Texto de Ana Tulha | Fotos de Maria João Gala/Global Imagens
Sónia Tavares: rainha do vintage, via Internet
Sónia Tavares, vocalista dos The Gift, tinha 15 anos quando arranjou o primeiro trabalho. Não porque passasse dificuldades ou porque os pais precisassem de ajuda. Antes para poder satisfazer os caprichos de uma adolescente que, desde cedo, se perdeu de amores pela moda. “Achava que o meu pai não tinha de me andar a comprar tudo o que eu queria”, justifica.
Quase 30 anos depois, a paixão continua bem viva, possivelmente mais refinada e seguramente bem alimentada. A prova está numa das divisões da casa que tem em Alcobaça, uns quantos metros quadrados fartos em vestidos e casacos, calças e chapéus, básicos, cintos de mãos e excentricidades para todos os gostos. “Sempre fui fã de moda”, esclarece.
Nem precisava. O vistoso closet, decorado com papel de parede colorido, “charriots” [espécie de expositores] e manequins, recheado de peças de fazer inveja aos guarda-roupas de grandes produções, quase conta a história sozinho.
Só não conta que a mãe de Sónia tinha um guarda-fatos gigantesco (e que mesmo assim acabava por guardar roupa também no quarto dela e na sala) e que andava sempre a comprar revistas de moda, brasileiras sobretudo, que até o pai sempre foi vaidoso. “Agora que penso nisso, acho que estou a encontrar aqui uma relação”, brinca a cantora, boa disposição contagiante e as raízes do “bichinho” da moda a descoberto.
Conclusão: já aos dez anos a artista natural de Alcobaça ia para a escola de camisa branca, pulôver cor-de-rosa de manga curta e gravata de cabedal. Pouco depois, à boleia das amigas, passou a usar pulôver com camisa aos quadradinhos. “Só que elas usavam tudo ‘fit’ e eu, como tinha complexos com o meu corpo, pegava na camisa do meu pai, um homenzarrão de um metro e oitenta.” Foi a fase “betinha”.
Depois veio a fase gótica. Mais tarde, no prelúdio dos The Gift, a fase alternativa. Com uma inspiração chamada Bjork (artista islandesa que se afirmou a solo na década de 1990): “Aquela mulher para mim foi uma visão dos céus. Foi quando percebi que podia tirar partido dos looks mais estranhos”.
Hoje, aos 42 anos, depois de também ter vivido um momento “pin up”, diz-se numa fase mais moderada. E ainda assim algo bipolar. “Agora, quando saio à rua, ou vou completamente vagabunda – pijamas com botas, qualquer coisa… não me importo nada – ou vou com tudo”, conta Sónia, as mãos a fazer o gesto de um “txanan” gigante. No dia-a-dia, prefere os casacos de cabedal e calças pretas, tipo corsário, que deixam os tornozelos de fora, para se verem “uns bons ténis”.
“São umas calças básicas, que compro na Zara. Tenho mais de 20 pares, todas iguais.” Em palco, então, é imperativo que a roupa seja confortável. “Nunca visto roupa de autor em espetáculo, porque não é feita para isso. Ainda por cima sofro imenso com o calor.”
No extenso closet que tem em Alcobaça, não faltam indumentárias que usou em concertos e momentos marcantes. Um dos “charriots”, por exemplo, é só para a roupa que utilizou no Fator X (programa de talentos da SIC). Noutros, tem roupa que compra nas lojas locais. E depois tem vintages, vintages e mais vintages. Vintages a perder de vista. Dos anos 1920 aos anos 1960, ou ainda mais para trás, da época vitoriana.
“Sou uma colecionadora. Tenho imensos vestidos dos anos 1930 e 1940. Foi um período muito giro. E os anos 1950 também, com o glamour de Hollywood”, explica a artista, que aponta Marilyn Monroe e o filme “Os homens preferem as loiras”, de 1953, como fontes de inspiração.
António Raminhos: a sobriedade contra a exposição
Na casa onde vive com a mulher e as três filhas, na Ericeira, António Raminhos tem um gavetão largo só para as t-shirts. São umas dezenas, dobradas e arrumadas engenhosamente para que estejam sempre visíveis e nenhuma caia no esquecimento. A tática, aprendida com Marie Kondo (japonesa especialista em organização pessoal, com um programa na Netflix), encaixa na perfeição numa das premissas que o humorista tem em relação à roupa.
“Tudo o que compro, tenho de usar”, garante o lisboeta, de 42 anos. Se vir que há peças que estão condenadas à inutilidade – ou se o gavetão começar a ficar “muito desarrumado” – dá-as. Seja à Legião da Boa Vontade ou à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Também já deu às vítimas dos incêndios. “Dou várias vezes ao ano, até porque me faz confusão ter de escolher roupa.”
O estilo regrado aplica-se tanto na gestão da roupa que possui, como na da que está para ter. “Não compro por impulso. E custa-me gastar cem euros numas calças de ganga. Gosto de ir aos saldos, mas mesmo nesses momentos sou um gajo controlado. Até posso gastar uns 150 euros de uma vez, mas em várias peças. Não vou dar 150 euros por uma malha. Acho isso um ultraje.”
O autocontrolo ficou-lhe dos primeiros anos de vida, passados no seio de uma família de “classe média baixa”. “Durante 15 anos só usei roupa comprada na Feira do Relógio. Era a ‘Soveste’, a imitar a ‘Soviete’, a Adipos, a imitar a ‘Adidas’. As coisas de marca que tive eram-me dadas por pessoas que já não usavam.”
Por isso, habituou-se a não ligar muito às marcas, muito menos à ostentação. Depois, ainda há o facto de ter muita roupa oferecida (tanto pela Adidas, de que é embaixador, como de amigos que lançam novas marcas e fazem questão de lhe oferecer peças). Tudo contribui para que não cometa grandes loucuras.
A aversão aos gastos exorbitantes só se compara ao desdém pelos “dress codes” formais. Vestiu um fato tão poucas vezes que quase é capaz de as enumerar. “No meu casamento, num outro em que que fui padrinho, num evento a que tive de ir, no tempo em que era jornalista [no extinto jornal ‘A Capital’] e pouco mais”, conta Raminhos.
“Só mesmo se for obrigado.” Ossos do ofício de quem faz da boa disposição uma forma de vida e acaba resistente a todas as formas de seriedade. “Tenho um registo muito descontraído. T-shirts, calças de ganga, no inverno umas camisolas de lã e uns hoodies [espécie de sweat com carapuço].”
Quanto a tons de roupa, nem tem dúvidas. “Prefiro a roupa branca ou com cores claras. O escuro atrai o escuro.” E t-shirts? Mais neutras ou mais polémicas? O ADN profissional volta a ditar a resposta.
“Quando era mais novo, gostava de usar t-shirts com frases parvas. Depois deixei-me disso. Até porque tenho algum mediatismo e acabo por ficar associado às t-shirts que uso. E em tempos li algo, num livro técnico de comédia, que acho que faz sentido: ‘Se usares uma t-shirt engraçada, corres o risco de a t-shirt ter mais graça do que tu.’ Gosto de andar discreto. Ajuda-me a passar despercebido”.
São José Lapa: mudar de pele a toda a hora cansa – e não é pouco
Nelson Rodrigues, conhecido escritor, jornalista e dramaturgo brasileiro, costumava dizer que só os atores eram reincidentes. A premissa era a dicotomia entre a vida e a morte. “O ator ou a atriz pode morrer todas as noites e duas vezes aos sábados e domingos”, assinalava. E ainda assim renascer todos os dias, num contínuo ato de encarnar e largar diferentes personagens, vestir e despir figurinos, assumir uma pele e outra, vezes sem fim.
No caso da atriz São José Lapa, 68 anos, o despe e veste sai a multiplicar por quase meio século, o tempo que leva numa carreira de representação ao mais alto nível. De tal forma que o percurso lhe marcou indelevelmente o modo como se relaciona com a roupa.
“A minha profissão faz com que tenhamos de vestir e despir roupa milhares de vezes, senão milhões. Quando estive no Teatro Nacional D. Maria II, por exemplo [foi atriz residente], passei meses com espetáculos todos os dias. Torna-se muito cansativo. De forma que já não se aguenta fatos nem fatiotas. Não me dá prazer nenhum pensar numa toilette para sair”, vinca, tão desconcertante quanto a idade permite.
Não quer dizer que a moda lhe passe totalmente ao lado (“às vezes gosto de piscar os olhos às coisas, só para não ficar completamente desassociada”, explica), mas, quando o assunto é a indumentária, quem lhe tira a comodidade tira-lhe tudo. “Veja como estou vestida. Este casaco tem seguramente 15 anos, mas é muito confortável.”
Sentada na mesa da sala da casa que tem no centro de Lisboa, com uma reconfortante vista para o Tejo, vai olhando e apontando para o casaco, o discurso despachado a condizer com a descontração do look. “Cada vez gosto mais de tudo simples. Calças de ganga, uns calções no verão, t-shirts, umas blusas mais subidas no inverno, com um casaco ou uma camisola por cima. Também já não tenho corpo para usar outras coisas. E calçado o mais confortável possível. Sobretudo ténis.”
E se a ocasião obrigar a uma toilette mais cuidada? “Nesses casos, sei que o preto funciona sempre bem”, esclarece, um sorriso sábio a completar a resposta. Por muito que ache que, às vezes, vale a pena ousar cores arrojadas. Só assim, defende, se contraria o cinzentismo herdado da ditadura, imagem perfeita de “uma sociedade muito condicionada pela culpa e pela autoflagelação”. “Lembro-me que em 1977, quando estivemos em Viseu a fazer a descentralização teatral, poucas eram as mulheres que tinham cor nos fatos.”
No pequeno guarda-roupa que tem no quarto (tem outro, bem maior, nas Aguncheiras, cooperativa cultural que fundou em 2006), cabe um pouco de tudo. Dos casacos de pele que herdou da mãe e das tias – mas que mal usa, por ser uma defensora dos animais -, vestidos e casacos que a filha Inês lhe foi dando e até um ou outro luxo, a que se permitiu em tempos idos.
“Esta saia com lantejoulas comprei seguramente há uns 15 anos”, garante. Entretanto, perdeu a pachorra e ganhou umas quantas preocupações ambientais: “Fiz uma rutura completa com tudo o que aniquila plásticos. Então se tomar consciência que o planeta está a acabar, cada vez menos quero comprar roupa. Aliás, há não sei quantos anos que não o faço”.