Os cinco enfermeiros que abalaram o país

Cinco enfermeiros, separados por centenas de quilómetros, uniram-se para lançar uma fórmula alternativa às greves tradicionais. Precisaram somente de uma plataforma digital e redes sociais para mobilizar um exército de 43 mil colegas do Serviço Nacional de Saúde.

Cinco enfermeiros: Nélson Cordeiro, Sara Rego, Nuno Correia, Catarina Barbosa e Vítor Marques. É o que basta para paralisar durante mais de um mês os blocos operatórios de dez centros ou unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

E, com isso, adiar mais de dez mil cirurgias programadas, forçando as negociações entre sindicatos e Governo. Bom, cinco enfermeiros, o denominado movimento “Greve Cirúrgica”, e mais qualquer coisa. Mais uma plataforma digital de angariação de fundos e ainda redes sociais para mobilizar uma classe que até há pouco tempo não tinha muita fé no seu poder reivindicativo.

Cinco enfermeiros que nem sequer eram amigos ou tão pouco moravam perto uns dos outros. Dois estão no Porto, uma em Vila Real, outro em Palmela e mais um em Beja. Cada qual na sua vida, correndo de um lado para o outro numa viatura de emergência médica, fazendo turnos num bloco de partos ou assistindo doentes num internamento de psiquiatria.

Não houve distâncias ou horários trocados que os impedissem de pôr em marcha uma greve às cirurgias para reclamar um salário base de 1 600 euros no início da carreira, a idade da reforma aos 57 anos ou uma progressão “justa” para todos os enfermeiros.

Convocatórias por WhatsApp, reuniões por videoconferência, sms para os acertos de última hora e, em pouco mais de três meses, duas campanhas lançadas e 700 mil euros angariados. Os fundos recolhidos servem para compensar as perdas salariais dos cerca de 1 200 enfermeiros envolvidos nas duas paralisações – a primeira entre 22 de novembro e 31 de dezembro e a segunda iniciada a 30 de janeiro, mas, entretanto, suspensa pela requisição civil do Governo, que tenta travar uma “greve selvagem” de 45 dias, como criticou o primeiro-ministro António Costa.

A troca de acusações entre um lado e outro chegou ao ponto de a tutela suspender as relações institucionais com a Ordem dos Enfermeiros por entender que, ao apoiar este movimento, a bastonária Ana Rita Cavaco violou as leis das ordens profissionais.

Burburinho nos hospitais

O plano deles pôs Governo, federações sindicais, partidos ou administradores hospitalares contra os grevistas, mas nem sequer era original. Há muito tempo que a ideia de criar um fundo com donativos de enfermeiros pairava no ar.

Burburinho nos corredores dos hospitais, comentários nas redes sociais, conversas de café. Não faltavam entusiastas e, claro, alguns milhares de polegares e corações a pulsar nos grupos de Facebook. Mas não passava disso. E o tempo foi correndo. “Há mais de um ano que a luta dos enfermeiros estava estagnada”, recorda Nuno Correia.

Os protestos e as greves estiveram em banho-maria até uma sexta-feira à noite. Em meados de setembro, Nélson Cordeiro dá o primeiro passo: “Quem é que está comigo?” – pergunta ele num dos grupos de enfermeiros do WhatsApp. Vítor Marques, que não o conhecia de lado nenhum, chega-se à frente: “Bora lá!”

O grupo foi-se compondo nos dias seguintes. Sara, que, há uns bons anos, já tinha sido colega de Nélson, juntou-se. Catarina, que conhecia Sara, foi atrás. Nuno, que era “amigo virtual” de Catarina, fechou o grupo. “Mais do que isso seria muito confuso”, explica Nélson.

Organizar e mobilizar um exército de quase 43 mil enfermeiros do SNS era o que os colegas esperavam deles e foi preciso montar, passo a passo, a estratégia. “A ideia era parar só os sectores-chave, recorrendo apenas aos enfermeiros necessários”, conta Catarina. Escolheram os blocos cirúrgicos dos centros hospitalares porque teriam maior impacto económico. Estenderam as greves por mais de um mês, por já não acreditarem nas paralisações de “dois ou três dias, colados aos fins de semana”, explica Nélson.

Recrutaram pouco mais de 1 200 enfermeiros – 3% do total -, os suficientes para cumprir os objetivos. E aliaram-se ao Sindicato Democrático de Enfermeiros de Portugal e à Associação Sindical Portuguesa de Enfermeiros, as únicas estruturas sindicais a aceitarem trabalhar ao lado deles.

“A partir do momento em que mostrámos as nossas fotos no Facebook, os nossos colegas perderam os receios e confiaram em nós para gerir um fundo com milhares de donativos”

Durante noites, manhãs e folgas, apalparam o terreno. Formulários para trás e para adiante nas redes sociais avaliaram os níveis de adesão e de apoio às greves e ainda estimativas das contribuições. “A partir do momento em que mostrámos as nossas fotos no Facebook, os nossos colegas perderam os receios e confiaram em nós para gerir um fundo com milhares de donativos”, diz Sara.

A rede conectada a todas as células

Não foi preciso esperar muito para o movimento ganhar vida própria e ultrapassar as previsões mais otimistas. A 10 de outubro, é lançada a campanha digital de crowdfunding com uma meta de 300 mil euros, a angariar até 5 de novembro. Em duas semanas, atinge perto de 20% desse valor, mas as contribuições só aceleram no final do mês, com os enfermeiros a doarem parte dos salários já disponíveis nas contas bancárias. Três dias antes do prazo acabar, os cinco enfermeiros contam com um “fundo solidário” de 301 mil euros para avançar com uma greve de 41 dias.

“O dinheiro é controlado por nós, todos os dias”, conta Sara Rego. Tal como os números de grevistas e as cirurgias que são canceladas a cada dia de paralisação que passa. A informação circula em tempo real, através de uma teia que eles próprios montaram e que liga cada uma das células associadas aos centros hospitalares.

Se os sindicatos, até agora, contavam com uma tradicional rede de delegados espalhados pelas unidades de saúde, estes cinco enfermeiros servem-se do WhatsApp para construir um organigrama com ramificações a atravessar todos os patamares de decisão e a alcançar cada um dos grevistas.

A cada um destes cinco enfermeiros foram atribuídos dois centros hospitalares, mas todos eles têm acesso aos dez grupos de WhatsApp criados para gerir a comunicação com todas as unidades de saúde envolvidas nas greves. E cada um desses grupos desdobra-se, por seu turno, em outras dezenas de subgrupos que juntam os enfermeiros por blocos operatórios.

Os cinco dinamizadores da greve às cirurgias não precisam de descer até ao último nível. Basta-lhes comunicar com os “elos dos blocos” para reunir a informação, trocar diretrizes com “elementos de piquete” e disseminar a mensagem pelos “grupos de colaboradores”.

“É uma estrutura dinâmica, que implica da nossa parte um contacto permanente com os blocos”, explica Nélson Cordeiro. Exige disponibilidade imediata e a qualquer hora de todos eles, é certo. Mas também é verdade que, ao fim de três meses, a máquina está a funcionar praticamente sozinha. Se nas semanas iniciais da primeira campanha as engrenagens ainda estavam aos soluços, a comunicação flui agora como uma corrente sanguínea.

“No princípio, havia muita gente que não sabia como aceder à plataforma digital nem como fazer as contribuições, ficando na dúvida se tinham feito todos os passos”, conta Sara Rego. Os obstáculos estão ultrapassados: “Desta vez, não fizemos praticamente nada”. Os enfermeiros mobilizaram-se por conta própria, organizaram-se por grupos e coletaram os donativos. O número de apoiantes desceu de 14 415 para 10 842, mas os montantes cresceram de 360 297 euros para 423 945 euros.

Mãos que não chegam a todo o lado

A segunda campanha de angariação de fundos é lançada a 11 de dezembro e, em menos de 40 horas, já conta com 22 mil euros. A 12 de janeiro, a meta dos 400 mil está cumprida. “Não há nenhuma entidade nebulosa por detrás do nosso movimento. O grosso dos donativos vem de enfermeiros de todos os pontos do país. Há ainda familiares e também alguns médicos”, explica Nuno Correia, tentando afastar as dúvidas sobre financiamentos “pouco transparentes” da campanha.

“Não há nenhuma entidade nebulosa por detrás do nosso movimento [de crowdfunding]. O grosso dos donativos vem de enfermeiros de todos os pontos do país. Há ainda familiares e também alguns médicos”

As suspeitas, aliás, levaram a bancada do PS a anunciar, na primeira semana de fevereiro, a intenção de avançar com legislação que impeça contribuições anónimas nas plataformas de crowdfunding. As regras, em vigor desde 2018, só exigem identificação a donativos superiores a 100 euros.

As greves, que começaram com cinco centros hospitalares, estenderam-se a mais cinco. Mas enfermeiros de outros hospitais quiseram fazer parte deste movimento – Açores, Madeira, Portimão ou Leiria -, os pedidos surgiram todos os dias, mas os cinco enfermeiros não tiveram mãos capazes de chegar a todo o lado. “Somos só cinco e com limitações logísticas que nos impediram de fazer mais”, reconhece Nelson Cordeiro.

E eles gostavam também de “voltar à vida normal”, desabafa Sara. Sem alertas de mensagens de WhatsApp a soarem a todo o momento, nem encontros e reuniões virtuais todos os dias da semana, nem sábados e domingos submersos em folhas de Excel a organizarem as contas das campanhas: “Temos também a plena consciência do que estas greves representam para os utentes do SNS e, por nós, parávamos por aqui.”

Mas não vão parar. O plano para os dias seguintes é igual ao dos anteriores: “Enquanto não houver abertura do Governo para negociações honestas, não desistimos”, assegura Catarina Barbosa. A máquina vai continuar a girar. E, quando tiver de parar, os cinco seguirão o seu caminho. Cada um numa ponta do país, mas ligados por uma rede, que já não é apenas virtual. “Conhecemo-nos tão bem, que ninguém mais nos separa”, confidencia Nélson Cordeiro.