O padrasto
Delicadeza, doença ou cautela. Ou as três razões. A voz do padrasto saía da língua seca e, lá em cima, os cabelos ralos pareciam penugem cinzenta de pombo. Em baixo, as pernas de alfinete desenharam um ângulo para dentro. O depoimento do padrasto contra a enteada, filha da mulher, começara nublado:
– Juro o quê?
– Jura dizer a verdade e só a verdade?
– Ah, juro.
– Ouve bem ou temos que falar mais alto?
– Ouço mal. Mas às vezes também não percebo bem a pergunta.
O padrasto foi vítima do último ataque da enteada. Há muito que a rapariga considera o prédio da mãe um castelo a conquistar. Chega e, como se faz num cerco de muralhas, exige a rendição. Quer tabaco e dinheiro. São os víveres dela, mais a cocaína (de que se abastece noutra colina). Dez euros e um maço de tabaco para ir embora. Disse o padrasto:
– Ouvíamos a gritar: “Vocês têm aí tabaco, não vos custa nada dar tabaco, tu não és mãe, não és nada!”. Antes, tocou à porta no estilo de tirar o dedo e não tirar.
A juíza e a procuradora tentavam reconstituir essa tarde.
– Ela disse: “A minha mãe quer dar, tu é que não deixas dar!”. Acusou-me de ser o culpado. A mãe, nessa altura, estava na varanda. E dizia-lhe “para droga, nada”.
– Ela fez-lhe alguma coisa a si?
Por delicadeza, doença ou cautela, o padrasto desviava o assunto das agressões e ameaças, matéria dos autos.
– Eu como já não aguentava o barulho da campainha, peguei no escadote e desliguei o fio por cima da porta. Ela podia carregar que já não tocava.
Isabel esteve muito tempo aos pontapés na porta do prédio. Depois uma vizinha pediu desculpa ao padrasto, mas tinha uma criança à espera na escola. Abriu a porta e a rapariga correu pelas escadas.
– Aí já mandou pontapés à porta. Eu saí fora da porta. Tentei empurrá-la para ela descer as escadas. Ela tentou ripostar com as mãos e com os pés. Ela, com as mãos, agarrava-se e não saía. Empurrou uma vez ou duas.
– O senhor chegou a cair, a bater em alguma coisa?
O padrasto desviava o assunto:
– Fundamentalmente chamar puta e depois todos aqueles impropérios.
– Não tenha vergonha, nós estamos habituadas…
– Disse que ela era a pior mãe do Mundo.
– Tente encontrar as palavras piores, não as mais simpáticas.
– Ela disse que ia riscar os carros.
– Mas riscar porquê?
– Que, se a mãe não desse dinheiro e tabaco, ia riscar os carros.
Isto pouco andava. O padrasto não dizia que a rapariga lhe chamava velho de merda, que não era seu pai, que lhe partia a boca toda. Que tinha uns amigos noutro bairro e que eles iam lá bater-lhes, que não era ela quem sujava a mãos.
– Foi ao hospital?
– Fui, porque para além de bater com a cabeça, um braço ou outro estava arranhado.
Um braço ou outro, como se houvesse mais de dois.
– Ameaças relativamente a você, a nível físico?
– Não me lembro.
Entrou a mãe. Outra palavra mais certa, agora: a progenitora. Ana Sofia fala da filha Isabel como uma alma vazia. Alguém deixou de o ser. E o marido dela num calvário:
– Ele tinha sido tratado com quimioterapia. Estava debilitado. Um cancro nos ossos. Não tanto como está agora, que apanhou uma pneumonia depois da quimioterapia.
– E o que é que a sua filha fez?
– Murros contra o meu marido, atirá-lo contra a parede. E o meu medo era que ela o atirasse pelas escadas abaixo.
Ninguém sabe onde está Isabel. Anda por aí. Uma advogada foi nomeada para a defender.
– O que é que ela consome?
– Cocaína.
– Que tipo de vida a sua filha leva?
– Presumo. São tudo presunções. Não faz nada. Presumo…
E a mãe (mãe outra vez) engoliu em seco as reticências.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)