O Miguel salvou milhares de vidas. Agora é ele que precisa de ajuda

Foto: Paulo Spranger/Global Imagens

Texto de Sofia Teixeira

Para muitos é a primeira vez que veem o mar. Para alguns, a primeira e última, antes de serem engolidos pelas águas do Mediterrâneo às portas da Europa. Miguel Duarte, hoje com 26 anos, salvou muitos da morte certa. Desde 2014 que acompanhava atentamente a crise dos refugiados e migrantes no Mediterrâneo Central.

Impressionava-o o destino destes milhares de pessoas que, após longas, sofridas e mortíferas travessias por terra, partiam das praias da Líbia em botes de borracha lotados, com poucas probabilidades de alcançar a costa europeia. “Acreditava que estava a assistir à grande crise humanitária da minha geração e que era absolutamente necessário fazer alguma coisa para ajudar”, recorda.

No verão de 2016, aos 24 anos, depois de ter terminado o mestrado em Física Teórica, no Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa, juntou-se à ONG alemã Jugend Rettet para fazer resgate a bordo do Iuventa – um antigo navio pesqueiro convertido em navio de resgate marítimo. Nas quatro missões que fez, cada uma de três semanas, participou diretamente no resgate de cerca de quatro mil pessoas. No total, durante o tempo de operação do Iuventa, o barco colaborou no resgate de mais de 14 mil pessoas.

De depois de uma formação em Malta, quando saiu para o mar pela primeira vez, em outubro de 2016, Miguel estava ciente dos riscos que corria: a possibilidade de trauma psicológico, o perigo inerente aos salvamentos no mar, o contacto com a agressiva Polícia Marítima Líbia. “Mas eram inseguranças identificadas e aceitava-as como necessárias para levar a cabo este trabalho. O que nunca pensei foi que pudesse acabar a fazer angariação de fundos para pagar a advogados”, confessa.

Em agosto de 2017, depois de quatro missões no mar e alguns meses em campos de acolhimento de migrantes, veio passar uma temporada em Portugal para o casamento do irmão e para recuperar forças e “arrumar” a cabeça. Houve muita gente para quem chegaram demasiado tarde. “Os resgates são um processo horrivelmente lento. Vemos pessoas a afogarem-se à nossa frente, mas são simplesmente demasiadas para conseguirmos chegar a todos”, conta enquanto desvia os olhos para longe, como se estivesse ainda a perscrutar o mar.

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“É preciso fazer escolhas e tentar que sejam o mais racionais possível. Mas não há escolhas certas.” Também não há escolhas erradas. Mas há experiências que ensombram o sono. Confessa, com algum desconforto, que teve sintomas de stresse pós-traumático no fim da última missão. Tinha pesadelos frequentes e não é difícil perceber porquê. “Recolher um corpo de um bebé de quatro dias da água está para lá de qualquer descrição. São coisas que nunca me vão sair da cabeça”, admite enquanto afasta de novo os olhos em direção a um ponto distante.

Apesar disso, tinha as malas feitas e mais duas missões marítimas agendadas. Sempre aceitou que não podia salvar toda a gente, mas sabia que podia salvar muitos e estava preparado para continuar a fazer um trabalho que acreditava (e acredita) ser necessário. Nunca chegou a partir. No dia 2 de agosto de 2017, o Ministério Público italiano arrestou o Iuventa e acusou a ONG Jugend Rettet de ajuda à imigração ilegal. Um ano mais tarde, Miguel e outros nove tripulantes do barco – setes alemães, um espanhol e uma escocesa – foram formalmente constituídos arguidos.

Pouco sabe do processo e nunca foi interrogado. Mas sabe isto: arriscam uma pena até 20 anos de prisão, além de centenas de milhares de euros em coimas. Os custos judiciais de defesa dos dez tripulantes estão estimados pela equipa de advogados italianos em cerca de 500 mil euros, razão pela qual arrancou com a campanha de crowdfunding “Salvar Vidas não é um crime”, no PPL, no dia 7 de junho com o objetivo de angariar dez mil euros. O público português está a responder ao apelo: oito dias depois, no dia 16, esse valor já tinha sido ultrapassado.

A fazer atualmente o doutoramento em matemática no Técnico, garante que se não tivesse uma investigação criminal “à perna” era no Mediterrâneo, a fazer resgate marítimo, que estaria. “Não é preciso ter estado lá para perceber que aquilo que fazemos não só é necessário, como é o que está certo.” Preocupa-o o seu destino e acredita que o caso – não se sabe quando – acabará por chegar a julgamento, mas preocupa-o também a mensagem que estas investigações passam: que o trabalho humanitário possa ser criminalizado.

“Não cometemos crime nenhum”, garante. “Tudo o que fizemos foi salvar pessoas e fizemo-lo não só ao abrigo da lei internacional [o artigo 98º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar], como em colaboração com o Centro de Coordenação de Resgate Marítimo (MRCC) de Roma, o que torna esta investigação ainda mais absurda.” Miguel acredita que, no fundo, ninguém acha realmente que estas ONG’s tenham feito alguma coisa ilegal. “Esta investigação é apenas uma jogada com um fim político definido: parar o resgate marítimo e estancar o fluxo de pessoas que chegam a Itália.”

A verdade é que, em conjunto com uma série de outras medidas, está a resultar: dos dez barcos de resgate de ONG’s que estavam a operar em 2016, parece restar apenas um. Muitos foram sendo acusados de irregularidades várias – do auxílio à imigração ilegal a acusações de produção de lixo tóxico no mar. As investigações judiciais, o medo das acusações e as dificuldades em obter autorização para atracar em portos italianos fizeram com que, uma por uma, as ONG’s parassem de operar.

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O discurso político, que antes era dúbio, tornou-se claro. Matteo Salvini, Ministro do Interior desde junho de 2018, define os barcos de resgate marítimo das ONG’s como “táxis marítimos” que “ajudam o tráfico ilegal”, razão pela qual “não pisarão nunca mais os portos italianos” carregados de “carne humana a bordo”. A legislação acompanha a dureza das suas palavras: neste mês, foi aprovada uma lei que contempla multas de 50 mil euros para as embarcações que façam resgate e a imediata apreensão em caso de reincidência.

No início deste mês, a porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, (ACNUR) em Itália, Carlotta Sami, deu o alerta: o risco de naufrágio e morte no Mar Mediterrâneo é hoje mais elevado do que nunca, precisamente devido à falta de navios de resgate das ONG’s. Ou se intervém depressa, diz a porta-voz, ou vai ser “um mar de sangue”.

Resta saber se alguém vai estar lá para o testemunhar: porque sem organizações não-governamentais no terreno, não é apenas o resgate que está comprometido, é a própria noção da dimensão da tragédia. O drama continua a desenrolar-se, mas corre o risco de ser esquecido pela opinião pública europeia.

Há uma emblemática e antiga questão filosófica que pergunta: “Se uma árvore cair na floresta e ninguém estiver por perto para a ouvir, será que faz barulho?” A questão moral e ética que a Europa enfrenta neste momento pode colocar-se em termos idênticos: se milhares de pessoas caírem ao mar e ninguém estiver por perto para as ver, será que alguém se importa?