O meio (ambiente) justifica os fins

Francisco Pedro, dinamizador do movimento Aterra (Leonardo Negrão/Global Imagens)

Uma entrada de rompante num jantar do PS, uma invasão pacífica da sede da EDP, um acampamento para travar um furo para exploração de gás fóssil. Há um renovado ativismo ecológico que faz da desobediência civil a principal bandeira - e que até as associações de defesa ambiental aplaudem. Enquanto isso, a consciência ecológica cresce. E até o discurso político já reflete a tendência.

Centro de Congressos de Lisboa, 22 de abril de 2019. António Costa, secretário-geral do PS e primeiro-ministro, preparava-se para falar aos militantes no jantar comemorativo do 46.º aniversário do partido quando o insólito acontece. Às primeiras palavras, há aviões de papel a esvoaçar pela sala. Segundos depois, um jovem de cabelo preso e ar descontraído abeira-se do palco, bloco e folha A4 numa mão, a outra a tentar a puxar o microfone.

Chega em paz, ainda assim. Percebe-se pela saudação a Costa, uma tímida e amigável palmada nas costas. “Lamentamos incomodar a vossa festa. Senhor primeiro-ministro…” é tudo o que se ouve, antes de os seguranças retirarem o intruso da sala. Na plateia, um cartaz completa o puzzle: “Mais aviões? Só a brincar. Precisamos de plano B, não há planeta B”.

Foi cerca de meio minuto, pleno de intenção ainda assim: pedir a suspensão do projeto de expansão da Portela e do novo aeroporto no Montijo. “Era preciso responsabilizar quem toma uma decisão tão grave como a que o primeiro-ministro tomou, de assinar um acordo ainda antes de haver um estudo de impacte ambiental, atropelando tudo o que é legislação e consciência ética e social”, acusa Francisco Pedro, o jovem que interrompeu o jantar dos socialistas e um dos rostos da ATERRA, uma campanha internacional que se bate pela redução do tráfego aéreo.

Formado em Jornalismo, dedicado à agricultura, à música e às letras, organizador do Hitch Fest (festival de boleias), Francisco Pedro despertou para a luta ecológica há cerca de dez anos, mas garante que a causa ambiental sempre fez parte da sua vida. Tanto que tem um longo histórico de viagens pelo Mundo feitas à custa de meios não poluentes, como o barco à vela. É um dos rostos de um renovado ativismo ambiental que tem vindo a dar cartas em Portugal.

Mesmo que resista ao termo “ativista”. “Percebo, mas não me apelido de ativista. Simplesmente sei que é possível viver melhor do que temos vivido”

Mas para perceber a entrada em cena de Francisco Pedro naquele jantar, um tipo de intervenção ainda raro no nosso país, é preciso ver o contexto maior daquela semana e de uma iniciativa inédita por cá. Inspirado num movimento internacional que surgiu em Londres, no ano passado, o Extinction Rebellion advoga a ação direta não violenta e a desobediência civil como formas de contestação ao “colapso ambiental”.

Por isso, de 15 a 22 de abril, o país assistiu a uma semana de insurreição pelo clima, com várias ações que pretenderam dar visibilidade ao desagrado face à forma como tem sido tratado o planeta. Entre a tomada de posição no jantar do PS e a “invasão” a um canal de televisão, nem a sede da EDP foi poupada.

“No dia anterior, enviámos um comunicado a dizer que íamos invadir o Ministério da Energia. Ora, em Portugal, o Ministério da Energia é a EDP, visto que é a EDP que define as políticas energéticas e as centrais em funcionamento. Basta ver que a central a carvão de Sines é a instalação que representa a maior fonte de emissão de CO2 em Portugal, sendo responsável por 12% do total das emissões”, aponta Henrique Frazão, um dos rostos do movimento Extinction Rebellion em Portugal.

Henrique Frazão, um dos dinamizadores do movimento Extinction Rebellion (Gerardo Santos / Global Imagens)

Fotógrafo freelancer, Henrique, 32 anos, abraçou o ativismo ambiental há apenas nove meses por perceber “a emergência em que estamos”. Ao ponto de ter alterado drasticamente a vida profissional para conseguir dedicar “pelo menos metade do horário laboral” à causa ambiental. Os riscos assim o justificam.

“Mesmo que todos os países cumprissem o Acordo de Paris, o que é altamente improvável, isso não garantia que ficássemos abaixo do aumento de temperatura de dois graus até 2100, uma barreira considerada irreversível”, alerta. Por isso, mas não só, Henrique garante que o Extinction Rebellion não vai parar por aqui, não pondo de parte “a escalada de confrontação” que, à imagem do que aconteceu em Londres, por exemplo, possa redundar em detenções.

Até porque, sublinha, a ação governamental é a única que pode inverter o destino do planeta. “Por muito que sejamos sustentáveis e modifiquemos atitudes individuais, a verdade é que são sobretudo as decisões que nos ultrapassam que definem as emissões do país. Claro que mudarmos o nosso estilo de vida é importante. Não acredito é que vá adiantar se as pessoas não se mobilizarem para movimentos sociais de confronto com as autoridades do país”, enfatiza.

A desobediência civil como arma

Ações como as da campanha ATERRA, do movimento Extinction Rebellion ou do grupo Climáximo (já lá vamos) trazem à tona uma renovada força do ativismo ambiental em Portugal: mais jovem, mais acutilante, potencialmente mais radical, seguramente sem pejo em recorrer às ações de desobediência civil e à confrontação para marcar posição e travar as alterações climáticas e a sobre-exploração de recursos. Um empenho amplamente elogiado.

“Culturalmente, Portugal tem uma falta de ação cívica grande. Este ativismo recente talvez nos empurre para uma situação em que as medidas passem a ser tomadas à escala necessária para resolver o problema”, refere Jorge Palmeirim, presidente da Liga para a Proteção da Natureza, a associação de defesa ambiental mais antiga da Península Ibérica.

Jorge Palmeirim, presidente da Liga para a Proteção da Natureza (João Silva/ Global Imagens)

Foi precisamente com a intenção de abanar a luta ambiental em Portugal que nasceu, em 2015, o Climáximo, um “grupo horizontal aberto e autofinanciado”, que envolve entre 50 e 60 pessoas. A explicação é de Sinan Eden, um dos rostos do grupo. “Na altura, não havia movimentos de rua em relação às alterações climáticas.

Neste momento, já existem em Portugal marchas mundiais pelo clima. A primeira foi em 2015, na altura do Acordo de Paris [tratado no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima]”, orgulha-se o ativista de origem turca, de 33 anos, residente em Lisboa há oito anos e entretanto naturalizado português.

Rejeitando a designação de grupo radical (“radicais, para nós, são as pessoas que compram ações da indústria do carvão e dos combustíveis fósseis”), Sinan advoga que o Climáximo trouxe “novidades à paisagem política portuguesa”. “Primeiro porque temos uma filosofia anticapitalista, tratando o assunto como um problema de justiça social. Há os responsáveis e os afetados. Depois, pela introdução e normalização do uso de estratégias de desobediência civil. Ações diretas pacíficas, que não deixam o sistema continuar. Neste aspeto, podemos ser considerados radicais. Mas não temos ações violentas.”

Sinan Eden, um dos rostos do movimento Climáximo (Gerardo Santos / Global Imagens)

Entre as várias ações levadas a cabo pelo Climáximo, destaque para a luta contra a exploração do petróleo e do gás fóssil. “Antes havia em Portugal 15 contratos de exploração de gás e petróleo. Atualmente só há dois, na Batalha e em Pombal. Por exemplo, em Aljezur [em 2018], lutámos, com outros movimentos e associações, para que o furo parasse. E acabou suspenso. Agora, de 17 a 21 [de julho], vamos fazer um acampamento de ação em Bajouca, no distrito de Leiria, coordenado com a população local, que se chama ‘Camp-in-gás’. Vamos entrar no terreno onde a empresa quer fazer o furo”, pormenoriza Sinan, a propósito de uma ação que conta com o apoio de entidades como o Climate Save Movement e o Movimento do Centro para a Exploração do Gás.

Aliás, o Climáximo nunca empreende este tipo de ações de forma solitária. “No fundo, somos uma plataforma para muitas outras organizações se juntarem”, completa Sinan. O ativista acrescenta que é nesta lógica que se entende o apoio dado às greves climáticas estudantis, com paralisações em março e maio. “Fomos às escolas falar de ciência climática, políticas energéticas, explicar porque é que fazia sentido os jovens faltarem às aulas por este protesto.”

De resto, as greves contaram com o apoio de outras associações e movimentos de defesa ambiental. O resultado foi uma mobilização global, em acontecimentos que marcaram o país. Estima-se que, em março como em maio, tenha havido perto de 20 mil portugueses, jovens sobretudo, a sair às ruas. Um momento salutar para o ativismo ambiental em Portugal.

Nuno Sequeira, vice-presidente da Quercus (Filipe Gingão/Global Imagens)

“Estes movimentos jovens são muito importantes. Por aquilo que temos visto, há uma ação organizada, que está de forma genuína e autêntica a lutar pelo interesse do planeta”, aplaude Nuno Sequeira, vice-presidente da Quercus. “Nota-se nos jovens uma velocidade maior de implementação da consciência ambiental. Não estão só a ser agentes passivos, a absorver a informação, mas começam a ter atitudes de participação, a entrar nesta luta que, graças às novas tecnologias, é cada vez mais mundial.”

Matilde Alvim, 17 anos, de Palmela, é um dos rostos desse movimento jovem “apartidário” que visa convencer quem manda a “fazer do combate às alterações políticas a prioridade governamental”. Vocacionada para as questões ambientais desde pequena, Matilde esteve, com outros colegas, na génese das greves.“Eu já acompanhava o que se passava lá fora, com a Greta [Thunberg] e tudo. Depois, a dada altura, uma amiga contactou-me, a dizer que também devíamos fazer uma greve cá. A partir daí, entrámos em contacto com uma amiga do Porto, outra de Coimbra e criámos um grupo no WhatsApp, com cerca de 15 pessoas, de vários pontos do país.”

Matilde Alvim, uma das dinamizadoras das greves climáticas estudantis (João Silva/Global Imagens)

Entretanto, o movimento cresceu de tal forma que se foram criando núcleos locais e pontes entre estes para que continue a haver ações concertadas a nível nacional. A próxima, a terceira greve organizada por este movimento, decorrerá a 27 de setembro, desta vez com um upgrade. “Nas greves anteriores, já tivemos o apoio de outros movimentos. Agora, estamos também a envolver os sindicatos. É uma forma de mostrar que este protesto abrange todos os setores da sociedade.”

Uma consciência crescente

É também a prova de que o país vai acordando para uma problemática que, durante décadas, foi quase uma “preocupação de nicho”. “O que é diferente agora, em relação ao passado, é que a sociedade como um todo se está a aperceber da realidade que já vem sendo antecipada pelas associações de defesa ambiental e pelo setor académico há quase 30 anos. Neste momento, a adesão é muito maior. Nunca tivemos manifestações pela causa ambiental com tanta gente”, destaca Francisco Ferreira, um histórico do ativismo ambiental em Portugal.

Em 2016, depois de já não se rever na Quercus, criou a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, que defende zero emissões, zero desperdício, zero consumo insustentável.

Francisco Ferreira, fundador e presidente da ZERO (Paulo Spranger/Global Imagens)

O caminho, esse, começou bem lá atrás. Se a Liga para a Proteção da Natureza (LPN), criada em 1948, até já é bem anterior, é no pós-25 de Abril que os temas ecológicos começam a ganhar forma. A luta contra a construção da central nuclear de Ferrel, concelho de Peniche, no final da década de 1970, o aparecimento do Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV) em 1982, a fundação da Quercus em 85 – inicialmente vocacionada para as áreas da biodiversidade, conservação da natureza e educação ambiental e hoje com um trabalho que vai das alterações climáticas à energia, passando pelos oceanos, a agricultura sustentável e a qualidade do ar – e o aparecimento do GEOTA, Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente, em 86, foram alguns dos momentos marcantes desse período.

Com os anos 1990, o ativismo ambiental acentua-se

É a década da luta contra as lixeiras e os danos ambientais causados por grandes obras viabilizadas pelos fundos comunitários: as barragens, as autoestradas, a Ponte Vasco da Gama. Jorge Palmeirim, presidente da LPN, um dos rostos principais dessa luta, fala “numa das maiores derrotas e uma das maiores vitórias do ativismo ambiental em Portugal.

Derrota porque a ponte acabou por ser construída e vitória porque este caso serviu para mostrar que a Comissão Europeia [financiadora da obra] não estava a ter cuidado com os projetos que apoiava. Deu muita força às Organizações Não Governamentais em Portugal e mesmo a nível europeu”, assegura, estabelecendo uma analogia entre esse tempo e o momento que hoje se vive. “O estímulo para esse movimento foi distinto, porque as ONG foram empurradas pelo que estava a acontecer. Mas está-se a criar uma nova forma de luta, potencialmente eficaz.”

Para isso contribuem também as redes sociais, fundamentais, por exemplo, para facilitar a fluidez das comunicações entre os jovens que dinamizaram as greves climáticas estudantis. Mas não só. Arlindo Marques, 53 anos, que o diga. Natural de Ortiga, concelho de Mação, nascido e criado junto ao Tejo, apercebeu-se, no final de 2014, que as águas do rio estavam a ficar cor de vinho.

Arlindo Marques, o “guardião do Tejo” (Pedro Martins/ Global Imagens)

Sem provas quanto aos responsáveis, virou-se para o YouTube. Foi partilhando vídeos, onde era bem visível a poluição, que depressa ganharam popularidade. “Ao fim de dois dias, já tinham 300 mil visualizações.” O interesse crescia à medida que a situação se agudizava: o peixe morto, a poluição que não parava de aumentar, a dada altura até um manto de pedras a cobrir o rio de uma ponta à outra, junto à central termoelétrica do Pego (para combater a descida do caudal do rio, supõe-se).

Pelo meio, até foi pedida uma avaliação para aferir os principais responsáveis pela poluição, mas a situação continuou a escalar até ao início de 2018, quando “um mar de espuma de meio metro de altura abriu os telejornais”. Só aí é que a Celtejo foi obrigada a reduzir em 50% a poluição lançada no rio. “Agora o rio está melhor, mas ficou doente, com mazelas, as próprias pedras têm uma coisa preta agarrada”, lamenta “o guardião do Tejo”, exortando todos os cidadãos a denunciar situações como esta.

O discurso político: consciente ou oportunista?

Enquanto isso, o crescendo das preocupações ambientais traduz-se já no espetro político. As recentes eleições europeias, em que os candidatos que mais se centraram nas questões ecológicas (BE e PAN) foram os que mais subiram no número de votos em comparação com as eleições anteriores, constituem prova.

No rescaldo do sufrágio, também o primeiro-ministro, António Costa, e a líder do CDS-PP, Assunção Cristas, fizeram do ambiente um tema central no discurso político. O secretário-geral do Partido Socialista elegeu mesmo “o combate às alterações climáticas” como um dos eixos centrais do programa eleitoral do PS para as próximas legislativas, que será aprovado em Convenção Nacional agendada para 20 de julho.

De resto, a evocação do “combate às alterações climáticas” já tinha sido recorrente ao longo da campanha para as eleições europeias, tanto por Costa como pelo cabeça-de-lista Pedro Marques, mesmo sem grandes propostas concretas. Também Assunção Cristas tem enfatizado a questão da “mitigação das alterações climáticas”. Numa conferência no Porto, a 31 de maio, a líder do CDS-PP defendeu mesmo que “Portugal deve ambicionar ser líder na agenda global azul”.

André Silva, líder do PAN, partido que garantiu a eleição do primeiro deputado em 2015 e que desde então tem vindo a ganhar força nas urnas, admite que “os partidos políticos perceberam que as questões ambientais são importantes, na medida em que começaram a ter expressão eleitoral”, mas não se coíbe de apontar o dedo a “discursos demasiado abertos e redondos em torno de chavões ambientalistas”, que carecem de “ações programáticas concretas”.

E aponta exemplos: “Se nós enquanto país queremos caminhar para a neutralidade carbónica, não podemos permitir a exploração de hidrocarbonetos do nosso país. Além de que há uma permissividade total em relação à matéria celulosa, por exemplo. Esta incoerência revela que não há um compromisso verdadeiro com a proteção ambiental”.

Também Manuela Cunha, membro do Conselho Nacional de “Os Verdes”, deixa críticas ao que considera ser um discurso “meramente eleitoral e oportunista”

“Os partidos integraram essa agenda, contradizendo-se. Temos o caso do Tua, o exemplo mais ridículo e revoltante que há neste país. O Tua foi ao longo dos séculos uma obra equilibrada do ponto de vista ambiental. Mas a barragem veio assassinar todos os ecossistemas. Depois, para fingir que isso não aconteceu, criou-se o Parque Natural do Vale do Tua. É uma perfeita fantochada. Há muitas contradições neste discurso supostamente ambientalista”.

André Freire, politólogo, considera mesmo que não tem havido, a este nível, grandes mudanças. “Pode haver um aumento da presença do tema nos media e nos discursos partidários, mas depois não vejo grande polarização, partidos com diferentes posições que estejam dispostos a assumir os ‘trade-offs’ que há sempre numa discussão política. É tudo um bocado gasoso. Diz-se umas coisas redondas porque toda a gente acha que sim, mas ninguém quer assumir os custos.”

É também para eles que Henrique Frazão, um dos ativistas do movimento Extinction Rebellion, fala, quando resume o desafio que está para vir. “Os cientistas já andam a avisar para os riscos que corremos há 30 anos. Agora, dizem que temos dez anos para alterar tudo drasticamente. Gosto de acreditar que vamos conseguir fazê-lo, mas…”.