Os filhos não são bonecos de plástico. Mário Cordeiro escreve sobre pais apressados e filhos stressados

Texto de Sara Dias Oliveira

O despertador toca, é preciso levantar, ir à casa de banho, vestir, pequeno-almoço a correr, sair de casa, autocarro para apanhar ou carro com motor ligado e preparado para o trânsito, a campainha da escola que toca para o primeiro tempo. Dia após dia. “Pais Apressados, Filhos Stressados” é o novo livro do pediatra Mário Cordeiro que percorre os tempos modernos sem tempo para respirar. O livro já está nas bancas.

O ritmo de vida sacrifica a qualidade de vida. Ponto. A vida que, escreve o pediatra, é “arrasada pelo rolo compressor das ideias, dos hábitos, do quotidiano, do ciclo infernal que nos consome e tritura e ao qual, paradoxalmente, parece que não queremos fugir, nem sequer fazer alguma coisa para lutar contra ele.” O trabalho, o chefe, a casa, o carro, os filhos, a escola, as reuniões de pais, os horários. As rotinas instaladas. E aquela voz que ecoa vezes sem fim em qualquer lugar: “Despaaaaaaaaaaaaaaacha-te.”

“Mal acordamos, começa a dança, mas uma dança que é pouco rítmica, pouco estética e muito, mas mesmo muito, desagradável, não nos oferecendo os prazeres da valsa, do tango, do kuduru ou da salsa. A luta diária (luta sem aspas…) é devastadora para quase todas as famílias. Sabemos que cada minuto de atraso ao sair de casa se paga muito caro, em multiplicações exponenciais, no trânsito, no deixar as crianças na escola, no arranjar lugar para estacionar, mais tantas outras coisas”, escreve. E o stresse, “esse maldito fenómeno que nos persegue onde quer que estejamos.” Correr para aqui, correr para ali. Conjugar, sem parar, “e de uma forma quase neurótica e obsessiva”, tantos verbos como fazer, andar, correr, atuar, empreender, trabalhar, ter, comprar, adquirir e possuir.

“Onde está, afinal, o bem mais precioso e escasso, aquele que não tem preço, que é tão acessível ao homem mais rico do planeta como ao mais indigente: o tempo?”, questiona Mário Cordeiro.

Os filhos para educar e para aturar porque vêm com “o pacote” – e o pediatra-escritor pede desculpas pela crueza de utilizar aturar e pacote no mesmo parágrafo. E há tanto para dizer neste capítulo. As histórias para adormecer que são despachadas a correr, com resumos. “A nossa vida passa ao lado da nossa vida. Vivemos em aceleração constante. Aparece um momento precioso, rico, inolvidável, como é o poder (sim, poder!) de fazer deslizar os nossos filhos para o sono, de afugentar os fantasmas e lobos maus que podem atormentá‑los, de exercitar a sua imaginação, um momento de paz, de tranquilidade, de serenidade e de gozo e… desprezamo-lo.”

Mário Cordeiro (Foto: Sara Matos/Global Imagens)

A cidade que engole e que abafa e a ideia, tantas vezes repetida, de que as crianças devem ser poupadas às benesses da natureza. O risco de contrair doenças arrumou as atividades de lazer para espaços fechados, sem chuva e vento, calor ou frio. Um erro, mas que erro, e as “doenças infeciosas ‘agradecem’ que os adultos juntem crianças em espaços fechados, de janelas fechadas, dentro de cidades fechadas…” Olhar para a cidade de outra forma? Porque não? Como um bairro que permite percorrer a pé os trajetos entre a casa, o trabalho, a escola, e as atividades de lazer. E, como acrescenta o médico, permite uma “melhor gestão do tempo, maior descanso, tranquilidade, maior poder do próprio sobre os acontecimentos e sobre o ‘tempo’ (visto, pela maioria, como algo que existe independentemente das pessoas).”

A escola, as notas, as reuniões. Para que serve a escola? Para muita coisa. Mário Cordeiro vai direto ao assunto. “Muitos dos insucessos educativos começam logo aí: na incompreensão das razões da escolaridade e de certas matérias, quantas vezes, também, ensinadas de forma desligada dos assuntos correntes da vida da criança, e numa vertigem de aprendizagem que nos deixa ‘de queixo à banda'”. Tudo é importante, tudo se questiona.

“Um dos maiores favores que podemos fazer às crianças, neste binómio pais-educadores, é não as menorizar intelectualmente nem as transformar em bonecos de plástico, insensíveis e todas iguais, como se tivessem sido produzidas numa qualquer fábrica de produção em série. Ou, também, cair no erro de ver o seu mundo pelos nossos olhos”, alerta Mário Cordeiro.

“Não queremos filhos iguais aos dos outros pais, nem nós somos os pais dos colegas dos nossos filhos, pois não? Nós também somos diferentes deles e sentimos de forma diferente.”

Escola e tempos livres. Tempos livres e escola. E os dias que não chegam para tudo o que se quer fazer e experimentar. As atividades fora da escola ajudam as crianças a descobrir as pessoas que são, para lá das competências académicas, “de verem que talentos, capacidades, ousadias estão dentro de si, assim como, por reflexo, as incapacidades, as faltas de jeito e as limitações”. Mas, por vezes, é preciso travão. “Todavia, esta ‘ganância’ de colocar os filhos em tudo o que é atividade, para ao mesmo tempo usar a arma da vitimização de ‘como eu sofro, em prol da minha prole!’, tem de ser denunciada, pelos seus perniciosos efeitos colaterais, não apenas nos próprios pais como, sobretudo, nas crianças”. O desafio não é complicado. Pensar em como desenvolver talentos, artes e competências dos filhos “sem os envolver numa teia de aranha que sufoca, constrange e asfixia”.

Isabel Stilwell, jornalista e escritora, assina o prefácio do livro e recorda quão fundamental é “sentarmo-nos à mesma mesa pelo menos uma vez por dia, conversarmos, em lugar de contemplarmos a televisão, ou que só tínhamos a ganhar com um acordar mais calmo, sem bomba-relógio a marcar o fim do sono e dos sonhos, pondo fim a noites que desde que somos pais se tornaram dolorosamente curtas e sobressaltadas”.

“O que o Mário Cordeiro abomina, e já agora também eu, é o discurso da vitimização, da impotência, da raiva que se descarrega numa qualquer página do Facebook ou, pior ainda, no dia-a-dia dos nossos filhos. Não estamos autorizados a torna-lhes a vida num inferno”, escreve nas primeiras páginas de “Pais Apressados, Filhos Stressados.”