O Pai Natal existe?

Na casa de Francisca, Jorge e da filha Alma, não há qualquer evidência de Natal. As luzes e as decorações coloridas ficam à porta, nas ruas do centro do Porto. (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Há quem diga que vem do Polo Norte, outros dão a Lapónia como a morada de origem. Em algumas casas, chega à meia-noite. Noutras, dá sinal de manhã, bem cedo. Mas também há famílias que fazem questão de não o promover.

Não fossem as luzes de Natal a decorar as ruas do centro do Porto, visíveis desde a enorme janela da sala, e nada diria que estamos em plena época natalícia. Na casa de Francisca Pimenta não há nenhuma evidência disso: nem árvore, nem presépio, nem enfeites, nem tão pouco sinais da aguardada chegada do Pai Natal. Alma, de quatro anos, é a única filha do casal, que optou por não promover a famosa figura de barbas brancas.

“O Pai Natal não reflete a mensagem do que é o espírito natalício. Este consumismo aflige-nos”, justifica Francisca. “Até há pouco tempo era relativamente simples fazer esta gestão: nós não falamos do Pai Natal, a Alma sabe que no Natal tem apenas um presente oferecido pelos pais e que tem também de doar brinquedos antigos a uma instituição, normalmente optamos pela Casa do Caminho… À medida que cresce, torna-se mais exigente, seja pela escola, pelos avós e pela sociedade como um todo”, desabafa a mãe.

Os princípios anticonsumistas são uma das razões para que Francisca e Jorge tenham optado por não contar a história do Pai Natal à filha, mas as motivações não se ficam por aqui. “Lembro-me bem de a minha mãe me ter dito alguma coisa como ‘A mãe nunca te mentiu’ e de eu lhe ter respondido ‘Mentiu sim, fingiu que o Pai Natal existia e que vinha cá a casa'”, conta o pai de Alma entre risos. Apesar de não ter ficado “traumatizado por isso”, Jorge prefere basear a relação com a filha em princípios como a verdade e a confiança.

“Na noite de Natal reunimo-nos em família e fazemos uma refeição vegetariana mais composta. A Alma recebe sempre um presente, normalmente um livro ou um brinquedo de madeira”
Francisca Pimenta

Teorias e fantasias

A pedagogia Montessori, método educativo preconizado por Maria Montessori na primeira metade do século XX, defende exatamente esses princípios e, por essa razão, afasta a promoção da fantasia. Sylvia Sousa, psicóloga infantil especializada nessa pedagogia, explica-nos que “Maria Montessori observou que as crianças não precisam de fantasiar mas antes de imaginar, ou seja, têm uma necessidade intrínseca de replicar no jogo de faz-de-conta situações que aconteceram na verdade”. Apesar de, no passado, ter promovido a figura do Pai Natal junto dos dois filhos mais velhos, a psicóloga arrisca-se a dizer que se uma criança acredita no Pai Natal significa que, a determinado momento, terá de saber a verdade. “Se lhe dissermos a verdade significa que antes houve uma mentira. Quando fazemos a escolha de criar nas nossas crianças a fantasia do Pai Natal, assumimos a responsabilidade de um dia ter de admitir que lhe mentimos. É um inconveniente porque, de certo modo, estamos a fragilizar a confiança da criança nos pais.”

Pedro e Filomena ajudam sempre os filhos Gustavo, de 11 anos, e Margarida, de seis, a escrever a carta ao Pai Natal. (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Perspetiva completamente diferente tem a psicóloga clínica e coordenadora da Equipa InfantoJuvenil da Oficina da Psicologia, em Lisboa, Inês Afonso Marques, para quem “alimentar o imaginário infantil com figuras especiais para os mais novos (Pai Natal, Fada dos Dentes, Unicórnios…) é saudável para o desenvolvimento social, emocional e cognitivo das crianças”. A psicóloga defende mesmo que “a fantasia é uma porta de entrada para melhor se conhecer uma criança – o que gosta, o que teme, o que pensa, o que sente…”, para além da possibilidade de desenvolver e criar competências como a empatia, a resolução de problemas, a criatividade e a linguagem.

Acreditar, sim… mas até quando?

Gustavo já perdeu a conta às vezes que os amigos lhe disseram que o Pai Natal não existe, mas nem assim o filho mais velho de Filomena Moura deixa de acreditar nessa figura mágica. “Nós já falámos várias vezes sobre o assunto, houve um ou outro momento em que achei que ‘é agora’, mas o Gustavo só faz as perguntas até onde quer ouvir a resposta”, explica a mãe, que faz questão de ajudar os filhos Gustavo, de 11 anos, e Margarida, de seis, a escrever a carta ao Pai Natal.

“Na nossa casa vive-se intensamente a quadra: todos os anos fazemos uma árvore nova, muitas vezes com coisas feitas pelos miúdos, escrevemos a carta. No dia 24 de dezembro, à meia-noite, ouve-se um estrondo na cozinha e quando lá chegamos já lá estão os presentes deixados pelo Pai Natal. É um momento muito importante e muito tradicional na nossa família”, descreve.

Quando questionada sobre o facto de o filho ter 11 anos e ainda acreditar no Pai Natal, Filomena mostra-se tranquila: “Quando perguntam se o Pai Natal existe, respondemos sempre que nunca o vimos, mas que acreditamos nele. E não sinto que esteja a ser desonesta, aliás, nós temos uma relação aberta com os miúdos sobre tudo, não há assuntos tabus”.

De acordo com a psicóloga Inês Marques Afonso, as crianças devem acreditar no Pai Natal “até quererem”. Se a criança acredita, é porque está a cumprir alguma função no seu desenvolvimento, embora seja natural que entre os seis e os oito anos comecem a levantar questões.

Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens

“Enquanto a criança não questiona os pais, poderão respeitar a fantasia e a construção da imagem, do conceito e dos valores que a família criou em torno do Pai Natal.”

Para a psicóloga clínica, não existem diferenças de género quanto ao momento de descoberta da realidade relativamente ao Pai Natal, mas refere o peso da hierarquia. “Em famílias com mais do que um filho (ou muitos primos), é possível que a descoberta seja antecipada. Mas tudo depende da criança mais velha. Poderão querer assumir um papel ativo, ao perpetuar este mundo imaginário, ou poderão ter dificuldade no controlo dos impulsos de partilhar as suas mais diversas descobertas”, remata.

A pergunta chegou há pouco menos de um mês e foi feita por Margarida, de seis anos, enquanto refletia sobre o brinquedo que gostaria que o Pai Natal lhe trouxesse. “Mãe, mas como é que ele chega a todas as casas à meia-noite ao mesmo tempo?”, conta-nos Filomena. “Eu fiquei calada e pensei que tinha chegado o momento, mas o Gustavo respondeu à irmã por mim e disse-lhe: ‘Porque ele é mágico, mana.’ E a conversa ficou por ali.”

Inês Marques Afonso defende que, numa fase de questionamento, os pais podem devolver as questões com perguntas como “Porque perguntas se existe?” ou “O que achas que mudaria se não existisse?”. Para a psicóloga, “respeitar os ritmos de desenvolvimento das crianças é fundamental. Mas é também importante não as infantilizar quando mostram sinais de maturidade”. “As reações [à descoberta] tendem a ser imprevisíveis. Há crianças que ficam tristes, zangadas e desiludidas. E há crianças que reagem com enorme boa-disposição e orgulho no sentido de ‘já sou crescido’. E há ainda crianças que não perguntam. As reações menos positivas tendem a ser transitórias. Não deixam marcas de desgosto que perdurem no tempo”, acrescenta.

Quando questionámos Filomena, mãe de Gustavo e Margarida, sobre o que vai na cabeça do filho, de 11 anos, o sorriso tímido é inevitável. “Ele é muito maduro. Por isso, desconfio que ele sabe, mas que quer continuar a acreditar. Tanto é que às vezes me faz perguntas e, antes que eu responda, diz-me que afinal não quer saber.”

Tentação para negociar o bom comportamento

Se há pais que deixam a questão no ar, há outros que preferem fazer as questões antes mesmo de a criança as equacionar. É o caso de Francisca Pimenta e Jorge, que este ano, pela primeira vez, foram surpreendidos com um discurso da filha sobre o Pai Natal que, na companhia da avó, tinha visto no shopping. Francisca optou por não dar palco a essa fantasia e questionar Alma com perguntas como “Mas tu achas que o Pai Natal é um senhor que está no shopping?” e “Tu achas que alguém consegue ir às casas de todos os meninos dar presentes?”, dando pistas subtis para que a menina de quatro anos vá crescendo sem essa fantasia.

O mesmo se passa em relação à carta ao Pai Natal. Alma já mostrou interesse em escrever para lhe pedir “uma escavadora”, mas os pais optaram por não dar seguimento ao assunto. “É lógico que na noite de Natal nos reunimos cá em casa em família, onde fazemos uma refeição vegetariana mais composta, com pratos como tofu com broa ou alho francês à Brás e umas deliciosas rabanadas sem açúcar. A Alma recebe sempre um presente, normalmente um livro ou um brinquedo de madeira por questões ambientais. É uma noite de celebração e de convívio, nada mais”, detalha Francisca.

“No dia 24, à meia-noite, ouve-se um estrondo na cozinha e quando lá chegamos já lá estão os presentes deixados pelo Pai Natal. É um momento muito importante na nossa família”
Filomena Moura

Uma forma de viver a quadra que, em alguns aspetos, está alinhada com os princípios montessorianos, como nos explica a psicóloga infantil Sylvia Sousa. “Transmitimos às crianças que o Natal, como qualquer outra celebração, é uma celebração de amor, de partilha, de proximidade, que deveria estar presente nos nossos dias, todos os dias, mas que nesta altura é ainda mais enfatizado. Não significa que as crianças não podem receber presentes de Natal, mas existe essa tentativa de resfriar de algum modo o impulso consumista através do foco noutras dimensões.”

É nessa medida também que em Montessori, de acordo com Sylvia Sousa, não falam do Pai Natal como sendo uma figura verdadeira. “Não escrevemos nem enviamos cartas com a lista de presentes, podemos ler livros com histórias de Natal em que o Pai Natal aparece, mas sublinhando o facto de ser uma história inventada.”

Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens

Mais relevante do que a fronteira entre realidade e fantasia, as restantes especialistas tendem em concordar no que Sylvia Sousa apelida de “tentação para negociar o bom comportamento das crianças”. “Usar frases como ‘Se não te portares bem, o Pai Natal não te dá prendas’ ou ‘Olha que ele vê e ouve tudo’ faz com que transmitamos à criança que o Pai Natal é como se fosse um juiz, que sabe melhor do que os pais o que a criança merece.”