O veneno também faz parte da cura

Caracóis marinhos, anémonas, escorpiões. A lista de animais com toxinas letais é grande. Em Portugal e no resto do Mundo, há quem vá transformando estas substâncias em novas formas de tratar a dor crónica, o cancro, o Alzheimer, o Parkinson ou a sida.

Quando o veneno do escorpião-amarelo (Tityus serrulatus), considerado o mais poderoso da América Latina, entra na nossa corrente sanguínea, muitas coisas podem acontecer. Dor e dormência no local da picada, náuseas, vómitos, suores, arritmias e paragem cardíaca que podem levar à morte se a pessoa não for rapidamente assistida.

Escorpião amarelo

É que a toxina que entra no corpo, chamada de CPP-Ts, faz aumentar a contração do músculo cardíaco, uma das principais causas de morte das vítimas.
Um grupo de cientistas do Instituto de Biotecnologia da Universidade Nacional Autónoma do México descobriu recentemente que o mesmo veneno tem antibióticos que combatem estirpes resistentes da tuberculose e da bactéria “Staphylococcus aureus”, causadora de infeções graves como pneumonia e septicemia.

Além de conter substâncias eficazes para tratar o crescimento de células cancerígenas sem provocar lesões nas células normais do tecido pulmonar. Parece um paradoxo que os venenos letais de certos animais possam ajudar a tratar e curar determinadas doenças dos seres humanos, mas isto está longe de acontecer só com os escorpiões.

Na verdade, como explica Agostinho Antunes, coordenador do Grupo de Genómica Evolutiva e Bioinformática do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Porto (CIIMAR-UP) e professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, “já há algum tempo que existe a noção de que os venenos poderiam possuir moléculas poderosas e virem a ser candidatos a ferramentas biomédicas para o tratamento de doenças crónicas, ou mesmo outras aplicações menos conhecidas”.

Anémona do mar

E, nesse sentido, potencialmente todos os animais que possuam substância tóxicas, desde anémonas-do-mar (na foto), medusas, cones marinhos, cefalópodes, escorpiões, aranhas, até peixes e cobras, encaixam nesse perfil.
No entanto, depois de concluída a investigação, a aplicação terapêutica dessas toxinas ainda é escassa, sobretudo “dada a grande diversidade de venenos existente (e elevado potencial)”.

Medusa

O geneticista refere-se, por exemplo, a uma possível utilização como pesticidas, em alternativa aos produtos químicos sintéticos. Ou à hipótese de, com as toxinas letais, criar medicamentos promissores para combater a dor e doenças autoimunes. Os caracóis marinhos Conus, por exemplo, “têm grande potencial como drogas analgésicas que podem ser até 10 mil vezes mais potentes do que a morfina, sem os seus efeitos colaterais”. E a sua utilização “pode estender-se a pacientes que sofram de cancro, artrite, herpes, diabetes, Alzheimer, Parkinson e sida”, aponta Agostinho Antunes.

Caracol marinho

Há ainda outros venenos que têm fortes propriedades anticoagulantes. Ou que podem ajudar a reduzir os danos de várias pragas na produção mundial de alimentos, com base em toxinas de cobras, caracóis marinhos, escorpiões, aranhas e cnidários. Estes já estão, inclusivamente, “a ser desenvolvidos na Europa e EUA (mas também noutros países, como Brasil, Israel, Índia, etc.), elucida.

É difícil ter visto verde

Apesar da enorme diversidade de toxinas produzidas por diversos animais, o investigador português esclarece que apenas sete drogas derivadas de veneno são aprovadas pela Food and Drug Administration (FDA), a agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.

Monstro de Gila

Entre outras competências, a FDA é responsável pela proteção e promoção da saúde pública através do controlo e supervisão dos medicamentos, vacinas, biofarmacêuticos, etc. Três delas derivaram de cobras: “Captopril para tratar hipertensão e Eptifibatide e Tirofiban para tratar síndromes coronários agudas”. Dois provêm de sanguessugas, “o Bivalirudin e o Lepirudin utilizados como anticoagulantes”. Um derivado de Conus marinhos, “o Ziconitide, para tratar dor crónica”, e ainda o Exenatide “para diabetes tipo 2”, a partir do monstro-de-gila. Apesar das pesquisas sobre venenos serem frequentes, principalmente na América Latina, são necessários muitos testes até que a sua utilização para tratamento de doenças receba luz verde.

Portugal e as suas toxinas

Em Portugal também há trabalho em marcha. Agostinho Antunes, que em 2014 liderou um estudo desenvolvido por investigadores do CIIMAR em que se demonstrou, pela primeira vez, a capacidade de um animal venenoso utilizar venenos distintos, dependendo dos seus objetivos, continua na senda das toxinas. Há uns tempos que se debruça sobre “animais invertebrados venenosos, como os cnidários – todo este grupo de animais marinhos é considerado venenoso, como as medusas ou as anémonas-do-mar –, caracóis marinhos, cefalópodes, escorpiões e aranhas”. A equipa do CIIMAR está envolvida num projeto europeu relacionado, o IGNITE.

Aranha

Esta equipa também estuda os vertebrados venenosos, como é o caso dos peixes cartilagíneos (raias), peixes ósseos, répteis (incluindo cobras) e alguns raros mamíferos venenosos como os Solenodons, que existem em Cuba e Hispaniola. “Nestas várias situações, o trabalho tem vindo a ser desenvolvido com o envolvimento de consórcios internacionais de pesquisa.”

Sanguessuga

Os objetivos passam por caracterizar ao nível genómico os genes envolvidos na produção desses compostos, bem como a diversidade de compostos ao nível genómico/proteómico, para assim se avaliar o potencial biomédico e biotecnológico, remata Agostinho Antunes.