Rui Cardoso Martins

O irmão aldrabão

Ilustração: João Vasco Correia

De todas as pessoas tristes que conheci, e começam a ser-me demasiadas na vida, as piores, as mais azedas foram aquelas enganadas pelos próprios irmãos. Um irmão ou irmã que trai – digo eu, que nunca passei por isso nem estou a ver-me assim – é um abismo que suga a luz, um buraco negro. Não estou a defender a bondade dos traídos, às vezes também eles se estragam como pessoas. As maldades têm matriz.

Em pequeno, li “O Tesouro”, de Eça de Queirós, que ainda acho um exemplo de perfeição de forma, de palavras e de enredo num conto, e que começa assim: “Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guannes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados”. O nome do primeiro, Rui como eu, influenciou a surpresa infantil. Mas é o arrepiante avanço da dissimulação e da cobiça entre irmãos que move a tragédia (tão cómica na verdade, temos de concluir), pois todos são traidores dos outros, acabando por se matarem mutuamente. Para ficarem com o tesouro inteiro – encontrado horas antes na floresta – que chegava para enriquecer os três.

Foi no que pensei quando o homem terminou o depoimento. Barba branca e olho azul empalidecido, andar frágil, todo vestido da cor nobre do caramelo, tecido creme nas calças, sapatos de camurça envelhecida. Nascido há 75 anos, de Cascais, Simão levantou-se, as pernas como varas, depois de ouvida a acusação:

– Quero fazer uma declaração: essa, como é que se diz, essa operação, eu não tinha conhecimento dela. Isso foi feito à revelia pelo senhor Diogo. O senhor Diogo pode, sozinho, fazer o que lhe apetecer. E isso fez. Eu nem sequer tive conhecimento dessa operação. Só tive à posteriori.

– Essa sociedade… O senhor fazia parte dela?, começou a procuradora.

– Fazia parte… era uma empresa familiar. Eu estava lá dentro, mas não exercia. Eu nem sequer ia à empresa. Eu nunca liguei muito àquilo, para dizer a verdade.

– Mas que empresa era?

– Era uma ex-empresa que tinha propriedades. Creio que havia uma ideia do meu irmão de fazer uma coisa de imobiliário. Sei que esta operação era de serviços. Eu li… nem quero pessoalmente perceber, porque nem me quero irritar, nem estou em estado disso, de perceber o que era isto…

Atrás dele, o peso da família. Há décadas, eram ricos. Uma fábrica de conservas de peixe que faliu, os trabalhadores despedidos, as máquinas vendidas. Só ficou o terreno e a ruína. No fim de uma história de importação e exportação de produtos de peixe, Simão transformou tudo em negócio imobiliário. Mas sempre fingindo que a fábrica estava viva. O terreno valia dois milhões e meio de euros e Diogo cobrou ainda 250 mil euros pela intermediação na venda. Pelo meio, sobrou uma dívida ao fisco (IVA) de 53 mil euros. Um dia desapareceu. A polícia anda atrás dele. Simão pediu para continuar. Alguém quer encontrar o seu irmão Diogo?

– Eu julgo… julgo, porque não vou fazer declarações definitivas, mas posso dizer que ele deve estar em casa do filho, em Paris. Que a embaixada contacte o filho, que ele não está registado. E na polícia também não está registado.

– Não duvido. Nós só queremos é encontrar o seu irmão.

– É isso que eu estou a dizer: se o quiserem encontrar, é fazerem o que eu estou a dizer.

E revelou a morada em Paris e o nome do sobrinho.

Agora, Simão precisava de água. Um dos advogados passou-lhe uma garrafinha. Bebeu dois goles, deixou de tremer.

– Li uma coisa que ainda não entendi. Houve um serviço que foi prestado para facilitar na câmara a construção… e com políticos com que o meu irmão andava envolvido…

A fábrica passaria a supermercado e restaurante de hambúrgueres. Pelo meio, corrupção camarária e fuga ao fisco. O homem está em Paris (mais um…), investiguem. O advogado de Simão considerou a actuação de Diogo “completamente desgarrada.”

– A empresa foi usada fora do âmbito da sua actividade. O senhor seu irmão pura e simplesmente utilizou o nome da empresa para lucros em proveito próprio?

– Sim.

– Sabe o destino do dinheiro?

– Não faço ideia.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)