O oásis é bastante evidente

Texto de José Miguel Gaspar

Este Verão, o diário espanhol “El País” publicou uma reportagem que teve grande eco na edição brasileira, e que dizia que “Portugal é um paraíso gay” e “um refúgio para homossexuais fugidos do Brasil”. Num confronto direto Portugal vs Brasil, não há como negar a evidência, “mas o paraíso é relativo, nem tudo em Portugal é ‘super friendly’ [super amigável] LGBTI”, avisa Marta Ramos, da ILGA Portugal, a mais antiga associação de solidariedade social que pugna pelos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo, com sede em Lisboa.

“Uma coisa é o bom índice de direitos e boas leis, mas outra coisa é o dia-a-dia” — e cita o caso de 30 de Agosto, no Terreiro do Paço, Lisboa, pleno dia, em que um casal homossexual foi insultado e agredido por quatro homens que tentavam vender estupefacientes. As vítimas foram à Polícia e o caso foi registado no Observatório da Discriminação, que Marta Ramos coordena na ILGA. Ela lembra os dados de 2018 do Observatório: 59 denúncias de crimes contra pessoas LGBTI, em 186 queixas na plataforma “e que são apenas a ponta do icebergue”. “São 59 crimes, entre os quais um homicídio com motivação homofóbica, oito casos de violência física extrema, quatro de violência sexual, quatro de agressão e 44 de violência psicológica, além de outros 74 de discursos de ódio”. Dessas 186 queixas, só 13% foram reportados pelas vítimas às autoridades.

A horrífica morte de Gisberta e as mudanças na lei

Marta Ramos relembra quando tudo mudou: 22 de fevereiro de 2006, o dia em que Gisberta Salce Júnior, 45 anos, imigrante brasileira no Porto, transexual, prostituta, seropositiva, sem-abrigo foi assassinada num edifício devoluto no centro do Porto por 14 rapazes entre os 12 e os 16 anos, da instituição católica, entretanto encerrada, Oficinas de S. José. É das maiores sombras criminais da história da cidade: Gisberta foi agredida e repetidamente torturada durante três dias com paus, pedras e fogo e depois sepultada viva num poço com água, onde sucumbiu afogada. A autópsia mostrou: lesões na cabeça, pescoço, pernas e braços, laringe e traqueia, abdómen, intestinos e rins, e múltiplas equimoses, escoriações e hemorragias graves. Os menores, que inicialmente eram acusados de homicídio qualificado, viram a acusação alterada para ofensas corporais qualificadas e só um deles, o único de 16 anos, cumpriu pena de oito meses.

“A percepção pública deste tipo de crimes mudou muito com a Gisberta, houve um alerta social”, diz Marta Ramos. “Hoje o caso seria julgado com pena agravada e a compreensão do sistema judicial seria diferente [o juiz considerou que a mulher morreu por afogamento e não devido à tortura]. Entretanto já aprovamos a lei do casamento homossexual e da adopção, já temos a lei que protege a identidade de género, há mais consciência, e também os policias, que nos anos 80 prendiam homossexuais, mudaram a mentalidade e fizeram rapidamente, e ainda bem, um longo caminho de evolução”.

Mas, voltando ao duelo Portugal-Brasil, a ideia de paraíso não esmorece. “Comparando com o Brasil, o Porto e Portugal são um paraíso para a comunidade LGBTI brasileira, diz João Paulo, criador do Portugal Gay, um portal de internet criado em 1996 com um princípio esclarecedor: “Tomar todas as medidas ao seu alcance para melhorar o nível de vida e de realização pessoal e afectiva dos LGBTI”. João Paulo continua: “No Brasil, para eles, a questão não é a qualidade de vida, a questão é a sobrevivência. É nesse ponto escuro que eles estão. Gay no Porto, português ou estrangeiro, não tem razão de queixa. Nesse sentido, e apesar de termos de superar algum racismo, homofobias, discriminações encapotadas, a nossa cidade, o nosso país, são praticamente o céu”.

Também nós fizemos um longo caminho desde a passagem do século. “Em 1996 vivíamos encobertos, quase clandestinos e hoje o Porto fervilha de gente de todos os géneros, humanizou-se, democratizou-se, cresceu, a diferença é como das trevas para a luz, é abissal”, conclui João Paulo. E também ele concorda que muito mudou com Gisberta em 2006, ano em que ele co-organizou a 1.ª Marcha Gay do Porto: “Foi um assassinato brutal, ignorante, inédito na violência. Foi um grito num deserto da vontade política, em que os políticos, escudados em desculpas demagógicas, acordaram finalmente para o bem”.

Inédito: UP tem mais brasileiros que portugueses em mestrado

“Oásis? Sim, sim, somos um pequeno paraíso de respeito e civilidade LGBTI”, concorda o sociólogo João Teixeira Lopes. “É um refúgio, é um Porto seguro, é acolhedor. Não será um paraíso total, ainda temos racismo e violência homofóbica, mas comparado com o quadro do Brasil, o país mais transfóbico do mundo, é um oásis bastante evidente”.

O sociólogo claro que reparou na avalancha: “A imigração brasileira para cá é tanta que está a lançar o caos nos serviços consulares, rebentam pelas costuras com pedidos de vistos de residência, de trabalho, de estudo e de nacionalidade. Ouve-se falar até dum mercado negro de senhas nos consulados portugueses no Brasil e nos serviços do SEF, que duplicaram e triplicaram tempos de espera”.

Mas há um lado positivo, diz Teixeira Lopes, que leciona no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade do Porto e adianta a novidade:

“Nos mestrados e doutoramentos em sociologia, entre 60 alunos, os brasileiros já são mais do que os portugueses. Isto é inédito aqui. Mas as consequência são boas: os brasileiros preenchem lugares vazios de pós-graduação e contribuem para a diversidade e melhoria do ambiente pedagógico. Só faz falta estruturar formas de apoio: estes alunos agora chegam cá sem bolsas porque o governo Bolsonaro está a cortá-las, entre outros vectores de educação, direitos humanos, ambiente, ciência e cultura, como sabemos. Ideologicamente”, conclui, “o Brasil está hoje pior, é uma evidência, o ambiente é pesadíssimo”.

Cá andam à vontade, encontram a paz

Em Braga, “eles encontram paz, podem andar à vontade com os seus pertences na rua e têm tudo à mão de semear. Braga é uma mini metrópole com grande qualidade de vida e eles, os brasileiros, vêm à procura disso. E da segurança que temos cá”, resume Luís Pedroso, presidente da União de Freguesias de Maximinos. Através da sua Junta, o autarca tenta ajudar nos processos de regularização dos imigrantes, que parece conhecer bem: “40% dos brasileiros chega cá com uma boa retaguarda financeira, 30% vem com formação académica e há outros 30%, indiferenciados, que pensam que Braga é o Eldorado e acabam em dificuldades”, diz Luís Pedroso.

Os brasileiros que cá estão preencherão vários extratos sociais, desde os pobres sem formação que vêm para as obras, até à classe distintamente alta que investe e cria novos negócios. Do lado dos pobres, houve em 2018, segundo o SEF, 1.645 brasileiros notificados para abandonar voluntariamente Portugal por estarem em quadro ilegal, sem emprego ou modo de sustentação legal — 45% de todos os estrangeiros notificados por essa razão — e, dentro desses, 264 foram recambiados coercivamente.

Do outro lado, o dos ricos, há um novo dado: de 2018 para este ano, o Brasil foi o país que mais cresceu em pedidos de ARI – Autorizações de Residência para Atividade de Investimento, os chamados “vistos gold”, em Portugal. A subida é de 41%: 108 “vistos gold” brasileiros em 2018 e 164 em 2019 (até agosto). Os chineses continuam a ser o povo que mais pede “vistos gold” (296 este ano), mas a velocidade está a diminuir (348 em 2018) e num ano os chineses ricos a investir nesse regime em Portugal caíram 15%.

Não vêm só para trabalhar, vêm para viver

Ao contrário de outros imigrantes extracomunitários como os cabo-verdianos, a segunda maior comunidade estrangeira em Portugal, os brasileiros não precisam de visto de entrada devido ao acordos entre os países. Assim, é mais fácil contratar brasileiros porque à chegada nunca estão ilegais – os principais setores de empregabilidade são o turismo e serviços associados e a construção civil, mas chegam também para áreas financeiras, imobiliário, turismo qualificado, profissionais liberais, criativos ligados à cultura ou, ainda, à prostituição, atividade sem regime fiscal, mas que não é ilegal no Código Penal português (ilegal é o lenocínio, isto é, o lucro de terceiros que não a/o prostituta/o e o/a cliente).

“Sentimos que é uma comunidade que vem para Portugal não só para trabalhar e mandar remessas para o Brasil, como há décadas, mas uma população que quer contribuir para Portugal, que quer aqui trabalhar, trazer os seus conhecimentos, aplicar-se aqui, investir, pequenos investidores, pequenos empresários, não é só a classe alta que investe”, revela Cíntia de Paulo, presidente da Casa do Brasil, associação sem fins lucrativos sediada em Lisboa. É uma imigração diferente, “veio para ficar, quer contribuir”, tem projetos a médio e longo prazo e planos para fazer vir as famílias. “E sentimos já a chegada de famílias, o que revela um maior planeamento do processo migratório”, conclui.

O desgosto por um presidente que não é de todos

No Brasil agora politicamente virado à direita e a viver a crise económica acentuada pelos gastos megalómanos nos Jogos Olímpicos 2016 — e nas olímpicas derrapagens orçamentais minadas de corrupção —, sente-se o crescente desejo de sair do país. Uma sondagem do instituto Datafolha concluiu que 43% dos adultos tem vontade de imigrar, a média sobe nos jovens: entre os 16 e os 24 anos, 62% deseja sair. O destino favorito dos brasileiros continua a ser a América, onde vive mais de um milhão de brasileiros, mas, demonstra o estudo, os pedidos de cidadania portuguesa são cada vez mais, o mesmo sucedendo no número de vistos para empreendedores, reformados e estudantes.
“A instabilidade social, económica e política do Brasil tem justificado que este seja o país com maior afluxo de novos residentes em Portugal”, disse recentemente o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita. “Foram 28 mil novas Autorizações de Residência para cidadãos brasileiros em 2018 e foram 17 mil só nos primeiros quatro meses de 2019”, sublinhou.

Crimes hediondos são banalidade no Brasil

Numa manhã de Julho de 2016, Júlia, baptizada à nascença Luís Paulo, 28 anos, transexual, foi encontrada morta na valeta de uma rodovia numa zona rural de Ituverava, interior de São Paulo. A última vez que foi vista, era abordada na rua por um BMW branco com três homens, para onde entrou. Foi encontrada seis dias depois, o corpo cheio de injúrias, seminua, com um arame enrolado à volta do pescoço, a decompor-se.

Num entardecer do verão de 2014 do Rio de Janeiro, um pai começou a espancar o filho de oito anos com tanta fúria que quando parou o filho estava morto. Enquanto esmigalhava a criança na cozinha, o homem repetia que ia “fazer dele um homem”. O que fez o menino? Lavava a louça e cantarolava, feliz, a rabear-se num avental.

Em 2015 uma menina trans de 13 anos que era sexualmente explorada pela família, foi encontrada morta em Araraquara, interior de São Paulo. Tinha 13 facadas espalhadas pelo corpo, incluindo no peito, na face e no crânio perfurado. Em 2016, no interior de Angélica, Mato Grosso do Sul, Vanessa, menina trans de 14 anos, recebeu ameaças de morte da própria avó e foi estrangulada por ela.

Em 2016, Luana foi brutalmente agredida por seis homens, pelo menos, na rua onde morava, em Ribeirão Preto, São Paulo, em pleno dia, com muita gente a assistir. A mulher de 34 anos era mãe, preta, pobre e lésbica.

Em 2017, uma mãe confessou ter matado o filho de 19 anos, Itaberlly, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, com várias facadas. A mulher foi ajudada pelo marido, o padrasto de Itaberlly, que incendiou o corpo dela num canavial. O motivo? “Ele levava homens para casa, era um homossexual”, disse sem remorso a mulher à polícia.

Mais recentemente, Matheusa, 21 anos, aluna da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, foi achada morta com o corpo carbonizado nove dias após ter desaparecido, no Morro do 18, Água Santa, zona norte do Rio. O crime foi atribuído ao ódio pela sua identidade de género não binária (aquele que não se identifica com masculino nem feminino).