Onde acaba o elogio e começa a graxa

Ilustração: Manuel Granja/Notícias Magazine

Desafio: é capaz de apontar, entre as proposições seguintes, as que representam elogios genuínos e as que resvalam para a bajulação? “Lindo menino”; “muito bem, filho”; “estás tão bonita”; “és a maior”; “não há chefe como tu”; “tens feito um grande trabalho”; “sabes que o que dizes para mim é lei”. Se não consegue ter certezas, não se apoquente.

A dúvida é normal, até legítima, se olharmos ao frágil limbo que separa os dois lados da questão. Há mesmo louvores que podem encaixar em ambos os parâmetros. “Depende muito da conotação que é dada ao que é dito. Trata-se de um espaço de comunicação difuso, pouco confortável até”, resume a psicóloga Isabel Lage.

Primeiro o elogio, esse elemento fundamental em sociedade, ainda que frequentemente negligenciado. “Tem pelo menos duas facetas importantes: por um lado, a sua própria especificidade, o elogio em relação a algo em concreto, que nos faz aperceber de determinadas características que temos; por outro, em relação à nossa autoestima e ao nosso sentido de mestria, à autoeficácia percebida, que é como quem diz, o sentir que somos capazes”, realça José Carlos Rocha, docente e investigador de Psicologia.

O elogio pode mesmo ser “empoderador”. Isabel Lage, especialista em psicologia educativa, reforça isso mesmo. Sobretudo se falarmos de crianças. “É como o sol para as plantas. Como é que nós reforçamos o crescimento e o desenvolvimento se não for assim? Como será se estivermos sempre a salientar o que não está bem? Isso tem consequências em adulto, até pelo impacto que há em termos de autoestima.”

O mesmo se pode aplicar ao contexto profissional. É sabido que o bom gestor – ou o bom chefe, no geral – é aquele que sabe motivar e incentivar os funcionários. E o elogio desempenha um papel fundamental nessa premissa. “Se não faço nada bem, a certa altura também não me importo. Desmotivo e deixo de fazer. Temos de ter âncoras para lidar com os obstáculos. Para podermos pensar: ‘Correu mal agora, mas há coisas que eu sei fazer bem’.”

“Quando entramos no mercado de trabalho, o elogio puro quase desaparece. Tendemos a associá-lo a um comentário negativo que venha a seguir”
Isabel Lage
Psicóloga

No entanto, elogiar nem sempre é tarefa simples. Pelo menos não para todos. A timidez, uma educação particularmente rígida, atafulhada de críticas, as conjunturas depressivas ou mesmo a falta de à-vontade com determinada pessoa podem explicar alguma resistência ao louvor. “Se eu me sinto particularmente ansioso a comunicar com outra pessoa, provavelmente vou-me inibir de fazer um comentário elogioso”, explica José Carlos Rocha.

Mais curioso é perceber que a falta de à-vontade também se pode aplicar ao alvo dos elogios. Isabel Lage, habituada a dar formação a professores e a trabalhar o desenvolvimento da comunicação interpessoal em empresas, salienta isso mesmo. “Observo um desconforto imenso, tanto a fazer como a receber elogios. Em alguns casos, noto mesmo que as pessoas ficam desconfortáveis fisicamente.”

Corar, mexer as mãos de forma impaciente sem saber onde as pôr, desviar o olhar, sorrir nervosamente, são tudo traços de quem não está à vontade com louvores. “Por vezes, interrompem. Ou afirmam: ‘Diz lá o que me vais pedir’. Depois, comentamos o facto de isso acontecer e as pessoas assumem mesmo que ficam desconfortáveis. Quando pergunto porquê, uma das explicações é que associam isso ao facto de depois do elogio vir um pedido ou uma crítica.”

Também aqui a educação e o contexto de crescimento podem ter um papel decisivo. Mas há outra explicação, bem mais conjuntural. “Não temos a cultura de fazer o elogio por fazer. Não há a ideia de reconhecer, de apreciar. Quando somos crianças, regra geral, tudo é elogiado. ‘Que lindo desenho, que bem.’ Depois, progressivamente, os elogios vão sendo substituídos por críticas.

Quando entramos no mercado de trabalho, o elogio puro quase desaparece. Daí que tenhamos mais dificuldade em aceitar a ideia de um elogio descomprometido. Tendemos a associar o elogio a um comentário negativo que venha a seguir”, justifica Isabel Lage, ressalvando que, aos poucos, a tendência se está a inverter. Os livros de elogios, já existentes em algumas lojas por oposição aos livros de reclamações, são um bom exemplo disso.

Bajuladores: o manipulador e o servil

De resto, intui-se, o elogio será tão mais eficaz – ou empoderador – quanto mais genuíno soar. Daí que seja importante distinguir o louvor genuíno do interesseiro. É aqui que entramos no terreno da bajulação. A chamada graxa. “É frequente na perspetiva de estar a transmitir uma visão que satisfaz o outro mas não tem nenhum substrato.

Acontece quando as pessoas estão mais preocupadas com a imagem que transmitem do que com a competência e as capacidades que têm. Há estudos antigos que chamam a atenção, particularmente nos adolescentes com mais baixo nível educacional, de que estes estão mais preocupados em fazer o que os outros esperam do que em transmitir aquilo que pensam. Obviamente isso tem efeitos perversos, porque passa uma falsa imagem de nós próprios.”

A tendência ganha particular relevância no contexto laboral. O elogio excessivo, a insistência em dar razão ao chefe, a conivência com os gostos do superior hierárquico – ou com os ódios de estimação do mesmo -, a mimetização de determinados tiques e a constante demonstração de lealdade a quem manda, com prejuízo de outros colegas se necessário for, são indícios de que se pode estar perante um bajulador. Vulgarmente apelidado também de graxista. Ou de lambe-botas.

“A bajulação pode ser motivada pelas novas formas de organização do trabalho, como os métodos de avaliação de desempenho que colocam trabalhadores em competição interna”
Daniel Silva
Psicólogo do Trabalho

Daniel Silva, especialista em psicologia do trabalho, assinala que a bajulação neste contexto pode passar por “práticas discursivas que estão para lá do feedback sobre o trabalho, centradas em argumentos com justificativas pouco claras. Estas práticas podem ser vistas como meios de ‘eufemizar’ a realidade do trabalho e motivadas até pelas novas formas de organização do trabalho, como os métodos de avaliação de desempenho que colocam trabalhadores em competição interna”.

O tema da bajulação já foi abordado também no domínio académico. David Heyd, investigador israelita na área da Filosofia, debruçou-se sobre o assunto em “Filosofia e Pesquisa Fenomonológica”, considerando que, tipicamente, um ato de bajulação recorre a “linguagem excessivamente elogiosa, ao descrever as qualidades de outra pessoa, com o intuito de criar uma atitude favorável nessa pessoa”.

Heyd chega mesmo a encontrar traços similares entre a bajulação e o suborno, defendendo que “o bajulador usa palavras em vez de dinheiro ou bens e apela à vaidade em vez do interesse material”. O investigador distingue ainda entre o bajulador manipulador, que “recorre à cordialidade excessiva para ter vantagem própria”, e o bajulador servil, que “sofre da mesma necessidade excessiva, mas não tem um propósito em vista”.

Mas afinal, como podemos distinguir o elogio genuíno do artificial? Não há leis nem regras matemáticas, claro está, mas Isabel Lage sublinha algumas tendências. “Quando tenho uma intenção por trás, quando quero algo daquela pessoa, obviamente falamos de graxa. E até somos capazes de ser bem-sucedidos na primeira vez, mas, quando o elogio vem sempre associado a um pedido, facilmente se percebe a função manipuladora do mesmo.

De resto, o elogio será tão mais sincero quanto mais for baseado numa evidência. É diferente eu dizer ‘tu és fantástico’ ou eu dizer ‘tu és fantástico porque estás muito envolvido e no outro dia fizeste bem isto’. Quanto mais evidências tiver o elogio, mais poderoso vai ser. Quanto mais superficial, menos sincero vai parecer.” Fica a dica.