
Não é só por obrigação profissional que os advogados de direito penal defendem os suspeitos de homicídios duplos ou triplos, abusos sexuais, tráfico de droga, assaltos ou sequestros. É sobretudo por quererem entender e desmontar os porquês dos crimes mais violentos.
O homem procura uma posição menos desconfortável na cadeira para começar a contar como se viu envolvido num crime de pornografia infantil. Os segundos iniciais são os mais difíceis e ele vai observando tudo à volta para adiar a conversa. Acaba por fixar o olhar na foto das duas filhas do advogado. Desvia logo a cabeça, mas encontra os olhos de Alírio Ferreira.
“O doutor tem mesmo coragem de me defender?” – pergunta a medo. A resposta é automática: “Ó homem, esqueça isso! Estou 100% concentrado na sua defesa”. Até para os que cometem os crimes mais violentos é difícil entender como há quem esteja disposto a fazer a sua defesa. Sejam eles homicidas, abusadores sexuais, traficantes de droga ou assaltantes encapuzados, há sempre advogados que ficam do lado deles.
São muito poucos, aliás, os estabelecimentos prisionais que não tenham pelo menos um recluso já defendido por Alírio Ferreira. Há 30 anos que convive com criminosos nas cadeias ou no seu escritório, em Matosinhos, o suficiente para concluir que, no “contacto pessoal”, são “muito sociáveis e educados”.
Estão longe, portanto, da caricatura que se faz deles. Os olhos não estão raiados de sangue, nem os dentes cerrados de raiva, ou tão-pouco têm uma postura de não-se-metam-comigo-que-não-sei-do-que-sou-capaz. É difícil, para quem está de fora, reconhecer neles algum traço de humanidade. Como será difícil imaginar também que sintam desespero, insegurança ou remorsos.
Mas foi esse lado que levou Mónica Quintela a avançar com a defesa de Pedro Dias, o homicida de Aguiar da Beira, condenado em março a pena máxima. Quem acompanhou pelos jornais ou televisão os seus 28 dias de fuga viu um homem capaz de matar a sangue frio um GNR e um casal na EN 229. A advogada de Coimbra, contudo, encontrou alguém afundado numa “espiral de desespero” que desencadeou uma onda de violência: “Percebi que estava perante uma pessoa arrependida, acossada e que temia pela vida”.
As notícias são sempre demasiado rápidas para alcançarem esse lado. Até porque depois de uma vem outra e outra e mais outra. Na enxurrada da informação, ficam partes de histórias por explicar. A não ser que entrem pelo escritório adentro. Assim que os crimes atravessam a porta, dificilmente há retorno. “O que me move é a inquietação de querer saber porquê”, conta o penalista do Porto Luiz Vaz Teixeira. É a “história do crime” que ainda ninguém, senão o autor, conhece, explica também João Martins Leitão, advogado de Santarém.
O percurso de um crime
A busca por respostas é como um gancho que os prende aos casos, fazendo-os descer aos subterrâneos e percorrer labirintos de caminhos cruzados e/ou sobrepostos. “Quando alguém nos aparece à frente totalmente desestruturado, é preciso arrumar não só a mente dele como também os nossos próprios sentimentos”, diz Miguel Matias, que coordena o departamento de direito penal da Sociedade Raposo Subtil & Associados, em Lisboa.
E é então que começa esse trabalho de “descascar” um comportamento com ramificações aos mais variados motivos e contextos – condições precárias de vida, ciclos de violência, toxicodependência, perturbações mentais e o mais que ajude a reconstituir o percurso até àquele minuto em que tudo aconteceu.

Cada crime tem uma cronologia diferente, os impulsos são diferentes, a forma de matar é diferente, os enquadramentos são distintos. Às vezes, assinala Vaz Teixeira, encontra-se uma patologia que põe um homem com uma peruca ridícula aos tiros à entrada da casa da companheira. Outras vezes, é um puro engano. Alguém desconfiado de que um amante se intrometeu no caminho dele sai possesso atrás da namorada. Ronda o café do bairro, mas quem sai porta fora é um azarado que leva um tiro, não morre e, perante o juiz, nem consegue explicar o que lhe aconteceu – “Eu só fui comprar tabaco”.
São crimes “terríveis” – reconhece o advogado -, mas, quando enquadrados, até ganham contornos “pitorescos”. É que, quando se fala de violência, há muitas faces e muitas camadas. Não se consegue arquivá-la em pastas para tornar a vida menos confusa. Agressores de um lado e vítimas do outro. Trafulhas em cima e honestos em baixo. Maus à direita e bons à esquerda.
“Conheci homens que nunca deram um tiro, mas que são mais cruéis do que muitos homicidas.” Tiranos que subjugaram as mulheres pelo terror sem encostar um dedo nelas. Como também defendeu um assaltante à mão armada e alguns carteiristas que, com os roubos e furtos, pagaram cursos superiores aos filhos: “Ao darem um futuro aos filhos, comprometeram o seu próprio futuro, porque acabaram na cadeia”.
Os advogados criminais, por deformação profissional, habituaram-se a olhar para a violência como se de uma figura geométrica se tratasse. Levantam-na e rodam-na, tentando ver arestas e ângulos escondidos. “Faz parte do nosso trabalho verificar, enquadrar e entender”, sustenta João Martins Leitão.
Pesos separados na consciência
A defesa de Wellington Nazaré, que, em 2008, fez seis reféns no assalto à agência do BES de Campolide, em Lisboa, ou, mais recentemente, o processo dos Hells Angels são alguns dos casos mais conhecidos em que Martins Leitão esteve envolvido. Mas aceita tudo sem pesos na consciência. Abusos sexuais é a exceção. É a sua linha vermelha, diz, mas a verdade é que há uma outra barreira que também não ultrapassa. Antes de tudo, tem de descobrir um fundo de humanidade, nem que seja uma luzinha tremelicosa: “Se há um que mostra uma frieza maquinal, se não consigo encontrar motivos, aí sinto-me psicologicamente manietado e a defesa torna-se muito difícil”.
Os crimes, quaisquer que sejam, provocam algum tipo de condenação moral, mas os abusos sexuais são o ponto sensível para a maioria. Com boa parte dos advogados não é diferente. Mónica Quintela agarra todos os casos sem distinções, mas mantém-se longe dos crimes sexuais. “É algo que me provoca repulsa, que mexe com a minha parte emotiva e racional.” Essa também é a “demarcação mais rígida” de Miguel Matias e que mais rigorosa ficou após defender as vítimas da Casa Pia, naquele que foi o mais longo julgamento da justiça portuguesa. “O resto, como não há um caso igual a outro, não consigo dizer que faço isso ou faço aquilo.”
São limites que esticam ou encolhem, dependendo dos casos e do advogado. “Eu defendo sempre e empenho-me a fundo. Já cheguei a defender um violador”, detalha Luiz Vaz Teixeira. Nesses anos, passaram pelo seu escritório homicidas que mataram uma ou várias vítimas a tiro e à facada ou traficantes apanhados com 500 quilos ou duas toneladas de cocaína. Nem sempre encontra uma causa. “Ainda assim, vou até ao fim porque essa é a minha função.”

Mesmo quando há circunstâncias, contextos e atenuantes, “uma vida roubada não vale menos do que outra vida roubada só porque houve mais violência e sofrimento”, acrescenta Alírio Ferreira, para explicar por que razão defende todos os crimes, dos mais simples aos mais chocantes. “Há não muito tempo, defendi três rapazes que mataram um outro à pedrada. Como atribuir uma justificação?”
Um motivo é o que basta para Paulo Cunha e Sá. Há um, contudo, que não se encaixa nesta tipologia e, como tal, é aquele que ele nunca defenderia. “O terrorismo é uma violência indiscriminada e sem sentido”, justifica o advogado, reconhecendo que, “por mais infame” que seja o crime, todos os arguidos têm de ser patrocinados. E quem os defende não fica contaminado pela conduta do seu cliente. “O crime não é um vírus que se transmite pelo contacto humano.”
As manhas do advogado
A conduta dos clientes não é o que está em causa e os advogados de direito penal tentam não cair em julgamentos morais. Isso é um luxo para os que estão do lado de fora. E eles acostumaram-se aos dedos acusadores quando ficam do lado dos criminosos. “Com o tempo, criam-se anticorpos até com algumas pessoas mais chegadas”, admite Martins Leitão.
Resta algum consolo ao saber que quem conhece o sistema por dentro sente “admiração” por aqueles que trabalham para equilibrar os dois pratos da balança, diz Miguel Matias. “É da dialética entre a defesa e a acusação que nasce a justiça.”
Os argumentos podem ser imbatíveis, mas não há como escapar ao estigma do advogado do diabo. É a pergunta que alguém faz sempre num jantar de amigos. “As pessoas querem saber pormenores sobre o crime.” Mas, como o advogado está impedido de falar sobre o caso, passam à pergunta seguinte: “Como é que consegues?” E ele esforça-se para que o entendam, recorrendo ao seu próprio caso: “Eu próprio também me pergunto como colegas meus conseguem defender abusadores sexuais… E só posso sentir um enorme respeito por eles”.
Mais do que o rótulo do advogado do diabo é o “advogado dos poderosos” que Cunha e Sá identifica nos julgamentos alheios: “Desde que integrei a sociedade CuatreCasas, estou mais afastado daqueles casos mais estigmatizantes”. São principalmente os crimes de colarinho branco que ocupam agora o seu dia-a-dia no escritório do Marquês de Pombal, em Lisboa.

E aí quem entra em ação é o “típico” advogado que sabe as manhas todas para livrar os “corruptos” da cadeia ou, pelo menos, adiar indefinidamente a aplicação da pena. “Essa perceção tem muito a ver com a cultura da burocracia, do papelinho para trás e para adiante que emperra o andamento do processo.”
Saber lidar com julgamentos fora dos tribunais é parte do ofício? “Agora que penso nisso, é que me dou conta de que nunca me fizeram essa pergunta”, conclui Vaz Teixeira. A razão “provável” é a cidade onde vive e trabalha. “O Porto é um meio em que toda a gente se conhece.” Ele vai ao Mercado do Bolhão e cumprimentam-no na banca da fruta ou do peixe: “Como está doutor?”. Vai à Rua de Santa Catarina e a vendedora de castanhas pergunta: “Como vai isso, doutor?” Deve ser por isso, deduz: “As pessoas sabem o que faço e respeitam-me”.
A gradação milimétrica da culpa
Os comentários, em todo o caso, são fáceis de esquecer, o mais difícil é ignorar os que perderam familiares, ou foram sequestrados ou tiveram uma arma apontada à cabeça. Como é que quem defende homicidas e agressores olha para a vítima? Essa é uma das grandes complexidades da profissão – admite Paulo Cunha e Sá. “Para conduzir uma estratégia de defesa, o advogado tem de despersonalizar o contacto com o cliente.”
É como se construíssem um alter ego para determinadas circunstâncias. “Lamento sempre muito a dor das vítimas e das famílias, mas, no exercício da minha profissão, as únicas razões que procuro são as que servem os meus clientes”, sublinha Alírio Ferreira. Um principiante escorregaria, talvez, na armadilha de perguntar aos próprios botões: “E se fosse comigo?”. É o suficiente para arrasar todo o trabalho, adverte Cunha e Sá.”Personalizar é o que faz perder a objetividade para desempenhar uma função num sistema em que cada uma das partes tem de fazer o seu trabalho.”
E compatibilizar as duas partes passa por fazer tudo em tribunal para a pena ser justa, avisa Vaz Teixeira. A culpa, aliás, é um largo espetro que vai do muito grave à negligência, esclarece Miguel Matias: “O desafio é encontrar a gradação exata. Porquê oito e não nove anos de prisão?”. Não menos desafiante é conseguir que o arguido seja condenado pelos crimes que cometeu. E nada mais do que isso.
“O caso de Manuel Abrantes é sintomático”, relembra Cunha e Sá, que em 2003 defendeu o antigo provedor da Casa Pia. No início, estava acusado de “mais de 100 crimes” de abuso sexual a menores. Na fase de instrução, esses mesmos crimes passaram a “pouco mais de 40”. “O que sobra no fim do julgamento são dois que, em vez de terem um critério decisório factual, são antes suportados na convicção da juíza de que a versão da vítima é a mais credível.”
O desgaste que arrefece o coração
Facadas, tiros, fugas, cadáveres largados ou ocultados, o quotidiano de boa parte dos advogados de direito penal está manchado de histórias de sangue, de medo ou de ameaças. Eles levam com tudo e vão aprendendo a conviver com a faceta mais sombria da humanidade. “A tendência é para esfriar os sentimentos”, reconhece Martins Leitão.

Separar as águas, contudo, é mais complicado quando se lida com situações “desesperadas”, defende Mónica Quintela. Os clientes chegam, despejam tudo e vão para casa mais aliviados. Descarregam uns bons quilos do peito e transferem o peso para os ombros da advogada. “Agora, está nas mãos dela”, pensam eles. O crime passa então a persegui-la no escritório, muitas vezes até altas horas, no tribunal ou na cabeceira da cama: “Não são poucas as vezes que acordo a meio da noite a pensar nos prazos”.
Será preciso sempre algum nervo de aço, ressalva Paulo Cunha e Sá. E uma certa vocação para artista. Mais do que dominar a técnica, é a capacidade de improviso, a intuição e a criatividade estratégica que contam. “Somos mais músicos de jazz do que de orquestra.” Além de saber executar uma pauta sem falhar uma única nota, exige-se reação imediata aos imprevistos. “Uma medida inesperada do juiz, uma testemunha que obriga a virar o jogo, circunstâncias que sobressaltam muito mais a vida de um penalista.”
Na origem do Direito
Deve ser tudo isso junto que os leva, muitas vezes, a ficar ao lado dos culpados. Tal como com os clientes que defendem, aqui há igualmente contextos e circunstâncias que os conduziram até ao crime. Se, para uns, o direito penal é uma “predestinação”, observa Martins Leitão, para outros, é um caminho ao sabor dos casos que foram surgindo, considera Mónica Quintela.
Também não é de menosprezar o peso do estágio. “Na faculdade queria seguir o direito do trabalho, mas achei a minha vocação ao fazer o estágio nesta área”, recorda Vaz Teixeira. É como tudo – explica Martins Leitão -, se o patrono é enfadonho, afasta o estagiário: “Agora, se for como o meu pai, que trabalhava com entusiasmo, isso é contagiante”.
Com Alírio Ferreira, que cresceu rodeado de crime, só podia dar nisto. Os pais tinham uma mercearia no Bairro dos Pescadores, em Matosinhos, e eram constantes os episódios de assaltos, tráfico de droga ou furtos. “Defendi muitos filhos de amigos e conhecidos.” Antes disso, fez o estágio num escritório ao lado da cadeia de Custoias. “Como era estagiário, fui constantemente nomeado como defensor oficioso de suspeitos de furtos, roubos, brigas de facas e por aí fora.”
Nem sempre a opção pelo crime é uma confluência de circunstâncias. Miguel Matias nunca pensou noutra área. Na faculdade já escolhia atividades que demonstravam por onde queria ir: “Visitava com frequência as cadeias porque queria conhecer os criminosos no seu meio confinado”.

Vinha já daí a curiosidade em entrar nesse submundo que “mexe com estruturas mentais” dele e de outros. “Estamos sempre a questionarmo-nos e a lidar com noções que ultrapassam as lógicas binárias de preto e branco, bom e mau ou certo e errado.”
Quem os ouve falar ficará com a impressão de que são viciados nessa adrenalina que é destrinçar crimes, procurando gradações, atenuantes e zonas cinzentas. Fazem tudo para tentar provar que um criminoso nunca é só um criminoso. E sabem isso melhor do que ninguém. São eles, afinal, quem lhes abre a porta do escritório, dando-lhes tempo para quebrarem o silêncio e contarem como acabaram ali frente-a-frente com o advogado.