Texto de Sofia Teixeira
Um doente entra na consulta com o médico de família. Está há três dias com uma gripe e quer tomar um antibiótico para melhorar mais depressa. Um segundo paciente que se dirige à consulta está preocupado: toma um comprimido diariamente e entende que é melhor fazer um protetor gástrico para “poupar” o estômago. E um terceiro paciente, combalido, vai à consulta porque lhe apareceu uma dor de costas, embora sem outros sinais de alarme, e quer fazer uma TAC para perceber a origem da dor.
Estes são três dos cenários, causados por mitos e desinformação, com que o médico de família Bruno Heleno lida mais frequentemente em consulta. Em princípio, estes três pacientes, que na realidade representam milhões, sairão do centro de saúde sem o que desejam, depois de o médico lhes ter explicado que não faz sentido.
“Os antibióticos são medicamentos que atuam em bactérias, mas não têm qualquer efeito nos vírus; são poucos os medicamentos que ‘atacam’ o estômago e são poucas as pessoas que precisam de fazer prevenção de úlceras; e sabemos que, no caso de uma dor de costas recente, estes exames – raio-X e TAC – não fazem as pessoas sentirem-se melhor, implicam exposição a radiação e, em muitas pessoas saudáveis, existem alterações na coluna que não causam dor”, explica o clínico.
Nem sempre é fácil fazer o paciente compreender que estas são decisões tomadas no seu melhor interesse, suportadas na medicina baseada na evidência, mas o especialista em Medicina Geral e Familiar e professor de Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa defende que o médico de família tem um trunfo na altura de dizer “não”: a relação de proximidade com o paciente. Negar estes pedidos é mais difícil quando ela não existe porque, caso contrário, a pessoa “pode recear que seja por uma questão de contenção de custos. Se houver uma relação de proximidade e confiança, esse receio não existe”.
Já num serviço de urgência, essa vantagem desaparece. Luís Duarte Costa, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna e Coordenador do Atendimento Médico Permanente do Hospital da Luz, em Lisboa, defende que, sendo certo que a desinformação do paciente dificulta sempre o trabalho do médico, seja na urgência, na consulta ou no internamento, na urgência “os mitos são mais difíceis de ultrapassar”.
“Porque não há uma relação prévia, porque a situação clínica é aguda – logo, potencialmente mais grave – e porque o tempo desta consulta é limitado, impedindo a devida explicação e ‘desmontagem’ dos argumentos do doente”, ressalva. O especialista em Medicina Interna refere que os pacientes tendem a acreditar mais nas máquinas do que nos médicos, os seja, um dos grandes mitos é que os “exames” identificam qualquer doença e são isentos de falhas. “É falso: a maioria das patologias diagnostica-se com uma boa anamnese e uma observação cuidadosa.”
“A maioria das patologias diagnostica-se com uma boa anamnese e uma observação cuidadosa”
Luís Duarte Costa
vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna
Mas o paciente precisa, essencialmente, de tempo para ser ouvido, assim como o médico precisa de tempo para ouvir e para explicar. As mudanças na relação entre médico e paciente nos últimos anos determinaram o fim do paradigma do médico paternalista e a passagem ao modelo do “Patient Empowerment”, ou seja, do doente que deve estar capacitado para ter direito a fazer escolhas sobre a sua saúde. Uma mudança que Luís Duarte Costa entende ser muito positiva, mas que “aumenta a necessidade de explicar os mecanismos das doenças, a interpretação de queixas e sinais, o diagnóstico diferencial e os exames disponíveis”. E tudo isto leva tempo. “Esse é o principal problema.”
Igual preocupação tem Américo Varela: “Atualmente, o tempo de consulta de um doente crónico com o seu médico de família é de 20 minutos, quando devia ser de 30”. O médico de família sustenta que só assim o profissional consegue fazer a parte que lhe compete, ou seja, “garantir que está a ser compreendido pelo doente, usar linguagem simples e insistir na explicação se necessário, adaptar a informação a cada doente para que ele participe no processo de diagnóstico e tratamento, estimular o doente a falar, questioná-lo para entender as suas preocupações e expectativas”.
“Atualmente, o tempo de consulta de um doente crónico com o seu médico de família é de 20 minutos, quando devia ser de 30”
Américo Varela
médico de família
Tempo que, defende, não é perdido, antes torna os serviços mais eficientes: com consultas mais prolongadas é possível combater crenças, mitos e aumentar a literacia em saúde, o que resulta numa diminuição dos níveis de utilização desnecessária dos serviços.
Literacia, precisa-se
A Organização Mundial da Saúde define literacia em saúde como o conjunto de “competências cognitivas e sociais e a capacidade dos indivíduos para acederem à compreensão e ao uso da informação, de forma a promover e manter uma boa saúde”. Isto inclui competências relacionadas com a prevenção das doenças, mas também competências enquanto paciente, para se conseguir agir como um parceiro ativo dos profissionais de saúde.
Mas um estudo sobre literacia em saúde, de 2016, da Fundação Calouste Gulbenkian, chega a resultados pouco animadores: 11% da população tem um nível de literacia “inadequado” e 38% um nível considerado “problemático”, valores um pouco abaixo das médias europeias.
Também um artigo recente, publicado em 2017 na “Acta Médica Portuguesa”, e que faz parte da tese de doutoramento que a médica Dagmara Paiva apresentou na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em dezembro último, pinta um quadro semelhante, se não pior.
Estima-se que 73% da população portuguesa entre os 16 e os 79 anos não sabe interpretar e responder corretamente a questões simples sobre saúde: por exemplo, determinar através da leitura de um rótulo quantas calorias ingere se consumir um determinado produto. O que Dagmara Paiva e os outros investigadores também concluem, sem surpresa, é que o cenário piora com a idade: entre os 65 e 79 anos, o nível de iliteracia alcança os 94%.
Apesar de os idosos terem tendência para confiar mais no médico, nem isso os salva de cometer erros motivados pela baixa literacia que podem ser muito prejudiciais para a sua saúde. “Hoje vivemos uma realidade grave, relativamente recente: pessoas que, sem darem conta, tomam a terapêutica a dobrar”, alerta Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF).
Com o advento dos genéricos, multiplicaram-se os medicamentos iguais com embalagens diferentes. Por outro lado, a prescrição é feita por substância ativa, o que significa que, na farmácia, de uma vez pode ser dispensada uma marca e, na vez seguinte, outra. “Muita gente não percebe isso e acaba a tomar os dois, duplicando a terapêutica prescrita pelo médico. É uma realidade para a qual temos de estar mais atentos hoje.”
Já com os mais jovens, os problemas são outros: apesar de terem globalmente um nível de instrução superior e mais literacia, tanto em geral como no campo da saúde, procuram tudo na Internet, muitas vezes usando fontes pouco fidedignas ou tendo escassas bases para perceber o que está escrito.
“O desconhecimento dificulta a interpretação. No ‘Dr. Google’ tudo é grave e tem um risco inaceitável. O que está escrito até pode estar correto, mas na maioria dos casos está fora de contexto ou mal interpretado”, avisa o vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, Luís Duarte Costa.
E exemplifica: “Se alguém pesquisar ‘febre’ e ‘cefaleia’, pode encontrar como hipótese de diagnóstico uma meningite. Isso é verdade, mas antes dessas hipóteses, será mais frequentemente uma simples sinusite ou infeção viral. Em vez de se aconselharem com o médico assistente, muitos correm para um serviço de urgência com esse receio inultrapassável”.
O resultado está à vista: de acordo com os dados do portal da Transparência do SNS, analisados pela agência Lusa, a cerca de 40% dos utentes atendidos nas urgências do Serviço Nacional de Saúde em 2018 foi atribuída pulseira verde ou azul, indicando que eram pouco ou nada urgentes e que poderiam ter recorrido aos serviços de saúde primários.
O grande mito do check-up anual
“Às vezes é difícil. É muito difícil. Pode ser mais fácil fazer o pedido solicitado do que negar e explicar, mas não nos podemos desresponsabilizar e satisfazer os ‘caprichos’ de forma leviana”, declara Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), em relação aos pedidos de check-up.
Porque os portugueses levam muitas vezes esta ideia fixa quando se dirigem à consulta com o médico de família: a necessidade de fazerem exames de rotina ao sangue e à urina com uma periodicidade anual, apesar de as indicações do Colégio da Especialidade de Medicina Geral e Familiar da Ordem dos Médicos e do Colégio da Especialidade de Saúde Pública não os recomendarem a adultos assintomáticos por não reduzirem a morbilidade ou a mortalidade.
“Fazemos exames complementares por três razões”, explica Rui Nogueira. “Quando temos dúvidas em relação a um diagnóstico e usamos os exames para confirmar, ou não, um raciocínio; quando já existe um diagnóstico e é necessário monitorizar a doença ou a medicação; ou quando há grande concentração de casuística, ou seja, sabemos que há muitos casos de uma determinada doença em pessoas com aquele perfil ou naquele grupo etário, como acontece com o cancro do cólon, pelo que fazemos um exame dirigido a um grupo populacional e a uma doença específica. Tirando estes casos, os exames de diagnóstico não têm valor nenhum. É como tentar acertar no totoloto: a probabilidade de acertarmos é mínima”, explica o dirigente da APMGF.
“Primum non nocere.” O princípio hipocrático que significa “primeiro, não cause dano”, também conhecido como princípio da não-maleficência, continua a ser um dos mandamentos éticos do profissional de saúde. Simplificando, significa que uma das responsabilidades primeiras do médico, a par de diagnosticar e tratar, é evitar causar danos desnecessários ao paciente.
“A maioria das pessoas sabe que qualquer medicamento eficaz pode ter efeitos secundários, mas não estão habituadas a pensar que os efeitos secundários também acontecem noutras atividades de saúde, como por exemplo os exames”
Bruno Heleno
médico de família
E, apesar de haver ainda uma ideia generalizada que os exames de diagnóstico são inócuos, isso não é verdadeiro. “A maioria das pessoas sabe que qualquer medicamento eficaz pode ter efeitos secundários, mas não estão habituadas a pensar que os efeitos secundários também acontecem noutras atividades de saúde, como por exemplo os exames”, realça Bruno Heleno. Por isso, é preciso ter a certeza que os benefícios ultrapassam os riscos.
Por essa razão, muitos dos habituais rastreios têm sido postos em causa e passaram a ser desaconselhados de forma generalizada, como é o caso do PSA (Antígeno Prostático Específico), para detetar o cancro da próstata. O que os estudos têm mostrado é que o PSA já prejudicou mais homens do que aqueles que beneficiou.
“Não só não se consegue uma diminuição da mortalidade ao rastrear com PSA como, pelo caminho, fazemos mal a uma série de pessoas”, explica Rui Nogueira. Na realidade, há provas de que cem a 200 em mil rastreados terão um falso positivo e a maioria deles fará uma biópsia por essa razão. “Muitos pacientes acabam por ser submetidos a exames invasivos ou mesmo a tratamento desnecessário. Interferimos na vida e no bem-estar das pessoas.”
Por isso, se as suas queixas em relação ao seu médico continuam a ser, “nem me mandou fazer análises”, ou “não me receitou nada”, talvez esteja na altura de as repensar.