O que é que me aconteceu?

Um jovem barbudo, caracóis negros e brilhantes de pez, blusão desportivo, acentuado ar moderno… mas dentro dos ossos côncavos do crânio envelhece-lhe a esponjinha cinzenta do cérebro. Sofre de memória esburacada desde o 1.º de Maio de 2017. No feriado do Dia do Trabalhador Jorge meteu-se em trabalhos (bateu num homem no metropolitano de Lisboa).
Em Jorge, o jovem que coça as barbas no tribunal, a culpa é sempre cortada pela dúvida: estaria eu em mim? quem serei eu, afinal, para fazer uma coisa destas?, perguntas que lhe escorriam da língua. Tanto era um gato atento que segue a mosca com os bigodes, como o que se baralha, caçando com as patinhas um feixe de luz.
– Saltei para o meio deles para os separar…
– E como é que se protege um amigo? É batendo no outro?
A juíza inaugurava a época da desmemória de Jorge.
– Não sei explicar.
– E foi a bater como? Com as mãos, com os pés?
– Deve ter sido com as mãos, provavelmente.
– Bateu com as mãos?
– Eu separei-os… foi uma questão de segundos. Nunca tinha passado por uma situação destas, sinceramente.
A situação foi estar com um amigo na estação de Arroios, sentido Telheiras. Do outro lado da quádrupla fila de carris electrificados, – um vão perigoso como o pior dos abismos da Terra – outro rapaz ia para o Cais do Sodré. O amigo de Jorge discutiu com o outro e desatou a correr pela plataforma.
– O que é que o seu amigo ia fazer que precisasse que o senhor também fosse?
– Não sei. Não agi com consciência. Foi uma parvoeira. Foi o tempo de dar a volta e…
– Foi o tempo de dar a volta, e?….
– Não sei.
– Mas porque é que a primeira reacção foi dar um murro no outro?
– Não sei, espero nunca mais passar por isto… Dei um soco.
– Vinte segundos, dez segundos, dão para mais de um soco!
– Não sei.
– Acertou onde?
– No corpo.
– Presumo que fosse no corpo!
– Puxei-o por um braço, uma perna…
– Mas ao puxá-lo dessa forma, deixou-o à mercê do seu amigo!
– Que me lembre, talvez uma ou outra pancada, mas nada de relevante…
O amigo era corpulento, o outro não. Mas Jorge sentira que tinha que ajudar o grande contra o pequeno.
– Se o seu amigo era grande, não fazia sentido ir lá meter-se, disse a juíza.
– Eu ter ido atrás foi… eu ir atrás dele foi disparate.
Jorge devia admitir a culpa, que batera porque sim, e até começou bem esta parte:
– Eu confesso integralmente. Não há dúvida.
– Diz aqui que agiu em conjugação de esforços com o seu amigo para agredir a vítima. Isto aconteceu?
– Inconscientemente, talvez aconteceu…
Inconscientemente! A juíza devolvia-lhe a consciência, levantando a voz:
– O que está aqui, na prática, é que a certa altura tomou como suas as mágoas do seu amigo e foi agredir o outro!
– Inconscientemente, sim…
Inconscientemente! A juíza já nem olhava o acusado mas a ponta neurológica dos seus dedos forenses. Estava fula ou divertida?
– Teve tempo de correr pela plataforma, subir as escadas, passar para o outro lado, descer as escadas e correr outra vez para ir bater numa pessoa. Mas está a dizer que foi sem querer!!! Vou ler-lhe a acusação pela terceira vez!
Assim fez: no dia 1 de Maio de 2017, na estação de Arroios, o arguido e um amigo aproximaram-se de indivíduo “e de imediato lhe deram vários socos”. Várias feridas no rosto e fractura do septo nasal (partiram o nariz ao rapaz). Confessa isto, senhor que nunca tal lhe passou pela cabeça, sinceramente?
– Confesso.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)