O que vestimos muda quem somos?

Texto de Sofia Teixeira

Na parede da Queen’s House, em Greenwich, Londres, está exposta uma das três versões que chegaram aos nossos dias dos painéis “The Armada Portrait”, onde se vê a rainha Isabel I de Inglaterra sobre um fundo que representa a derrota da Armada Espanhola, em 1588. A monarca usa um vestido estruturado de mangas de balão coberto por pedras preciosas, um rufo (gola rígida) de proporções extravagantes e várias fiadas de pérolas. Tudo nela é uma personificação do poder.

O modo consciente como monarcas, de Isabel I a Luís XIV de França, compreenderam o poder da moda para construir e projetar uma imagem de força e domínio político não são apenas paradigmáticos. “São possivelmente os mais expressivos exemplos históricos da construção de ‘dramatis personae’, personagens trabalhadas estrategicamente de modo a produzir a impressão e influência desejadas”, defende Catarina Moura, professora de Moda na Sociedade Contemporânea, entre outras disciplinas, na Universidade da Beira Interior (UBI).

“nada que se relacione tanto com a construção da identidade deve ser classificado como superficial. A moda pode ser uma forma de empoderamento individual”

Ou seja: há séculos que se sabe intuitivamente que o que vestimos causa uma impressão nos outros que lhes condiciona o comportamento. E, nas últimas décadas, têm sido vários os estudos que o mostram: o tipo de roupa usado pelos estudantes influencia a avaliação dos professores sobre as suas capacidades académicas, os professores que recorrem a roupas formais são vistos como mais inteligentes, as mulheres que trajam de maneira masculina durante uma entrevista de recrutamento têm mais possibilidade de ser contratadas, os vendedores que se vestem bem estimulam as intenções de compra nos potenciais clientes.

Mas, antes da impressão que causa nos outros, a roupa serve um propósito mais estrutural: mostra a nossa identidade. Por isso é um mistério que seja tantas vezes considerada uma preocupação com má fama. Para Catarina Moura, a explicação é simples: vivemos numa sociedade que confunde “superfície” com “superficial”, que são, na verdade, duas noções distintas. “Como a moda trata da aparência – logo, da superfície – a tendência é atribuir-lhe as características que, por norma, se atribuem à superficialidade, classificando-a de fútil, frívola, supérflua ou inútil”, assinala. “Mas essa ‘aparência’ prende-se, em grande medida, com a nossa identidade. E nada que se relacione tão profundamente com a construção da nossa identidade, tanto individual como coletiva, pode ou deve ser classificado como superficial. A moda pode ser uma forma de empoderamento individual.”

Do que sentem os outros ao que sentimos nós

Qualquer ator sabe que o figurino que usa em palco não tem só o propósito de causar uma impressão no público. A roupa e os acessórios são poderosas ferramentas para o ajudar a encarnar o papel e a personagem. E isso, em certa medida, acontece a toda a gente, não apenas aos atores. “Além da pessoa ser alvo da avaliação e perceção dos outros sobre si mesmo, também se autoavalia com base no que está vestir num determinado momento, principalmente por causa da maneira que as roupas a fazem sentir.

Isto significa que a experiência de usar algo pode influenciar subtilmente as atitudes e o comportamento”, salienta a psicóloga clínica Daniela Esteves. E exemplifica: “As roupas de estilo executivo, mais formais, devido ao simbolismo de poder, fazem com que a pessoa se sinta mais confiante, podem estimular o pensamento abstrato e a capacidade de negociação.

Porém, por outro lado, não são a melhor roupa para socializar: tornam a pessoa menos aberta ao diálogo e deixam-na com mais dificuldade em relaxar”. Há, de resto, quem encontre aqui uma das razões para o conceito de “casual friday”, uma política adotada por alguns escritórios que consagram as sextas-feiras como dia de traje mais informal: ninguém quer ir tomar um copo com colegas ou amigos ao fim do dia envergando roupa formal.

Há poucas análises à forma como a roupa muda o nosso comportamento, mas os que existem permitem perceber até que ponto os efeitos são extensos e significativos: em estudos dos anos 1960 e 70 mostrou-se que usar um capuz de assaltante torna as pessoas mais propensas a aplicar choques elétricos aos outros, ao passo que usar um uniforme de enfermeira torna as pessoas menos propensas a administrar esses mesmos choques. Outro, já da década de 1990, mostra que, com um biquíni vestido, as mulheres comem menos e têm um desempenho pior em matemática, o que demonstra alguma auto-objetificação.

Vestir a camisola – literalmente

Não é por acaso que a expressão “vestir a camisola” designa comprometimento com uma causa, objetivo ou ideal. Como também não é por acaso que, em muitas profissões, isso é solicitado no seu sentido mais literal: há uma farda profissional a envergar quando se está no desempenho de funções.

Pilotos da aviação civil, médicos ou polícias, entre outros, usam um uniforme quando estão a trabalhar. As fardas servem, sem dúvida, propósitos funcionais (como serem facilmente identificados), e têm objetivos simbólicos (legitimam autoridade ou competência) e comunicacionais (promovem a imagem corporativa da empresa ou instituição). Mas a investigação nesta área mostra que vestir a camisola – literalmente – também ajuda a encarnar o espírito da profissão. Com os uniformes vestidos, as pessoas tendem a deixar um pouco de lado a sua individualidade para se alinharem com objetivos, protocolos ou exigências da função que estão a desempenhar.

O poder simbólico das fardas, de resto, é capaz de projetar efeitos palpáveis mesmo para quem não tem a profissão, como mostra uma investigação do psicólogo social Adam Galinsky e do especialista em comportamento organizacional Hajo Adam publicada no “Journal of Experimental Social Psychology”. Numa experiência, voluntários foram divididos em dois grupos aos quais se atribuíram as mesmas tarefas relacionadas com atenção seletiva. A um dos grupos não deram nada para vestir.

Ao outro deram uma bata de laboratório. O grupo que tinha a bata de laboratório vestida teve bastante mais sucesso nas tarefas. A seguir, deram batas brancas idênticas a outros dois grupos de voluntários, sendo que a um dos grupos disseram que era uma bata de pintor e, ao outro, que era uma bata de médico; a concentração e atenção mantidas neste segundo grupo foram muito superiores.

Os autores cunharam neste estudo um novo termo: “enclothed cognition”, intraduzível em português, designa a forma como a roupa que vestimos influencia os processos cognitivos, atitudes e interações com os outros. lm