O príncipe que não sorria

Entrevista de Jorge Manuel Lopes

Prince era avesso a projeções públicas de intimidade. Ou pelo menos, e em conformidade com o percurso artístico ímpar, era avesso a projeções que não fossem controladas ao milímetro por si. E no entanto, ao longo da década de 1990, o génio de Minneapolis foi fotografado em inúmeras sessões por Steve Parke. Sessões mais ou menos formais, em estúdio e ao relento, sozinho, com músicos seus ou com mulheres da sua vida.

Parte dessas fotos pode ser vista na exposição “Prince: As Never Seen Before”, no piso 0 do ArrábidaShopping, em Vila Nova de Gaia, a partir de hoje, quinta-feira 12, até 2 de novembro. A visita é gratuita e a noite inaugural inclui um espectáculo de conversas e canções com Ana Moura, uma das curadoras da exibição e próxima do artista falecido em abril de 2016.

Steve Parke foi director de arte ao serviço da máquina Prince durante 13 anos, de 1988 à alvorada dos anos 2000. O que, no seu caso, significou também fazer ilustrações e trabalho de design, não esquecendo a decoração de Paisley Park, a mansão/ estúdio/ paraíso da perdição de Prince Rogers Nelson. Diversas capas de álbuns desse período são da sua autoria (“Graffiti Bridge”, “The Gold Experience”, “Rave Un2 the Joy Fantastic”). Há dois anos, Parke publicou o livro “Picturing Prince: An Intimate Portrait”, a fonte das mais de 50 fotos desta mostra. A programação paralela à exposição inclui a passagem, no UCI Arrábida 20, de filmes com a mão de Prince.

Em entrevista à “Notícias Magazine”, Steve Parke recorda a relação do autor de “Purple Rain” com a fotografia, o seu grau de exigência e de envolvimento em todos os projetos, a sua hiperatividade e desejo de trilhar um caminho espiritual.

Steve Parke (Foto: Dave-Pugh)

Como define a relação de Prince com a máquina fotográfica? Todas as sessões fotográficas eram meticulosamente planeadas ou ele também apreciava ser apanhado de surpresa pela câmara?
Era muito em função de cada momento. Como estávamos a trabalhar com novas tecnologias [à época; Parke refere-se às máquinas digitais] podíamos fotografar sem grandes preparativos. Não era tanto o caso de ser apanhado de surpresa, embora existam algumas assim, mas mais de não haver um plano para uma sessão específica em função de um projeto predeterminado. Essas sessões também eram um bom veículo para ele experimentar. Ele podia ver, por exemplo, como diferentes combinações de roupa resultavam nas fotografias. Não se esqueça que as câmaras digitais eram uma novidade e ele nunca tivera, até então, a possibilidade de ver as fotos de imediato. Por isso tentámos coisas diferentes, como tê-lo a olhar diretamente para a câmara em vez de inclinar a cabeça para baixo e fitar-nos sob as sobrancelhas, ou com um aspeto menos polido, sem maquilhagem e sem se barbear. O feedback imediato das imagens digitais e a minha capacidade de tratar do pós-processamento de tudo o que ele não gostasse deixou-o mais à vontade para fazer experiências.

Prince era tão exigente e interventivo com o seu trabalho de fotografia e design como com os músicos que o rodeavam? O Steve também recebia daqueles telefonemas às quatro da manhã, como sucedia com os músicos, para se juntar a ele no estúdio ou no escritório?
Ele estava claramente envolvido nas fotos porque eram fotos Dele, e também fazia escolhas sobre quais as imagens a manter e quais excluir. No início, ele tendia a apagar bastantes, mas depois de perceber que nunca mais poderíamos recuperar esses ficheiros (ao contrário do que acontece hoje), ele tornou-se mais generoso em relação ao volume de fotos guardadas. Mas todas foram aprovadas por ele. Não recebi muitas dessas chamadas porque quando estava em Paisley Park era habitual encontrar-me a trabalhar às quatro da manhã (normalmente trabalhava até altas horas da noite)! Mas às vezes recebia esses telefonemas às quatro da manhã nos períodos em que estava em casa, em Baltimore, quando ele tinha algumas observações a fazer acerca de algum design. Nessas alturas, apontava-as desajeitadamente às escuras.

Durante muitos anos trabalhei apenas uma semana por mês internamente em Paisley, vindo de Baltimore, operando o resto do tempo a partir de casa. A maioria dos projetos era iniciada por mim – umas vezes sob orientações, outras não. Depois, ele sentava-se comigo e trabalhávamos a noite toda até ele dar o ok e seguia de imediato para impressão! Ocasionalmente descurávamos alguns detalhes técnicos; depois de ele aprovar um projeto, eu nunca mais podia voltar atrás e ajustá-lo. Até porque já estávamos a tratar do projeto seguinte. O Morris Hayes [teclista dos New Power Generation, a banda de Prince neste período] disse-me uma vez que ficava satisfeito quando eu vinha para Paisley Park porque a banda tinha um descanso (relativo) durante essa semana.

Trabalhou com Prince entre 1988 e, salvo erro, o album “One Nite Alone”, editado em 2002. Foi um período de grandes mudanças para ele, com turbulência em termos artísticos, comerciais e pessoais. Acha que ele mudou muito entre o final dos anos 1980 e o início da década de 2000?
Como muitos artistas de verdade, Prince era uma pessoa desassossegada e que não parecia querer ser confinada a uma prateleira criativa. Do lado musical, acho que ele começou a mudar a sua banda para introduzir nova energia e ideias, ao mesmo tempo que mantinha uma base sólida de gente com técnica e conhecimentos para transmitir aos novos membros. Depois da densidade musical de “Lovesexy” [álbum de 1988] ele lançou sucessos pop super melódicos; fez outro filme [“Graffiti Bridge”, 1990]; gravou um álbum de rock and roll com o seu baterista e baixista, ao vivo em estúdio, diretamente para DAT [“The Undertaker”, 1993, sem lançamento oficial]; lutou com a Warner Brothers por causa dos masters dos seus discos; alterou o nome para um símbolo; criou a sua própria editora, a NPG Records; registou um disco acústico que acabou submerso no seu enorme espólio; fez um álbum de jazz de fusão [“N.E.W.S.”, 2003]; e a lista continua. Sinto-me cansado só de enumerar isto!

Em termos de comerciais, ele passou do que eu descreveria como corporativo para completamente faça você mesmo. Durante grande parte dos anos 90 vi-o a operar em múltiplas funções quando tratava de negócios. No essencial, ele comportava-se como um autêntico CEO da sua empresa. Pessoalmente, senti que isso era um pouco cansativo para ele, como seria para qualquer um, mas compreendo perfeitamente o seu desejo de cuidar dos seus negócios de uma forma muito literal.

Ao nível pessoal, ele sempre foi direto comigo. Falávamos sobre várias coisas que aconteciam no Mundo, sobre música e, às vezes, sobre as nossas vidas pessoais. Por mais que me sentisse à vontade para falar sobre estes assuntos, também tentava ter uma bitola interna para perceber quão longe ele realmente queria levar um tópico. Lembro-me de uma noite em que tivemos uma conversa de horas sobre o conceito de espiritualidade que chegou aos alicerces da crença. Sentia-me tão exausto (como de costume) que dei por mim sem filtro. Mais tarde, perguntei-me se teria seguido esse caminho com ele se estivesse mais desperto.

Do que podia reconhecer, esta era uma constante sua, uma busca de um significado mais etéreo e de uma conexão mais profunda ao mesmo tempo que produzia constantemente em termos artísticos. Ele operava sempre com vários motores em simultâneo. Essa nossa conversa durante toda a noite estava relacionada com o seu desejo de trilhar um caminho espiritual mais definido. Larry Graham [músico funk, ex-Sly and the Family Stone, fundamental na conversão de Prince às Testemunhas de Jeová] tinha-se tornado um mentor para ele naquele período, e acho que foi essa ligação que lhe permitiu sentir-se à vontade com quem era e com o que queria da vida. Nunca esquecerei o momento em que retirei uma imagem do pai de Prince de uma moldura para digitalizá-la quando preparava a capa de “Emancipation” [1996] e encontrei, atrás, uma foto promocional antiga de Larry Graham, autografada.

Após 13 anos de trabalho em conjunto, do que mais se arrepende de não ter feito com Prince?
Não tenho arrependimentos! Passámos muitas horas juntos a conversar e era frequente falar-lhe das coisas que eu respeitava na sua música, e o quanto eu admirava a sua ética de trabalho, e o quão incrível eu sentia que era a sua presença no Mundo. Este é o tipo de coisas que a maioria das pessoas se arrepende de não ter dito, mas sinto que lhe disse tudo o que queria. Estou muito grato por isso.

Gostava que as câmaras digitais fossem melhores e mais rápidas nessa época, para que eu pudesse tê-lo fotografado a tocar ao vivo em palco (o equipamento que usávamos não o permitia), mas isso não é realmente um arrependimento. Teria sido excelente, no entanto.