Jamaica, o bairro que perdeu o medo

A revolta dos moradores do bairro do Seixal saiu da periferia e chegou à capital, expondo a exclusão social que há décadas vive encurralada nas urbanizações degradadas da área metropolitana.

Ainda antes de tocar à campainha, Manuel Vicente pressente que a visita é uma perda de tempo. A suspeita confirma-se ao ver um rosto surpreendido atrás da porta. A cena é tão déjà vu que nem insiste perante mais uma desculpa esfarrapada de que o apartamento já não está disponível.

“Nos anos 1990, era ainda pior do que hoje – ninguém arrendava casa a negros.” Ele conforma-se com a ideia de se mudar para “as barracas” da Grande Lisboa, mas um amigo dá-lhe uma dica: “Há casas vazias no bairro do Jamaica”. Hoje, e ao fim de duas décadas, é-lhe difícil imaginar-se a viver noutro lugar: “Quando tiver de ser, será, mas vai-me custar”, conta o angolano de 51 anos, que chegou em 1996 à Quinta Vale de Chícharos, no Seixal, popularmente conhecido por bairro do Jamaica.

Não há muitas razões para querer morar em apartamentos improvisados em cima de um esqueleto de betão abandonado após insolvência da construtora. O entulho acumula-se à entrada dos prédios, a humidade sobe pelas paredes, a eletricidade falha a toda a hora, os esgotos, volta e meia, rebentam e as águas do banho ou da cozinha escorrem em cascata pelas varandas. “Não sei explicar porque gosto disto. Acho que é por ter um timbre de África, as músicas, os convívios e as amizades.”

É como se a casa dele, ou melhor, o bairro inteiro, fosse um escudo protetor contra as maldições do exterior – o racismo, a discriminação social, as habitações precárias ou os abusos policiais de que se queixam e que, nas últimas semanas, colocaram o bairro do Jamaica nos jornais, nas rádios e nas televisões. Tal como já aconteceu com a Cova da Moura, na Amadora, com a Bela Vista, em Setúbal, ou com a Quinta da Fonte, em Loures.

“Não sei explicar porque gosto disto. Acho que é por ter um timbre de África, as músicas, os convívios e as amizades.

Só que agora é diferente. A “raiva” que Emanuel Coxi diz sentir lá “dentro” saiu do bairro, atravessou o Tejo e chegou ao centro de Lisboa para fazer barulho na Praça do Comércio, pelas ruas da Baixa e na Avenida da Liberdade. Bastonadas e balas de borracha de um lado, pedras arremessadas do outro e, ainda, quatro detidos no final do protesto reativaram um rastilho que se alastrou nos dias seguintes aos subúrbios da área metropolitana.

“Queremos que as manifestações sejam pacíficas, mas só vamos parar quando acontecerem mudanças”, garante o angolano de 21 anos. Mas, agora, com o pavio a arder, tudo aquilo que se quer ou se planeia pode derrapar para desfechos imprevisíveis. Há contentores de lixo, ecopontos e automóveis incendiados durante sucessivas madrugadas em Odivelas, Loures, Sintra, Amadora, Setúbal e Seixal. E também vozes a levantar questões que até agora estavam confinadas aos bairros degradados da Grande Lisboa e de outros pontos do país.

Da periferia para o centro

Habituamo-nos a ouvir denúncias de cargas policiais, incidentes entre rapazes de bairros rivais ou queixas de moradores revoltados por viverem em casas a cair aos bocados. “Temos assistido, ao longo dos anos, a várias erupções na Bela Vista, na Quinta do Mocho ou na Cova da Moura”, recorda Jorge Malheiros, investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa.

Mas são episódios curtos, raramente ganham fôlego e transbordam para fora dos limites dos bairros. “Estávamos acostumados a olhar para essas populações como submissas”, diz Luís Capucha, investigador na área de desigualdades, migrações e territórios. O que os recentes incidentes revelam é uma geração que não aceita com o mesmo conformismo dos pais a precariedade, a exclusão e a estigmatização, adverte o sociólogo do ISCTE: “Desta vez, os protestos passaram da periferia para a cidade e essa passagem pode não ser episódica, dando origem a movimentos novos para nós, mas amplamente conhecidos em alguns países da Europa”.

O que os recentes incidentes revelam é uma geração que não aceita com o mesmo conformismo dos pais a precariedade, a exclusão e a estigmatização

Para já, o efeito imediato são os governantes, deputados, ativistas, cronistas, investigadores e, ainda, torrentes de comentários nas redes sociais a empurrarem para o espaço público temas adormecidos ou, pelo menos, raramente debatidos em profundidade – racismo, abusos de autoridade contra afrodescendentes, preconceitos raciais nas forças policiais ou em outras instituições públicas.

Mais do que atirar sal para as feridas, o bairro do Jamaica exibiu a exclusão social em que se encontra encurralado, destapando um fenómeno que não é de agora. “A situação arrasta-se há décadas e com fortes implicações na vida das pessoas”, explica Ana Cardoso, investigadora do Centro de Estudos para a Intervenção Social, em Lisboa.

Já o primeiro estudo sobre a pobreza em Portugal, no qual participou com outros investigadores, no início da década de 1980, apontava as “carências habitacionais” como um sintoma mais vasto de estigmatização que impede o acesso ao mercado de trabalho ou a igualdade de oportunidades na educação. “Ao fim de tantos anos, não é de estranhar que o acumular de mal-estar provoque manifestações de revolta”, conclui a socióloga com investigação nas áreas da pobreza, exclusão social e minorias étnicas e culturais.

Diagnósticos à espera de soluções

O Jamaica é agora o foco das atenções, mas está longe de ser um bairro entre meia dúzia de casos isolados. O levantamento nacional divulgado em fevereiro de 2018 pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana mostra, aliás, que perto de três mil bairros, prédios, urbanizações, barracas ou outras construções precárias ainda são o teto para mais de 25 mil famílias a viver em 187 municípios.

João Domingos Francisco faz os arranjos e os consertos nas casas do Jamaica.

As áreas metropolitanas de Lisboa e Porto concentram a maioria dos casos, mas são poucas as autarquias que já encontraram soluções para realojar as famílias a viver em zonas de risco e/ou degradadas. Ou seja, ainda há 13 336 agregados sem alternativas a médio ou longo prazo, representando 51,7% do total da população sinalizada.

“Muito embora a persistência da pobreza seja um problema estrutural, já devíamos ter encontrado soluções para fenómenos que estão há décadas diagnosticados”, critica Ana Cardoso. Não é que não se tenha feito nada – esclarece Jorge Malheiros -, construíram-se bairros, implementou-se o Programa Especial de Realojamento, houve “más experiências”, mas também “boas iniciativas”.

O programa Escolhas, as escolas de Territórios Educativos de Intervenção Prioritária, a Orquestra Geração ou os bairros BIP/ZIP foram algumas medidas que trouxeram melhorias no espaço público e na habitação, ajudando também a diminuir o deficit de educação, defende o investigador em Geografia Humana.

Houve algum trabalho por parte de governos e câmaras municipais, é certo, mas, nos anos da crise e do pós-crise, boa parte desse empenho desvaneceu: “Assistiu-se a uma descontinuação ou a um menor investimento nas políticas e acabou-se com aquela intervenção estruturada, pesada e continuada”.

A atenção, nos últimos anos, esteve sobretudo no interior do país – impulsionado pelos incêndios rurais – e nos centros das cidades, que enfrentam fenómenos como gentrificação, pressão turística e imobiliária. Os bairros degradados, nas periferias, ficaram para trás, mas os problemas continuaram. Ou melhor, avolumaram-se. “Tudo isso resultou numa perda dos ganhos antes alcançados.”

Retomar, agora, o ponto em que se ficou tornou-se numa tarefa muito mais complicada, alerta Jorge Malheiros, sobretudo porque, entretanto, romperam-se, em boa parte dos casos, os elos de ligação entre as comunidades e as estruturas de mediação: as polícias, as escolas, as instituições e técnicos. “A distância entre um lado e outro ficou maior, ampliando as hipóteses de conflito.”

Combater a pobreza ou a exclusão social exige trabalho em várias frentes e em diferentes níveis, articulando poder local, central, organismos públicos e privados numa multiplicidade de áreas como habitação, saúde, educação ou emprego, defende Luís Capucha. Esse é o ponto fraco por onde tudo desaba, diz Ana Cardoso: “No público ou no privado, cada qual trabalha na sua quinta, olhando para estas populações como o seu utente e o seu público”. Enquanto as instituições não funcionarem como um “corpo humano com vasos comunicantes”, continuar-se-á à espera de uma resposta “mais eficaz”.

E do que se precisa é de uma resposta abrangente o suficiente para as tais 25 mil famílias a viver sem as condições mínimas nas suas habitações. É um número que, à partida, causaria impacto, mas, ainda assim, não sobressalta o dia-a-dia das cidades ou sequer domina o discurso político. Um dos motivos é, talvez, o peso que representam no total. Diluídos por entre a população inteira, esses mesmos 25 mil agregados não chegam a 1% (0,64%) das famílias a residir no país, segundo o relatório do Instituto da Habitação.

A face invertida dos números

É quando se aproxima a lupa que os nomes ganham rostos, mostrando o lado B dos números. Cada uma das 170 famílias ainda a viver no Jamaica tem um percurso que ajuda a perceber como foram ali parar. Cremilde Rosa, 79 anos, viu-se sozinha quando em 1988 uma tuberculose lhe levou o marido. Podia continuar a viver em Santarém com a restante comunidade cigana, mas os cinco filhos queriam-na junto deles no bairro do Jamaica.

Fruta-pão cozida na lenha com molho de búzios, calulú de frango, pastéis de peixe ou atum de cebolada são algumas das especialidades de Desidéria Lomba e que, aos fins de semana, fazem encher o Café da Tina.

José Varela, 62 anos, saiu de Lisboa, algures no verão de 2006, para visitar o sobrinho. A meio do caminho foi atropelado e largado na beira da estrada e por ali ficou. Primeiro não podia sair da cama do hospital e depois as consultas, três vezes por semana, obrigaram o cabo-verdiano a ficar por perto.

De Angola, Cabo Verde, São Tomé ou de várias cidades portuguesas, a Quinta Vale de Chícharos, no Seixal, viu muita gente chegar e muita gente partir, ao longo de quase três décadas. Manuel Vicente, Cremilde ou José Varela ficaram. Não era propriamente o que ambicionavam. Longe disso, mas, ao longo de anos, foram remendando com o que tinham à mão, construindo por cima, por baixo ou acrescentando dos lados, como se as casas fossem peças de legos.

Compraram tijolos, cimento, instalaram esgotos, canalizações, montaram cozinhas, casas de banho e fizeram do Jamaica um bairro com tudo aquilo de que precisam: cabeleireiro (só aos fins de semana), cafés (que não têm nome), discotecas ou mercearias. Não fossem as paredes por rebocar, os tijolos à mostra ou a estrada de altos e baixos em terra batida, quase parece uma urbanização como outra qualquer na freguesia da Amora. Não na aparência, mas nos hábitos que se enraizaram.

Aos dias de semana, o café da Tina, onde trabalha Desidéria Lomba, está morto. Mas aos sábados e domingos enche com novos e velhos, que vêm ver a bola e comer as especialidades dela. Fruta-pão cozida na lenha com molho de búzios, calulú de frango, pastéis de peixe ou atum de cebolada que, “modéstia à parte”, ganharam fama para lá do bairro. Até o filho mais velho, Elvis, o vegetariano, vem de propósito de Mirandela duas ou três vezes por mês. “Quando ele me visita, faço um preparado especial”, revela a são-tomense de 57 anos. Uma versão vegan para ele sentir “o sabor” que tem o “amor de mãe”.

Desidéria é a cozinheira por excelência do bairro, mas quase toda a gente ali tem uma função. Não há uns mais importantes do que outros. Verdade seja dita, João Domingos Francisco é indispensável. É ele que faz os arranjos e os consertos nas casas do Jamaica. Nos últimos dias, anda cansado de tanta televisão e jornalistas a cirandarem de baixo para cima. “Ando sem paciência para conversas. A partir de agora é só com marcação, pode ser?”. Até porque tem muito para fazer. O esgoto na casa da Tula rebentou e ele foi chamado de emergência.

Sobram-lhe ainda alguns minutos para contar que já foi casado, mas o vício da bebida afugentou a mulher e os filhos. Agora que está sóbrio “há vários anos” pode ser que arranje uma nova família. Um homem tem direito a uma segunda oportunidade e ele, aos 62 anos, não perde a esperança. “Olhe, menina, agora tenho mesmo de ir”, avisa, apesar de arranjar mais um minutinho para a foto. A Tula é que não deve estar nada contente, vá homem, não se prenda mais. “Não é por mais cinco minutos que a casa vai abaixo”, responde ele, antes de entrar na casa da Bernarda para mais uns dedos de conversa.

A antiguidade é um estatuto

Como um dos moradores mais antigos, Manuel Vicente ganhou também um estatuto no bairro. Não é só pela antiguidade. Tem fama de justiceiro implacável e chamam-lhe Comandante Cobra – para quem tem menos de 30 anos, convém esclarecer que é o nome do vilão da banda desenhada G.I. Joe. Só que, ao contrário do líder supremo da organização criminosa Cobra, Manuel está do lado do bem.

Manuel Vicente, conhecido como Comandante Cobra, tem fama de justiceiro implacável e está sempre disponível para sanar conflitos.

Se houver briga entre os moradores, é ele quem os separa. Se alguém se arma em parvo, é ele quem acaba com a parvoíce. Se há confusão entre os rapazes do Jamaica e da Quinta da Princesa, ele corre com todos.

Há menos de uma semana, um dos vizinhos enfiou-se na casa de outro e não queria sair sem antes “partir a loiça toda”. O Comandante Cobra foi chamado de emergência. Bateu à porta e fez o ultimato: “Vou contar até cinco!”. Antes do três, a porta abriu-se. A fama de homem duro vem de outras vidas, conta ele. Quais vidas? – perguntámos nós. “São coisas do meu passado, mas já paguei por isso na cadeia.”

“Já ouvi dizer que só daqui a quatro ou cinco anos é que saímos daqui, mas eu acho não vou viver até lá”

Um dia, não muito distante de agora, o bairro do Jamaica será também passado para os moradores. Pelo menos, é esse o plano de realojamento da Câmara do Seixal que arrancou em dezembro, com a demolição da torre 10, e que se prevê estar concluído em 2022, com todas as famílias distribuídas pelas freguesias do concelho.

Há quem acredite na mudança só quando ela acontecer. A desconfiança é geral entre os moradores e não é assim tão descabida, quando devidamente enquadrada na história e no contexto. “O Jamaica nasceu espontaneamente há quase 30 anos, passando ao lado de sucessivos programas de realojamento, mas eles continuaram ali, esquecidos”, sublinha o geógrafo Jorge Malheiros.

Vários anos de “expectativas frustradas” e promessas “não cumpridas” ajudam a entender melhor não só as revoltas como os desânimos. “Já ouvi dizer que só daqui a quatro ou cinco anos é que saímos daqui, mas eu acho não vou viver até lá”, desabafa Cremilde Rosa, soltando um suspiro que se junta agora ao grito que o Jamaica levou até à capital.