Texto de Sara Dias Oliveira | Fotografias Maria João Gala/GI
São nove da manhã e Ermelinda Caçador, de 91 anos, termina o pequeno-almoço e toma os comprimidos na sala de refeições do Centro Comunitário da Gafanha do Carmo, Ílhavo, com vista para o pátio cheio de sol que também tem entrada para a sala de convívio onde a música está alta e a televisão sem som.
Sofia Nunes, gerontóloga, entra e avisa Ermelinda: “Hoje vamos à América, mulher”. “À América? E vamos ficar onde?”, pergunta-lhe. É surpresa e Sofia não dá mais satisfações.
Uma hora depois, Ermelinda, sem olho direito e sem um osso na cara devido a uma doença que a consome há 24 anos, está toda aperaltada. Lenço ao pescoço, chapéu na cabeça, casaco de lã até aos joelhos, calças pretas com bordados discretos. Se é para ir, ela vai, sem saber que o seu sonho de ir à América está prestes a ser realizado numa experiência de realidade virtual no American Corner MediaLab da Universidade de Aveiro.
Vai aterrar em New Jersey, onde mora o neto Pedro, no cockpit de um avião, e passear de carro sem sair da cadeira de rodas. Colocam-lhe os óculos virtuais e Ermelinda diz o que vê: “Estou a ver uma luz e um ponto verde”. Sofia brinca: “Não siga a luz, mulher, ainda não é a altura”. Risota geral. Ermelinda ainda vai a Times Square dar uma voltinha a pé. Sem nervosismo, sem sair do lugar. “Mas não trouxe os meus brincos, nem nada”, queixa-se.
Ermelinda é uma estrela, participa nos vídeos que se tornam virais na Internet, vai aos programas de televisão, já andou de avioneta, esteve no Parlamento Europeu em Bruxelas, foi ao festival de heavy metal de Vagos no verão passado, assistiu a jogos de F. C. Porto, Benfica e Sporting, tem um autógrafo de Agir no espelho do quarto. Está há cinco anos no lar e, pouco tempo depois de entrar, largou o carregado luto das roupas e do lenço que lhe tapava a cabeça.
Passou a vestir cores claras, a pintar as unhas, ficou vaidosa, não se faz rogada a pedir opiniões sobre se os sapatos condizem com a roupa. A vida foi dura. “Quando era nova, trabalhava na terra, a certa altura, comecei a vender o que semeava.” Feijão, ervilha, repolho, batata. Tudo o que a terra era capaz de aguentar. “Não sei ler, andava na praça, mas a minha cabeça fazia as contas. Trabalhei muito e o corpo sempre a doer-me. Deitava-me de barriga para o ar para descansar a coluna.” Agora os tempos são outros.
Está quase na hora de partir para a Universidade de Aveiro. Na sala de convívio, as paredes estão decoradas com fotografias dos utentes em várias poses e dos convidados que por lá passaram. A música não pára e Ângelo Valente, animador sociocultural, também não.
O dia ainda agora começou e vai ser piada atrás de piada, beijo aqui, beijo ali, mais uma foto para o Facebook com uma utente que chega pela primeira vez – com o comentário de que a Marylin Monroe não morreu porque está ali a seu lado -, mais uma voltinha na cadeira de rodas elétrica com curvas feitas em duas rodas, mais uma canção a bombar na coluna de som, e, quem sabe, mais um vídeo a magicar na cabeça. Ali só há horas marcadas para as refeições, o resto é completo improviso.
Foi o que aconteceu com a nova versão de Conan Osíris, música adaptada, interpretações à altura e, em cerca de um mês, mais de 250 mil visualizações no Facebook, milhares de partilhas, milhões de espectadores. Maria Vida é Conan no vídeo, cantora de serviço, com uma ligadura na cabeça, duas colheres na testa e espumadeiras a saírem-lhe pela cara.
Hoje não está nos seus dias, não dá conversa, doem-lhe as pernas e avisa que não vai andar de um lado para o outro. Ainda assim, vai à realidade virtual dar uma voltinha por Paris, junto à Torre Eiffel. “Ando muito à rasca das pernas”, lamenta-se. Tem 68 anos, é da Gafanha da Nazaré, frequenta o centro de dia para “distrair a cabeça.”
Avelino Mateus, o Lino de Aveiro, o menino que aos oito anos acartava massa e mais tarde se tornou mestre-de-obras, é o bailarino de Conan, casaco de pelo, peito à mostra. “Correu muito bem, foi tudo bem feito. Toda a gente se riu à minha custa”, confessa, sem se importar. Na juventude não perdia um bailarico. Tem 79 anos, é viúvo, anda sempre atrás do sol que lhe aquece a pele já tostada, e é um cavalheiro. Ajuda as colegas em cadeiras de rodas, coloca-as nos sítios às mesas das refeições. “A minha casa é aqui, onde estou, e sou muito bem estimado.” E não é muita confusão? “Aguenta-se bem. A música, o barulho, as brincadeiras… não fazem diferença.”
Há quem queira sossego. Arminda Catarino, 86 anos, há dois anos no lar, observa o que se passa, não participa nos vídeos, ora está na sala de convívio, ora na outra sala mais tranquila. “Não tenho jeito para essas coisas e já estou velha.” Mas vai deitando o olho ao que se passa e ri-se com o que vê. “Se não fossem as minhas pernas, cantava e bailava. Agora é um dia de cama, um dia cá em baixo.”
A mudança foi difícil. “Custou-me muito deixar a minha casa porque não conhecia ninguém.” Lá foi metendo conversa, fez amigas, até reconheceu o senhor João Fernando que era cliente da mercearia com vinhos e petiscos que tinha na Costa Nova e a que se agarrou quando ficou viúva, aos 42 anos, com cinco filhos. Deitava-se às quatro da manhã e às seis estava a pé para ter pão fresco, fazia cartuchos de cinco tostões de açúcar e café. “Tinha muitos fregueses e gostavam de mim, todos os homens me guardavam respeito, sempre fui muito estimada pelo povo.”
Palmira Simões, 88 anos, ar de menina, instala-se na sala de convívio. Faz-se de difícil, diz sempre que não, que não a chateiem, mas lá vai entrando nos vídeos que são um sucesso na Internet, muitos deles virais e motivo de convites de programas de televisão e notícias em muito lado. “Eles é que me põem lá na TV”, atira com sorriso maroto, sem querer dar muita corda à conversa.
Chegou ao lar há sete anos e já cumpriu o sonho de voltar à Figueira da Foz, onde casou. Convite da Câmara da Figueira, motorista à porta, almoço de categoria, gelado na esplanada, a praia pelos olhos dentro, areia nos pés. A televisão continua sem som. Ouve-se Abba, Queen, Cyndi Lauper, sambas e algumas baladas brasileiras.
“É uma casa, não é uma instituição”
É hora de partir para a Universidade de Aveiro. A rampa elevatória para as cadeiras de rodas entra em ação na carrinha estampada com desenhos malucos e com o aviso “Perigo!! Gente feliz aqui”. Os dois cães da casa, Viana, a cadela-guia reformada, e Vadio, cão mais pequeno, saltam para o veículo. Tudo a postos. João Fernando Oliveira, de 63 anos, vai experimentar a montanha-russa na realidade virtual com o Vadio ao colo e Ângelo a agitar-lhe a cadeira de rodas. “É lindo, estou na ponte,…é a escalada, a curva, aí maravilha, a cadeira até abana”, vai contando. Mais risota.
João aprecia os dias que nunca são iguais. “Não é um lar, é um hotel sénior.” Onde há animação, lá está. “É uma brincadeira, é uma paródia. E parar é morrer.” É o poeta da casa com escritório improvisado no salão de cabeleireiro, computador sempre à disposição para quando as palavras querem sair. “Escrevo, leio, participo nos vídeos. Sou eu e o Quim Barreiros. Vou a todas e sou feliz.”
Há seis anos, sofreu um AVC, com seis meses de idade teve paralisia cerebral, nunca desistiu de aprender e a mãe nunca baixou os braços para que andasse na escola. Contou-o numa palestra no balneário do Beira-Mar antes de um jogo importante. Falou do dia em que uma professora disse à mãe que os deficientes não podiam aprender e que tinham de ficar em casa.
“Quem não estava boa da cabeça era a professora.” João fez o Secundário, trabalhou 37 anos como administrativo da Junta de Freguesia da Gafanha do Carmo, até o corpo dar de si e ficar paralisado da parte esquerda. “Vocês são capazes”, disse aos jogadores. E a equipa ganhou 4-2.
João guarda ao peito, numa carteira semitransparente, um relógio, um pente, uma caneta, um porta-moedas e um calendário do Benfica, que lhe foi oferecido pelo antigo professor primário Guilhermino, que todos os anos o visita. “Foi o meu treinador, sou bom de letra, e cheguei à meta.” João é um homem tranquilo, observador, mas quando é para a galhofa, é contar com ele. “O que é um piolho na cabeça de um careca?” Ninguém sabe. “É um sem-abrigo.”
Faltam 20 minutos para as 11 da manhã e Ângelo já atendeu cinco chamadas de pedidos de visitas, conferências. “É assim todos os dias, já estamos a marcar visitas para maio.” Em preparação está a quarta edição do Futuridade para 22 de junho na Casa da Cultura de Ílhavo. A ideia é desafiar 12 personalidades de várias áreas para imaginarem o futuro a 50 anos. Pedro Abrunhosa, Catarina Martins, Nuno Gomes e Joana Marques foram alguns dos convidados do ano passado. Há algumas pessoas pensadas, mas Ângelo não abre o jogo.
É preciso montar o vídeo da experiência da realidade virtual. Por volta das três da tarde já está no Facebook. Depois, o último grito da Internet, #trashtag, trash challenge, para um planeta mais limpo. Duas carrinhas prontas, cães novamente a bordo, uma dúzia de utentes, uma mata ali perto com lixo de espécies variadas, uma fotografia antes da limpeza, outra depois, regresso ao lar, paragem num caixote do lixo, imagens do antes e depois no Facebook. “É um desafio ambiental. Como chegamos a muita gente, é uma maneira de sensibilizarmos quem nos segue”, salienta Ângelo. “Comunicamos muito, a comunicação está em quase tudo”, acrescenta.
Tudo é pretexto para a brincadeira e tudo é pretexto para conversas sérias. Fala-se da atualidade, de ataques terroristas, no envelhecimento das pessoas LGBTI, do que se quiser. Fala-se da morte também. “Para desmistificar a morte e valorizar a vida. Vamos todos morrer, vamos ser felizes agora”, explica Sofia, que revela que, quando passam por um cemitério, a piada vem ao de cima: “Como é que é? Alguém fica já aqui ou é só para a próxima?”.
Quando alguém morre no lar, dói bastante. Quem quiser vai ao velório e ao funeral. E faz-se sempre uma homenagem com recordações de momentos felizes. “Ao recordarmos as histórias mais engraçadas, acabamos por rir e quase nos esquecemos dessa coisa pesada de que não vamos estar mais com essa pessoa.”
Em junho de 2015, o centro aderiu ao projeto internacional “Antes de morrer quero” com os desejos dos idosos escritos numa lousa e fotografias na Internet. Os telefonemas não pararam de cair com convites para cumprir sonhos, desde voar, comer tripas de vinha d’alho, conhecer Marco Paulo ou Pinto de Costa.
O Centro Comunitário da Gafanha do Carmo abriu a 4 de outubro de 2010, edifício construído de raiz, por fora parece mais pequeno do que é por dentro, quartos individuais, duplos e alguns triplos, luz a entrar por todo o lado. Ângelo chegou no início, Sofia seis meses depois. Formam uma equipa imbatível que decidiu mostrar no Facebook o que ali acontece, sem imaginar o impacto que se seguiria.
Ângelo, 35 anos, é uma casa cheia. Todo ele é disponibilidade e generosidade. Sofia, 31 anos, humor refinado, piadas na hora certa, sorriso contagiante. Hoje o centro tem mais de 48 mil seguidores, a rondar os 50 mil com o Instagram. Sofia, a tirar o doutoramento em Informação, Comunicação em Plataformas Digitais, verbaliza o que os olhos constatam.
Ambiente familiar, postura descontraída para ajudar quem tem de deixar a sua casa, liberdade para ter mau feitio. “É uma casa, não é uma instituição. Valorizamos as relações e as emoções, a liberdade para fazerem o que gostam”, sublinha. Ângelo destaca o trabalho em equipa e frisa que a dupla é apenas mais um elemento que suporta a casa. “Divertem-se muito connosco e temos muita sorte porque nos divertimos imenso. Não é só cuidar das pessoas, mas fazê-las mais felizes, e inspiramo-nos uns nos outros.”
O Centro Comunitário da Gafanha do Carmo tem 35 idosos no lar e 20 no centro de dia, a capacidade máxima, e uma lista de espera com mais de 50 inscritos. Sai um vídeo e, é certinho, o telefone não pára de tocar com muitos parabéns e alguns pedidos de informação à mistura. Em lar, a mensalidade pode chegar aos mil euros; no centro de dia, o máximo é de 280 euros.
Na última segunda-feira, Ângelo e Sofia fizeram o último brainstorming do livro que vai ser publicado ainda este ano com a história da casa onde trabalham. Brindaram com alguns amigos. Haverá muito para contar sobre esta casa de portas abertas que vai a escolas, lares, universidades, conferências, encontros, bailes, concertos, sessões de cinema. Na próxima sexta-feira, Sofia faz anos e já avisou que haverá festa.
Antes disso, amanhã, segunda-feira, quem quiser pode ir a um cabeleireiro de Aveiro, conhecido pelos penteados malucos, encarnar o visual de uma personalidade histórica. Mais um dia normal. Ou nem por isso. “Tudo o que seja um desafio para não trabalharmos, nós aproveitamos”, brinca Sofia. É uma casa portuguesa, com certeza, mas como nenhuma outra.
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Perigo! Há gente feliz no Centro Comunitário da Gafanha do Carmo