura biológica, come-se só vegetariano, procura-se paz interior.

O consumo de estupefacientes pesados é expressamente proibido. Drogas leves são toleradas apenas no isolamento das tendas, “nunca em grupo”. O naturismo, tantas vezes associado ao movimento hippie, também está fora de causa.

“Aqui os estímulos são completamente diferentes. Damos primazia à contemplação, somos capazes de controlar as nossas vidas quando antes éramos dominados por um sistema que nos aprisionava enquanto seres individuais”, explica Manuela. Quando ouviu falar deste pequeno paraíso isolado e sozinho virado para a Serra da Arada, foi conhecê-lo e dali já não saiu.

Era 2012 e toda a aldeia era nada, um zero absoluto feito de casas vazias condenadas à podridão, de mato selvagem que quase não deixava ver o chão, de silêncio duro apenas entremeado pelos sons dos animais selvagens que fazem vida na enorme floresta que os olhos deixam ver – há por ali javalis, pássaros (muitos e diferentes, a julgar pelos cantares distintos que se escutam) e até lobos.

“Queria liberdade a tempo inteiro, sentir que tinha o controlo da minha vida. E Cabrum acabou por me escolher.” Largou tudo no Porto – “uma boa moradia, um emprego pago generosamente numa multinacional de cosméticos, uma vida bem acima da média” – e começou a comprar terras da aldeia, a celebrar contratos de cedência com proprietários locais, “a resgatar e recuperar o vale para que ninguém o destruísse”.

Hoje, são três as casas e dois os palheiros de que é dona através da Associação Amakura, que fundou e dirige. Depois, há alugueres com rendas simbólicas que não ultrapassam os 50 euros ao mês.

Manuela Correia – a grande dinamizadora da comunidade de Cabrum, distrito de Viseu

“O Governo somos nós”

Pedro Teixeira, 38 anos, também se deixou encantar por Cabrum, para onde levou companheira e a filha pequena. Era investigador na Universidade de Aveiro, teve emprego fixo, chegou a trabalhar no estrangeiro. E um dia decidiu que essa vida não era para ele.

“Em Cabrum não há Governo, o Governo somos nós”, atira Pedro. Frase que parece saída dos inícios da geração hippie, que, como mais à frente se verá, nasceu e floresceu na década 1960. “Isto não é um trabalho acabado, é uma grande aprendizagem ao longo do tempo”, considera este homem alto e magro, barbudo, longas rastas no cabelo negro e discurso claro. Ele que se orgulha de contribuir para “melhorar os princípios hippies”, conferindo-lhes um “aperfeiçoamento adequado à realidade atual”.

Cabrum nunca fora grande em tamanho e população – 30 pessoas foi máximo histórico – e em 2009 perdeu o último dos seus, Manuel Pontes de seu nome, que se viu viúvo e decidiu abalar para aldeia vizinha, para não deixar que a solidão o matasse. Passou então a figurar no rol das aldeias desertas, das tantas que assim ficaram no tempo e no espaço, sem ninguém que lhes quisesse habitar.

José Fernandes, presidente da Junta de Freguesia de Calde, agradece aos novos ocupantes de Cabrum. “Vieram dar vida a um sítio que estava condenado”, reflete. “Além de terem trazido mais reconhecimento e retorno de visibilidade à freguesia”, admite.

Pedro Teixeira vive com a família em Cabrum, depois de se afastar da carreira de investigador

“Emanados pela energia do amor”

Entre moradores fixos e visitantes temporários, são cada vez mais os que vão a Cabrum experimentar o que é viver em comunidade. “Longe de uma sociedade que mata aos poucos”, como descreve Manuela Correia. São portugueses e estrangeiros, gente de todas as proveniências e idades. Uns passam pequenas temporadas, geralmente uma semana, mas há quem tenha optado por uma mudança mais radical.

“Aqui estamos emanados pela energia do amor.” Helena Lillith tem 60 anos, reformou-se há meses de um emprego de décadas numa das mais conhecidas livrarias de Lisboa, deixou para trás a grande cidade e este verão foi morar definitivamente para Cabrum. Ela e as duas cadelas.

“Fui hippie aos 20 anos e nunca imaginei que pudesse voltar a ser com esta idade, até julgava que isso tinha acabado. Mas agora não quero mais nada para a minha vida. Vou ficar aqui para sempre”, garante, enquanto desenha, pernas cruzadas à chinês sentada no chão, mandalas recheadas de cores vivas. “Ser hippie é fazer parte de um movimento global de pessoas que querem quebrar as correntes de uma democracia que não passa de uma ditadura e que nos adoece”, define Helena, a mais velha habitante da nova Cabrum.

Ao lado, Margarida Luís, 28 anos, curso de Economia no ISEG e currículo preenchido de empregos em bancos e companhias de seguros, escuta a conversa. E logo se revela desanimada de “depressões, de ansiedades e da confusão na grande cidade”. Há um mês abandonou casa em Odivelas e fez de Cabrum morada definitiva. Deixou as multidões para viver numa quase reclusão coletiva. E não se arrepende.

A casa de Manuela Correia foi construída de raiz com materiais amigos do ambiente

“Confesso que de início não sabia muito bem o que fazer, só sabia que estava muito cansada da vida que levava e que não aguentava mais. Mas, agora, tenho a consciência plena que é isto que quero”, assegura. O isto é o convívio “com pessoas diferentes que partilham o mesmo rumo”, o contacto com uma “natureza em estado puro”, o desafio de “encontrar paz longe de tudo o que faz mal”.

Woodstock em estado puro

O movimento hippie nasceu na década 1960 nuns Estados Unidos marcados pela guerra do Vietname, pela luta pelos direitos da população negra, pelas mortes traumáticas de John F. Kennedy e Martin Luther King, pelo surdo conflito com a comunista URSS, pela geração nascida no baby boom pós-Segunda Guerra Mundial que pedia vida assente nos ideais da paz e do amor.

Uma espécie de contracultura que defendia a comunidade ao invés do individualismo e que se orientava por princípios budistas e contra o sistema vigente. Sustentava-se na literatura da chamada Beat Generation, que, após o final da Guerra, rejeitava o materialismo e de que o escritor Jack Kerouac (1922-1969) foi nome maior, sobretudo através da obra “On The Road”. Havia drogas – o LSD floresceu então -, sexo – a emancipação do corpo foi um dos desígnios cimeiros dos hippies – e muito rock n’roll – de que Woodstock foi sinal maior.

O festival, que decorreu entre 15 e 17 agosto de 1969, faz agora precisamente 50 anos, juntou numa quinta de Bethel, a duas horas de caminho de Nova Iorque, multidão de quase meio milhão de pessoas. “Três dias de paz e música”, assim rezava, a vermelho vivo, o cartaz que anunciava nomes como Ravi Shankar, Joan Baez, Canned Heat, Janis Joplin, The Who, Jefferson Airplane, Joe Cocker, Ten Years After ou Jimi Hendrix.

Bandas como os Beatles ou os The Doors e artistas como Bob Dylan ou a dupla Simon & Garfunkel recusaram participar, sobretudo por duvidarem do sucesso e alcance da iniciativa. Os bilhetes custavam 18 e 24 dólares (16 e 21 euros ao câmbio atual).

Helena Lillith, 60 anos, é a mais velha habitante de uma aldeia devolvida à vida

Engarrafamentos de quilómetros provocaram o caos nos acessos à quinta. Relatos dos jornais contam que a organização, a cargo de quatro jovens promotores de concertos, não contava sequer com 200 mil pessoas, dada a publicidade pouco expressiva ao festival e ao ineditismo do evento. A quase anárquica confusão surpreendeu a escassa polícia e equipas de socorro presentes. Duas pessoas morreram, uma atropelada por um trator, a outra por overdose de heroína, e houve centenas de assistidos, muitos deles por excessos etílicos ou de drogas.

No meio século que se seguiu, o movimento hippie esmoreceu. Mas não morreu. “A causa continua viva, até mais aperfeiçoada do que nas suas raízes”, entende Pedro Teixeira. Cabrum, no interior mais profundo de Portugal, assim o tenta provar. Com paz, amor e sempre contra o sistema.