Rui Cardoso Martins

O que é que me aconteceu?

Ilustração: João Vasco Correia

Um jovem barbudo, caracóis negros e brilhantes de pez, blusão desportivo, acentuado ar moderno… mas dentro dos ossos côncavos do crânio envelhece-lhe a esponjinha cinzenta do cérebro. Sofre de memória esburacada desde o 1.º de Maio de 2017. No feriado do Dia do Trabalhador Jorge meteu-se em trabalhos (bateu num homem no metropolitano de Lisboa).

Em Jorge, o jovem que coça as barbas no tribunal, a culpa é sempre cortada pela dúvida: estaria eu em mim? quem serei eu, afinal, para fazer uma coisa destas?, perguntas que lhe escorriam da língua. Tanto era um gato atento que segue a mosca com os bigodes, como o que se baralha, caçando com as patinhas um feixe de luz.

– Saltei para o meio deles para os separar…

– E como é que se protege um amigo? É batendo no outro?

A juíza inaugurava a época da desmemória de Jorge.

– Não sei explicar.

– E foi a bater como? Com as mãos, com os pés?

– Deve ter sido com as mãos, provavelmente.

– Bateu com as mãos?

– Eu separei-os… foi uma questão de segundos. Nunca tinha passado por uma situação destas, sinceramente.

A situação foi estar com um amigo na estação de Arroios, sentido Telheiras. Do outro lado da quádrupla fila de carris electrificados, – um vão perigoso como o pior dos abismos da Terra – outro rapaz ia para o Cais do Sodré. O amigo de Jorge discutiu com o outro e desatou a correr pela plataforma.

– O que é que o seu amigo ia fazer que precisasse que o senhor também fosse?

– Não sei. Não agi com consciência. Foi uma parvoeira. Foi o tempo de dar a volta e…

– Foi o tempo de dar a volta, e?….

– Não sei.

– Mas porque é que a primeira reacção foi dar um murro no outro?

– Não sei, espero nunca mais passar por isto… Dei um soco.

– Vinte segundos, dez segundos, dão para mais de um soco!

– Não sei.

– Acertou onde?

– No corpo.

– Presumo que fosse no corpo!

– Puxei-o por um braço, uma perna…

– Mas ao puxá-lo dessa forma, deixou-o à mercê do seu amigo!

– Que me lembre, talvez uma ou outra pancada, mas nada de relevante…

O amigo era corpulento, o outro não. Mas Jorge sentira que tinha que ajudar o grande contra o pequeno.

– Se o seu amigo era grande, não fazia sentido ir lá meter-se, disse a juíza.

– Eu ter ido atrás foi… eu ir atrás dele foi disparate.

Jorge devia admitir a culpa, que batera porque sim, e até começou bem esta parte:

– Eu confesso integralmente. Não há dúvida.

– Diz aqui que agiu em conjugação de esforços com o seu amigo para agredir a vítima. Isto aconteceu?

– Inconscientemente, talvez aconteceu…

Inconscientemente! A juíza devolvia-lhe a consciência, levantando a voz:

– O que está aqui, na prática, é que a certa altura tomou como suas as mágoas do seu amigo e foi agredir o outro!

– Inconscientemente, sim…

Inconscientemente! A juíza já nem olhava o acusado mas a ponta neurológica dos seus dedos forenses. Estava fula ou divertida?

– Teve tempo de correr pela plataforma, subir as escadas, passar para o outro lado, descer as escadas e correr outra vez para ir bater numa pessoa. Mas está a dizer que foi sem querer!!! Vou ler-lhe a acusação pela terceira vez!

Assim fez: no dia 1 de Maio de 2017, na estação de Arroios, o arguido e um amigo aproximaram-se de indivíduo “e de imediato lhe deram vários socos”. Várias feridas no rosto e fractura do septo nasal (partiram o nariz ao rapaz). Confessa isto, senhor que nunca tal lhe passou pela cabeça, sinceramente?

– Confesso.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)