O pesadelo dos salários curtos na idade de todos os sonhos

A madeirense Carolina Jardim exerce psicologia, mas essa opção custou-lhe a independência financeira – quando trabalhava num restaurante tinha um salário superior e não necessitava do apoio dos pais

Mudaram-se para Lisboa, à procura de um futuro que não encontravam na terra natal. Têm menos de 30 anos, percurso académico, trabalham, partilham apartamentos ou dividem quartos, contam os cêntimos. Só não conseguem libertar-se da ajuda dos pais. Cinco histórias de cinco jovens independentes... mas pouco.

Quando Carolina Jardim recebeu a notícia afirmativa do almejado emprego, numa clínica situada no centro de Lisboa, nem pensou duas vezes. Largou tudo “para seguir o sonho” de exercer psicologia. Natural do Funchal, aterrou há quatro anos na capital, para frequentar o mestrado em Psicologia Clínica do ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida. “Na Madeira, não existem muitas ofertas no Ensino Superior. Além disso, no ISPA, beneficiava do desconto de 50% nas propinas por ser residente da Ilha [da Madeira]”, esclarece a jovem, de 27 anos, que divide um apartamento com dois madeirenses, em Telheiras.

Enquanto estudava, trabalhava num restaurante e, com alguma ginástica, conseguia suportar as despesas. No entanto, o dinheiro deixou de ter importância quando há um ano surgiu a tão esperada oportunidade profissional. “Só pensei em seguir em frente, mas depois, perante as despesas, caí na realidade. Recebo menos”, conta, confessando ter imaginado que essa conquista fosse mais rápida, ao ponto de ter ponderado voltar para o Funchal. “Lisboa é uma cidade muito competitiva e o nível de vida é elevado.”

É o valor que paga pelo quarto e as despesas do quotidiano que levam a mais nova de três irmãos a recorrer ao apoio financeiro dos progenitores. “Com a minha idade, os meus pais já viviam na sua própria casa, tinham filhos. O meu objetivo é ser independente e não lhes telefonar a pedir dinheiro para ir ao supermercado. Estou a lutar para que esta fase acabe”, frisa Carolina, com um sorriso de felicidade e imensa gratidão, que se estende ao namorado, que, de quando em vez, também a ajuda monetariamente.

Em 2016, Carolina Vicente deixou Oiã e mudou-se para Lisboa, acreditando que iria conseguir um bom ordenado. Hoje, recebe pouco mais de 700 euros.

Natália Nunes, coordenadora do Gabinete de Proteção Financeira da DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor, refere que uma das razões por que alguns jovens continuam a depender dos pais é a falta de recursos económicos, que pode ser originada pela precariedade do mercado de trabalho e pelos baixos vencimentos. O especialista diz que essa perceção surge do contacto diário com as famílias e da análise das despesas dos agregados familiares, em que “parte do rendimento se destina a suportar ou ajudar os filhos”. E aponta a habitação e a alimentação como as “despesas com maior custo nos orçamentos familiares”.

Para Sílvia Freitas, psicóloga clínica e terapeuta familiar, existem “motivos voluntários ou impostos” que conduzem um jovem à mobilidade geográfica, bem como “motivações internas ou externas que de um modo geral tendem a ter como objetivo principal a concretização de um processo de autonomia e autorrealização”. A psicóloga, que dá consultas em Lisboa e no Gabinete de Avaliação e Intervenção Psicológica, no Funchal, acrescenta que culturalmente, com os movimentos de deslocação, os jovens pretendem “uma maior amplitude de escolhas profissionais e pessoais, melhores acessos e maior abrangência de respostas possíveis ao nível das carreiras profissionais”.

“Os pais continuam a ser a almofada financeira dos filhos. O caminho passa por uma gestão responsável do dinheiro”

Uma ambição que Renato Miguel do Carmo, sociólogo e professor do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, confirma, evidenciando vir do passado e ter sido intensificada pela crise. “Há uma grande dificuldade de os jovens se fixarem na região, sobretudo pela falta de emprego. Muitos vêm para Lisboa como estudantes e são bastantes aqueles que permanecem, porque nos seus locais de residência, em espaços mais periféricos e/ou rurais, não têm a possibilidade de ingressar no mercado de trabalho ou de exercer na área profissional que gostariam.” Por outro lado, Sílvia Freitas observa que, “tendo em conta a faixa etária e a altura em que estes jovens adultos procuram uma saída para as grandes metrópoles, há sempre a necessidade de uma gestão entre as novas escolhas individuais e a dificuldade em assumir uma autonomia total, pela dependência financeira”.

“Mesmo com restrições, o meu ordenado não chega”

É o caso de Carolina Vicente, que, em 2016, deixou Oiã, no distrito de Aveiro, para complementar a licenciatura em Comunicação Social, pela Escola Superior de Educação de Viseu, com o mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação, no ISCTE. A jovem, de 25 anos, confessa que a escolha do curso “não foi pensada”, mas motivada “pela vontade de continuar a estudar na mesma área”, acreditando que “seria muito mais fácil encontrar trabalho na capital” e que teria “um bom ordenado”.

A primeira desilusão foi com o mestrado, que não concluiu, ficando com o grau de pós-graduação. Contudo, deu-lhe alento ter encontrado trabalho facilmente numa agência de comunicação logo após o estágio curricular. A segunda desilusão, que faz com que afirme não estar a superar as expectativas, é o baixo ordenado – pouco mais de 700 euros – no segundo emprego, como gestora de projetos numa empresa de comunicação, no Parque das Nações.

Todos os meses, paga 150 euros pelo quarto que partilha com uma jovem de Viseu num apartamento, em Campolide, com mais um quarto, onde vive outra pessoa. As três dividem as despesas de água, gás e luz, mas Carolina tem outros gastos, como a alimentação, o passe mensal ou as viagens à terra natal duas a três vezes por mês. “Em Oiã, a maioria dos meus amigos ainda vive com os pais, outros têm a sua própria casa por apenas 300 euros mensais”, assinala a jovem que recebe uma mesada dos progenitores. “É o que me vale.

Há seis anos, a alentejana Sara Pires mudou-se para Lisboa carregada de sonhos. Apesar das contrariedades, ainda não atirou a toalha ao chão, mas pondera regressar a Marvão e abrir o próprio negócio

Mesmo com restrições, o meu ordenado não chega e se não me falta nada é graças à ajuda dos meus pais”, desabafa Carolina, focando a “falsa independência” e a falta do contacto próximo com os pais e com a irmã mais velha. “Gosto muito do que faço e do ambiente de trabalho, mas em casa não tenho conforto nem privacidade. Por exemplo, em termos de espaço, tenho apenas um armário e uma prateleira na cozinha para as minhas coisas.”

Segundo Sílvia Freitas, numa situação como esta, “o jovem adulto confronta-se com a necessidade de estabelecer equilíbrio entre as exigências de um novo ambiente e os recursos que dispõe para lidar com os desafios de adaptação, que são vários e constantes”. Renato Miguel do Carmo destaca o papel do capital social, de proximidade, como uma grande desvantagem comparativamente com os jovens naturais de Lisboa.

“É possível construir uma rede de proximidade, mas demora tempo”, anota o sociólogo, que, com Ana Rita Matias, escreveu o livro “Retratos da Precariedade”, obra que retrata as trajetórias de 24 jovens portugueses que enfrentam situações precárias. “A precariedade é essencialmente laboral, mas também se reflete em outras áreas do quotidiano, como na habitação, na forma como o dia a dia é vivido ou na semiautonomia financeira, com os pais a ajudarem na prestação do carro, nas propinas, nos bens de primeira necessidade ou com dinheiro. Nos deslocados, a situação é mais gravosa”, diz o docente.

“Muitas pessoas não assumem o apoio dos pais”

Sara Pires tem 25 anos, é de Marvão, Alentejo, e defende que “muitas pessoas necessitam do apoio dos pais, mas não assumem”. E dá uma explicação: “Receiam aquilo que os outros possam pensar ou comentar. Acreditam que, se vieram à luta, têm de mostrar que conseguem sozinhos e por isso não mostram fragilidade”. Sara é filha única e foi para Lisboa há seis anos com o intuito de ingressar no Exército. Não conseguiu realizar esse sonho, mas por lá ficou, por gosto e paixão pela cidade.

Já teve vários trabalhos no comércio e atualmente é subgerente de um estabelecimento na área da restauração na zona do Marquês de Pombal. Habita há dois anos num apartamento na Estefânia, com duas pessoas. Contudo, está “sempre à espera de receber um aviso para sair”, algo que já aconteceu duas vezes. “Por curiosidade, pesquisei por quartos para alugar e o primeiro que encontrei tinha o valor de 600 euros. Comecei por pagar 200 euros, depois 250 e agora pago 270 por este quarto com despesas incluídas”, revela, justificando, dessa forma, o aumento das despesas com a habitação.

Com um ordenado que não chega aos 800 euros, a jovem alentejana contou com o apoio financeiro dos pais quando tirou a carta de condução e ainda usufrui dessa “ajuda preciosa”, que não se confina ao dinheiro. Quando vai a Marvão, regra geral uma vez por mês, regressa a Lisboa com bens alimentares, o que “faz toda a diferença por conseguir poupar cerca de 50 euros”.

Sara tem amigos, mas sente-se sozinha. “A saudade aperta e muito”, admite. E é com um olhar triste que diz sentir-se frustrada por não ser totalmente independente e por ter tido a “ilusão inicial de que tudo iria ser fácil”. “Tenho uma amiga de infância, da minha terra, que vive no Porto e com quem desabafo. Afinal, estamos a passar pelo mesmo. Muitas vezes, quando passamos mal, não dizemos nada aos pais para não os preocupar. Por isso, também é comum pedir dinheiro emprestado a amigos”, relata a jovem, que em Lisboa nota “muito individualismo” e considera cada vez mais complicado “conseguir algo tão simples [na terra] como ter um carro”.

Flávio Mendes compra roupa na Feira da Ladra e, assim, poupa para garantir o pagamento da prestação do automóvel que lhe permite ir a casa, na Serra da Estrela

Flávio Mendes, 26 anos, prefere abdicar de algumas despesas variáveis como roupa, optando por comprar vestuário na Feira da Ladra, para garantir o pagamento da prestação do automóvel. “A deslocação de carro é tida como um luxo, face ao nível de vida e contas para pagar. Pensamos nós que é, mas, na realidade, não é luxo nenhum. De qualquer forma, temos de nos movimentar e eu prefiro deste modo”, salienta o jovem de Gouveia, Serra da Estrela, que se licenciou em Comunicação Social na Escola Superior de Educação de Viseu. Nessa cidade pagava 100 euros por um quarto, já em Santa Apolónia desembolsa 200 euros (sem despesas) pelo quarto de um apartamento onde vivem mais dois jovens.

Flávio chegou à capital em 2014, para fazer o mestrado em Novos Média – Práticas Web na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Terminado o curso, estagiou, foi trabalhar para a Irlanda do Norte, onde abriu horizontes e desenvolveu o inglês, regressou a Lisboa e, após alguns estágios curriculares e profissionais na área de comunicação e marketing digital, conseguiu integrar o departamento de marketing como social media manager de uma empresa cujo nome prefere não referir.

Diz adorar Lisboa, a luz, a proximidade da praia, o movimento e as amizades entretanto feitas, mas não o “elevado custo de vida” que o atira para uma situação de falsa independência. É a mãe que regularmente apoia o único filho a nível financeiro. “Gosto imenso da minha atividade profissional, tenho adquirido muita experiência, mas o ordenado de três dígitos não me permite suportar todas as despesas. É tudo muito caro”, menciona. E questiona: “Quando é que uma pessoa pode ficar adulto independente?”.

Lidar com a frustração ajuda a atingir a maturidade

Aprender a lidar com a frustração é também uma forma necessária de crescimento pessoal e de alcançar a maturidade emocional, segundo Sílvia Freitas. A psicóloga frisa que “a mudança para uma nova localidade resulta em sentimentos de perda de controlo, por ser uma situação que impõe inúmeras exigências de adaptação” e considera significativo o apoio social e as novas relações interpessoais, pelos “sentimentos de pertença e de participação de modo integrado e efetivo na vida em sociedade”. Além disso, “lidar com o insucesso vai depender da rede de suporte familiar e dos estilos de vinculação”, acrescenta.

São os laços familiares, mesmo à distância de um clique ou de um telefonema, que confortam quem está deslocado e não pode ir à terra natal sempre que deseja. Renato Miguel do Carmo evidencia o problema relacionado com a acessibilidade. “Migrar para outra cidade, neste caso Lisboa, implica quase um desligamento da zona de residência, devido às infraestruturas e aos transportes públicos. Pode afetar do ponto de vista emocional”, sustenta o sociólogo, apologista de “um maior investimento na ligação com o meio rural”.
Ter um veículo próprio faz toda a diferença, mas são muitos os custos associados.

Que o diga Flávio Mendes. “É muito caro e de transportes perde-se imenso tempo. Por isso, vou de dois em dois meses a Gouveia.” Já Carolina Jardim viaja para o Funchal duas vezes por ano, normalmente na época natalícia e no verão. “Emocionalmente, é complicado gerir a distância. Mas não consigo ir mais vezes, até porque é dispendioso, mesmo com o subsídio de mobilidade.”

Apesar de ter carta de condução, Nicole Batista não tem carro precisamente pelo valor que teria de despender, para o pagar e para o manter. Em 2014, esta jovem, de 23 anos, partiu de Ourique, Alentejo, para se licenciar em Línguas, Literaturas e Culturas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, cujas saídas profissionais são várias, entre elas serviços administrativos que requerem fluência em línguas estrangeiras. É a área profissional de Nicole desde 2017. Primeiro, na receção de um hotel; desde há ano e meio, numa empresa de novas tecnologias, em Linda-a-Velha.

Vive em São Sebastião, num quarto de um apartamento partilhado com sete jovens, e desloca-se de transportes públicos. “É uma forma de poupar”, explica, revelando algumas medidas que a ajudam a “esticar” o ordenado, quase nos 800 euros. “Levo sempre o almoço para o trabalho, raramente janto em restaurantes e uso o cartão jovem, por exemplo para pagar as viagens à terra. Também aproveito o wi-fi gratuito, tento comprar mais roupa nos saldos, recorro imenso ao Book Depository para adquirir livros e também peço com frequência obras emprestadas.”

Nicole Batista partilha um apartamento com sete jovens e tem várias estratégias para “esticar” o ordenado de 800 euros.

Nicole é filha única e tem igualmente uma “ajuda complementar” dos pais, com o dinheiro que lhe dão quando os visita, com a oferta de bens alimentares e com a partilha das despesas (alimentação, veterinário, etc.) da Lola. “Faço muitas compras online por serem menos dispendiosas. Ainda assim, os custos com a cadela são consideráveis. É como se fosse uma filha”, menciona, frisando que nota diferença no nível de vida de Lisboa desde que chegou. “Já tentei mudar de casa, mas os preços são muito altos. Pago 200 euros com despesas e não encontro nada por este preço”, observa, sublinhando as saudades que sente da família. Contudo, é com convicção que diz o que mais gosta é “do movimento de Lisboa” e de se “sentir anónima na cidade”.

Sílvia Freitas considera “a autonomia um conceito que se associa à capacidade de fazer escolhas, análise, promoção da autorreflexão e tomadas de decisão nas variadas áreas da vida”. Por isso, “na maior parte dos casos, por não haver ainda total autonomia financeira, não significa que não haja a possibilidade de alcançar autonomia emocional”. No passado, quando a taxa de desemprego era muito elevada e os jovens não encontravam trabalho, “foram os pais que contribuíram para manter os orçamentos familiares mais ou menos equilibrados e ajudaram no pagamento da prestação do crédito à habitação de que a maioria era fiadora”, aponta Natália Nunes.

A coordenadora do Gabinete de Proteção Financeira da DECO acrescenta que atualmente “os pais continuam a ser a almofada financeira dos filhos”, porque “os rendimentos são muitas vezes insuficientes para suportar todos os encargos”. Natália Nunes acredita que, no futuro, essa ajuda deverá continuar a verificar-se, quer pelos rendimentos baixos de alguns jovens, quer devido ao endividamento das famílias em geral. “O caminho passa por uma gestão responsável do dinheiro.”

Porque tem o apoio financeiro e emocional dos pais, Carolina Jardim pensa continuar a viver em Lisboa e somente quando adquirir mais experiência profissional é que pondera voltar para o Funchal. Carolina Vicente valoriza a proximidade à família e admite que na capital jamais terá a qualidade de vida que deseja, pelo que é provável que regresse a Oiã. “Aqui é impossível ter a minha própria casa e não quero chegar aos 30 anos nesta situação.” Ingressar no Ensino Superior é uma ambição de Sara Pires. Se não atingir essa meta, equaciona regressar a Marvão e criar o próprio negócio. Flávio Mendes acredita que no futuro conseguirá viver sozinho em Lisboa. “A falsa independência não pode durar para sempre.” Nicole Batista só se imagina na capital. Se tudo correr como deseja, avançará para um mestrado em 2020.