O hospital inglês em que há um português a cada esquina

Por Ana Tulha e Pedro Correia, em Leicester

Ana Abreu ainda tem bem presente o momento em que viu as portas da emigração escancararem-se. Era outubro e tinha-se licenciado em Enfermagem fazia uns meses. Para se ocupar, foi tirar um curso de inglês. Foi lá que uma colega a desafiou a ir com ela a uma entrevista de trabalho para Leicester. Só que o destino fez-se caprichoso. A colega, que estava determinada a rumar a Inglaterra, não ficou. Ela sim. E ainda assim carpia a sorte. “Só chorava. Na altura não queria vir. Eu sempre disse que queria trabalhar em Portugal.”

O empurrão da mãe ajudou-a a abrir as asas. Até porque Ana sabia o que a esperava no país a que não queria virar costas nem por nada: contratos precários, “progressão na carreira inexistente”. E isto contando que teria trabalho. “Nem que fiques só duas semanas”, incentivava a mãe Abreu. Ana, cabelo preso, óculos de massa, recorda o episódio com um sorriso envergonhado, que lhe salienta as covinhas do rosto.

Desde então, não passaram só duas semanas, nem dois meses, nem mesmo dois anos. Já lá vão cinco. Tempo suficiente para que, aos 27 anos, tenha já sido promovida a “deputy sister” (espécie de subchefe de um serviço), com um rendimento anual bruto que supera as 28 mil libras – mais de 32 mil euros. “E ainda temos formação contínua, paga pelo hospital”, sublinha.

Está sentada num cadeirão da sala de Oncologia do Leicester Royal Infirmary (uma das três unidades dos University Hospitals of Leicester – ou hospitais universitários de Leicester), bata azul clara e cansaços vários de mais um turno de 12 horas. Quando foi para Leicester, a cidade inglesa que, em 2016, viu o clube local celebrar um inédito título de campeão de futebol inglês, o namorado ficou em Portugal.

Ana Abreu e Rita Silva

Dois anos depois, veio também. Alugaram um T1, mobilaram-no e compraram carro. Jantam fora se assim lhes apetecer, vão ao cinema quando lhes dá na gana e ainda conseguem viajar. No meio disto tudo, também poupam. Apesar do maior custo de vida, a matemática é simples de fazer: “Temos um nível de vida superior ao que teríamos em Portugal”.

A dimensão dos University Hospitals of Leicester (UHL) impressiona. Três unidades espalhadas pela cidade (Leicester General Hospital, Leicester Royal Infirmary e Glenfield Hospital), 15 mil funcionários, um volume de negócios anual de mil milhões de libras (mais de mil milhões de euros), duas mil camas e perto de um milhão de pacientes atendidos anualmente.

Para se ir de uma unidade para a outra, é preciso apanhar um autocarro (os funcionários não pagam). Em cada unidade, há vários edifícios. No interior de cada edifício, um labirinto de corredores e elevadores. E, ainda assim, a imensidão dos UHL – o quinto maior centro hospitalar de Inglaterra – consegue apequenar-se quando o desafio é encontrar portugueses.

São perto de 200, entre médicos, radiologistas, auxiliares e enfermeiros. Muitos enfermeiros. Nove dezenas deles. Excluindo os britânicos (3 438), só os indianos estão em maior número (156) entre os enfermeiros deste hospital. Os portugueses chegaram, sobretudo, entre 2014 e 2016.

Só nesses três anos, os UHL recrutaram no nosso país 125 enfermeiros. Alguns já regressaram. Seja por terem encontrado trabalho em “casa” ou por terem sucumbido ao peso das saudades.

Os outros, em Leicester e pelo país fora (em 2018, havia no Reino Unido mais de 3 000 enfermeiros portugueses), fizeram da emigração caso sério e, à imagem de Ana Abreu, não se cansam de elogiar os salários e a progressão na carreira que a vida em terras de Sua Majestade lhes tem proporcionado.

Estefânia Costa, “Stef” dentro do hospital (“quando têm dificuldade em dizer os nossos nomes, abreviam”), é o exemplo maior dessa progressão. Portuense de 38 anos, chegou aos hospitais universitários de Leicester em maio de 2014 e, em menos de cinco anos, já é uma das responsáveis pela educação e formação contínua de 1 200 enfermeiros dos UHL – todos os que trabalham nas áreas renal, respiratória, cardíaca e vascular.

“Mas não se pode pensar que chegar aqui é fácil. É preciso lutar muito”, ressalva. Em Portugal, chegou a trabalhar três anos nos cuidados de saúde primários, mais cinco na Maternidade Júlio Dinis. Depois, ainda foi professora universitária. Mas, em outubro de 2013, a escola em que dava aulas dispensou-a. Tentou uns quantos sítios, mas nem os dez anos de experiência que já tinha nem o currículo académico – mestrado concluído em Ciências de Enfermagem e doutoramento a meio – lhe valeram.

Admite que, nos anos em que trabalhou em Portugal, nunca foi propriamente mal paga. Mas, com a crise, aquela que obrigou a um “enorme aumento de impostos” e levou Passos Coelho a aconselhar os jovens portugueses a emigrar, as coisas complicaram-se. “Ia sabendo pelos meus alunos que havia enfermeiros a ganhar à hora menos do que empregadas de limpeza e coisas do género.”

Estefânia Costa

Depressa se rendeu às evidências: se queria continuar a ter uma carreira bem-sucedida na enfermagem, o melhor era fazer as malas e rumar a Inglaterra. Mesmo que, com uma filha de ano e meio nos braços, a mudança tenha obrigado a doses redobradas de coragem.

“Nos primeiros dois meses os meus pais ainda vieram ajudar, mas depois não foi nada fácil. No infantário, a minha filha era a única criança portuguesa e ainda mal sabia falar português, quanto mais inglês. Cheguei a fazer umas folhas, com o significado de algumas palavras, para a conseguirem entender.”

Profissionalmente, a ousadia não tardou a compensar. Entrou nos UHL como “staff nurse” (grau cinco, aquele em que arrancam todos os enfermeiros que chegam ao sistema nacional de saúde inglês), em 2014, e, dois anos depois, já estava a ser contratada por outro hospital, para ser “deputy sister” (grau seis). O regresso a Leicester significou nova subida de posto.

“Graças ao meu currículo e ao meu percurso académico, voltei como ‘education and practice development sister’ [grau sete].” Traduzindo… “Sou responsável pela formação contínua. Dou aulas, teóricas e práticas. E tenho a meu cargo a formação de jovens enfermeiros que vêm de fora da União Europeia, visto que estes precisam de fazer um treino específico para se poderem inscrever no Nursing and Midwifery Council [espécie de Ordem dos Enfermeiros]”, explica, em pleno Alfred Hill Centre, o edifício que alberga o departamento de ensino, prática e simulação clínica.

Cursos e mais cursos… pagos pelo hospital

Até porque, nos UHL, a formação contínua é uma prioridade absoluta. “Ainda há pouco tempo o meu ‘manager’ me concedeu fundos para fazer um curso de tratamentos de emergência, de quatro meses”, orgulha-se Joana França. Ou “Joe França”, segundo o crachá. Como ela, muitos outros enfermeiros portugueses se têm valorizado à custa de cursos totalmente financiados pelo hospital.

Joana França

Joana trabalha na ala 18 do Glenfied Hospital, a da Cardiologia de emergência. É para essa enfermaria que vão os doentes com ataques cardíacos ou problemas urgentes relacionados com pacemakers. “A nós, compete-nos, entre outras coisas, vigiá-los e dar-lhes a medicação”, resume a lisboeta, de 27 anos, enquanto vai olhando para os monitores, que mostram, em tempo real, o ritmo cardíaco de cada um dos pacientes internados.

É um trabalho exigente, que requer dedicação absoluta, mas, quatro anos e meio depois de aqui ter chegado, na ressaca de um ano sem arranjar trabalho em Portugal, declara-se rendida. Tanto que regressar a casa está fora de questão. “Voltar? Não, não, não!”, atira, muito rápido, como se essa nem sequer fosse uma hipótese a ter em conta.

Ana Valente e Maria Guimarães também estão de pedra e cal. Trabalham as duas na ala 23, da Cirurgia vascular, e têm ambas 27 anos, mas Ana chegou primeiro, em 2014. Maria, afilhada de Ana na faculdade, acabaria por seguir os passos da madrinha, três anos depois. “Temos sobretudo casos relacionados com varizes, aneurismas, problemas da aorta e amputações”, explicam.

Hoje, ambas olham para a mudança para Leicester como uma aposta ganha. Mesmo que os primeiros tempos tenham sido feitos de passos cambaleantes e corações apertados. “No início, foi difícil. Falava todos os dias no Skype com os meus pais. Ainda por cima sou filha única”, graceja Ana, ar descontraído e cabelo entre o ruivo e o laranja.

Até porque, em Inglaterra, os recém-chegados têm de se submeter a um período de adaptação de dois meses e a um ano supervisionado. “Em Portugal, já saímos da faculdade a poder fazer coisas como tirar sangue e inserir cateteres. Aqui, quando chegamos, dão-nos um livrinho de competências clínicas, que os enfermeiros seniores vão carimbando”, conta Maria.

Maria Guimarães

Só depois de cumprirem as diferentes práticas um determinado número de vezes, com supervisão de um enfermeiro mais experiente, é que os jovens enfermeiros ficam aptos a fazê-los sozinhos. Concluída essa primeira fase, têm abertas as portas da progressão. Ana, que é subchefe dos enfermeiros de Cirurgia vascular há quase um ano, é a prova disso.

“Na altura, ia sair uma ‘deputy sister’ e a minha chefe incentivou-me: ‘Tens feito um trabalho tão bom. Porque é que não concorres?’.” Depois, dentro do mesmo grau, ainda há os aumentos anuais. Basta, para isso, que cumpram determinados critérios subjacentes às avaliações de desempenho. “O meu ordenado base é duas ou três vezes superior ao que ganhava lá”, realça Maria, que, em Portugal, chegou a trabalhar numa clínica de reabilitação de ortopedia.

A meio da conversa, um doente passa no corredor. “Hello! Are you escaping (olá! Vai fugir?”), brinca Maria, sorriso e boa disposição contagiantes. “Acho que aqui também gostam de nós por nos tentarmos manter sempre positivos.” Eleanor Meldrum, “deputy chief nurse”, uma espécie de chefe de todos os enfermeiros, confirma.

“O feedback que temos em relação aos enfermeiros portugueses é que os pacientes os adoram. Têm um trato especial com os doentes. Isso percebe-se assim que se entra numa ala. São muito preocupados e gentis”, elogia a responsável, que gaba também a predisposição dos portugueses para aprenderem depressa e pensarem diferente.

Razões que ajudam a explicar o facto de os hospitais de Leicester estarem carregados de enfermeiros portugueses, que foram chegando às prestações. Tanto que, ao fim de uns anos a fazer vida nos UHL, ainda encontram caras novas (e ainda assim tão familiares) a casa passo.

A primeira pergunta é quase sempre a mesma: “Vieste em que grupo?”

António e Silvana, namorados, vieram no grupo de Santarém. Marisa, do Barreiro, chegou em fevereiro de 2014. Bruno Neves, de Oliveira de Azeméis, aterrou no Reino Unido em dezembro (“trabalhava em cuidados continuados em Vila Nova de Poiares, a recibos verdes… basicamente trabalhava para pagar o gasóleo”, recorda). Estão todos nos Cuidados intensivos.

À conversa, junta-se Paulo Gonçalves, enfermeiro de bloco operatório. “Em maio, vai fazer cinco anos que estou cá. Foi uma decisão complexa, porque vim com a minha mulher e os meus filhos, mas pesou o facto de em Portugal já ser enfermeiro há 16 anos e nunca ter tido reconhecimento ou progressão na carreira”, diz, meio a correr, a obrigação a chamar por ele. “Vou ter agora uma cirurgia. Tenho de ir instrumentar.”

Paulo Gonçalves

Ao contrário de Paulo, Marisa veio sozinha. O namorado, hoje marido, ficou em Portugal, mas acabou por se juntar a ela. Entretanto, já têm uma filha, 15 meses, nascida e criada em Inglaterra. “Quando vim, nem sabia inglês. Passei um ano a estudar em casa, com o meu namorado a ajudar-me. Hoje sou enfermeira especialista em cuidados pediátricos.”

O hospital financiou-lhe a especialização. Bem como um curso específico de cuidados intensivos, no valor de 500 libras, quase 600 euros. E Marisa já se está a preparar para mais uma formação (igualmente financiada), desta vez de suporte básico de vida.

Contratar fora para calar as carências

Vistos como enfermeiros com alta qualificação e especialização, elogiados pelas qualidades humanas – ainda na última semana Sílvia Nunes, enfermeira de 34 anos que está há cinco em Inglaterra, a trabalhar num lar de Thetford, foi distinguida como a melhor enfermeira de cuidados continuados do Reino Unido -, os portugueses garantem ser tratados, em Inglaterra, sem pingo de diferenciação.

Até porque, nos UHL, a contratação de enfermeiros estrangeiros há muito é prática comum. A aposta começou a desenhar-se com o ADN da própria cidade (na sequência dos censos de 2011, Leicester foi considerada a região inglesa com maior diversidade étnica) e intensificou-se nos últimos anos.

Culpa, em parte, dos cortes que o serviço nacional de saúde inglês (NHS – National Health Service) sofreu em 2009 – 20 mil milhões de libras, mais de 23 mil milhões de euros. As consequências fizeram sentir-se anos depois.

Segundo a imprensa inglesa, em 2014 faltavam no Reino Unido 20 mil enfermeiros. A contratação de profissionais estrangeiros revelou-se, por isso, a melhor forma de estancar as necessidades.

“Pela nossa experiência, os melhores embaixadores dos nossos serviços são os que vêm do estrangeiro. O nosso foco, enquanto organização de saúde, deve estar em fornecer os melhores cuidados de saúde aos nossos pacientes. Isso significa que queremos as melhores pessoas a vir para cá”, justifica Karamjit Singh, presidente dos University Hospitals of Leicester. Nesse leque, cabem, com certeza, os portugueses. “Quando ando no hospital, vejo-os a contribuir a várias áreas”, destaca.

Sara Silvestre Costa, Luís Leite e João Gomes, enfermeiros no “Emergency Department” (serviço de urgências) do Leicester Royal Infirmary, ajudam a validar a teoria. João, 47 anos, já é enfermeiro sénior. Sara e Luís estão, neste momento, a fazer mestrado (certo, pago pelo hospital) para se tornarem “advanced clinical practitioners”. À letra, profissionais de clínica avançada.

A função não existe em Portugal, mas fica, no fundo, a meio caminho entre as competências de um enfermeiro e de um médico. “Vamos poder fazer diagnóstico, dar ordem de internamento e prescrever medicação”, explica Sara, 28 anos. Natural de Lisboa, chegou a Inglaterra em 2012, para trabalhar num lar, e entrou nos hospitais de Leicester em 2013. “Depois de acabar o curso, ainda enviei currículos para os hospitais centrais, em Portugal, mas não estavam a contratar há um ano”, relembra.

Luis Leite, João Gomes e Sara Silvestre Costa

No ano passado, passou a “deputy sister” (grau seis). Agora, no segundo ano do mestrado, já está a receber como grau sete. Segundo a tabela do NHS, terá direito a auferir mais de 33 mil libras por ano (ordenado bruto). Sete anos depois de aterrar no Reino Unido, Sara é, por isso, grata pelas oportunidades de formação e progressão que tem tido.

Mas nem tudo é mais brilhante na Grã-Bretanha. “Em Portugal as escolas de enfermagem são melhores. Os alunos saem mais bem preparados”, aponta. Até porque, em Inglaterra, os jovens enfermeiros não aprendem a tirar sangue nem a inserir cateteres (entre outras coisas) durante o curso – daí que a entrada no mercado de trabalho implique o tal ano supervisionado.

No serviço de urgências do Royal, Sara cruza-se frequentemente com outro português. João Vinhas, 46 anos, natural de Macedo de Cavaleiros, integra a “Out of hours response team” – traduzindo, a equipa de resposta fora de horas. “Somos uma equipa de resposta rápida para situações de emergência clínica intra-hospitalar em doentes internados. No fundo, somos uma primeira linha de ajuda aos serviços para resolver situações de emergência”, descodifica João.

Sejam paragens cardíacas ou casos de doentes cujo estado se deteriora “fora de horas”. João, que garante ter sido um dos primeiros portugueses dos UHL a chegar a enfermeiro especialista, trabalha, por isso, num de dois turnos: 16.30 às 00.30 horas ou 18.45 às 8.15 horas.

Como ambos implicam horário noturno, recebe um incremento considerável, em relação ao ordenado base. Pega no telemóvel para fazer as contas. De tanto ter que pensar em libras, até tem no telefone uma aplicação que faz a conversão automática. As contas sorriem-lhe. “Face ao que ganhava em Portugal [trabalhava num lar], passei de 900 para 2 500 euros líquidos mensais”, atira, satisfeito. Não admira que, apesar de ter vindo com a intenção de ficar apenas “três ou quatro anos”, agora considere difícil voltar.

João Vinhas

Pelas funções que tem, que o obrigam a fazer a ponte com vários serviços, João Vinhas garante conhecer 90% dos enfermeiros portugueses que trabalham nos hospitais de Leicester. “Seja onde for, encontramos sempre um. E agora também já há muitos radiologistas e auxiliares. Posso dizer que em cada esquina há um português.”

A língua mãe, a partilha de raízes, a sensação de pertença e parecença à custa da nacionalidade dão conforto, ajudam à integração, garante. É uma almofada para a distância e a saudade, vertidas em dias difíceis e momentos que se perdem na distância dos dias. Por isso, sempre que pode, faz programas com outros portugueses. “Costumamos juntar-nos para tomar café, jantar, jogar futebol. Temos sempre coisas para fazer.”

Mastigar saudades à mesa

É sexta-feira à noite e o tempo, como quase sempre por estes lados, está mais para a chuva do que para outra coisa. Mas há um desses jantares à portuguesa para mastigar saudades e sorver o conforto de casa em goles de sangria e cerveja. O ponto de encontro é o RosAnto, restaurante bem português, no centro de Leicester.

Um poster de Cristiano Ronaldo, com a camisola da equipa das quinas, anuncia o regresso ao ADN. Lá dentro, há quadros que são pedaços marcantes de Portugal – do Padrão dos Descobrimentos à Livraria Lello. No menu, há várias opções que sabem a regresso a casa. Francesinhas, prego, bacalhau com natas. “E entradas, querem?”, pergunta o dono, tão português quanto os sete enfermeiros que se preparam para jantar. “Bolinhos de bacalhau”, pois claro. Sem faltar a bela da “bejeca” (cerveja).

“Quando queremos comer comida a sério, com nutrientes, comemos comida portuguesa”, ironiza Ana Valente. “Até porque eles aqui comem sempre as mesmas coisas: ‘english breakfast’ [pequeno-almoço inglês], ‘fish and chips’ [peixe e batatas], ‘sunday roast’ [assado de domingo] e pouco mais”, lamenta Rita Silva, enfermeira na secção de Cuidados intensivos do Royal, que também se juntou ao jantar. “E ‘rice pudin’ [pudim de arroz]. ‘Rice pudin’ com ‘rice pudin’ com ‘rice pudin’”, graceja Maria Guimarães.

Entre garfadas, vão pondo a conversa em dia. Falam de filmes e de festivais, do curso, das casas que preferem alugar ou comprar, dos filhos que ainda são projetos ou que, para já, não se veem a ter, das diferenças para os ingleses (“nós somos mais calorosos, mais apaixonados, mais sentimentais”, diz Maria Guimarães; “e mais práticos e desenrascados”, completa Ana Valente). E do hospital, claro.

O português sai-lhes a meias com termos técnicos em inglês. O “dripstone” (suporte do soro) e a “PICC line” (cateter), por exemplo.

“Oh well [ora bem], já não sei falar em português”, ri Maria, uma frase que é um testemunho em si mesma. Riem todos. Não admira que, no hospital, sejam conhecidos – e elogiados – pela boa disposição.

Mas não é tudo bom, sublinham, como se houvesse o risco de se pensar isso. Há o vazio de casa que não os larga, as saudades, ora miudinhas, ora gritantes, que moem sempre. Da família e dos amigos, claro. Mas também do tempo. Do mar. “E da cultura”, aponta Rita. “Isto de jantar às seis da tarde dá cabo de mim. Os shoppings fecham às 20 horas e às 21.30 horas a maior parte dos restaurantes deixa de servir.”

Por isso, apesar dos aumentos anuais, e das férias (“como fazemos turnos de 12 horas, acabamos por ter seis, sete semanas de férias”), e dos muitos amigos que fez em Leicester, Rita assume que tenciona voltar a Portugal no fim do ano. “Custa-me muito estar longe do meu país.”

Em Portugal, sabem bem, o cenário não é famoso. Aplaudem, por isso, a luta que os compatriotas têm levado a cabo. “Compreendo que aumentar os ordenados para os valores que os enfermeiros querem não é fácil, tendo em conta o estado do país, mas as mudanças começam com estes pequenos movimentos”, defende Maria Guimarães.

Ana Abreu reforça o apoio. “Respeito os meus colegas por lutarem por melhores condições de trabalho, até porque tenciono voltar a exercer enfermagem em Portugal e sinto esta luta também como minha.”

Já o Brexit – a saída do Reino Unido da União Europeia, que estava agendada para dia 29, mas cujos termos continuam a não colher acordo entre os deputados britânicos – não preocupa.

“Não me assusta. Já tenho o documento que declara que posso viver aqui”, esclarece Joana França. A enfermeira da ala da Cardiologia de emergência está em sintonia com Paulo Gonçalves, enfermeiro do bloco operatório: “O Brexit? Depende do que temos planeado para o futuro. Pode ter assustado um bocadinho ao princípio, mas as coisas vão ficando mais claras com o tempo”.

Karamjit Singh, presidente dos University Hospitals of Leicester, admite que a saída da União Europeia potencia “uma série de riscos”, mas recusa especular, até porque “ainda ninguém sabe ao certo o que vai acontecer”. Deixa uma promessa, ainda assim.

“Vamos continuar a aceitar candidaturas de qualquer parte do Mundo e a encorajar as pessoas a vir para cá. Temos também a responsabilidade de garantir a quem cá está que vamos fazer tudo para que, independentemente das circunstâncias, não sofram qualquer impacto na vida pessoal e profissional”, assegura.

Remata com um elogio. “O contributo dos enfermeiros portugueses tem sido muito significativo e reconhecemos isso.” E sorri. Como que contagiado.