O fim da alegria
Às vezes, quando entro cedo no tribunal, antes de as salas abrirem, permito-me um pequeno jogo inocente. [Estive uns minutos a pensar nesta abertura e torço-me o braço: dedico-me a um pequeno jogo insolente.] Os advogados é fácil, os fatinhos, as saias travadas, as becas negras no braço, as volumosas malas. Mas tento descobrir, no átrio aberto, quem são os acusados, quais as testemunhas, onde pára a vítima, o arguido está de pé ou sentado? Não é adivinhar quem é culpado e inocente, isso é para os juízes decidirem com tempo, e por vezes a verdade acaba como um pão esfrangalhado atirado aos pombos e pardais, uns picam migalhas, outros lutam pelas côdeas.
Depois a sala abre e é divertido ver que a velhinha é encaminhada para o banco dos réus por burla e o homem com ar de bruto foi quem arriscou a pele para terminar uma zaragata de rua.
Há semanas, tinha visto um jovem de rabo-de-cavalo, nem gordo nem magro e com um sorriso indefinido, estava à espera num canto e tive vontade de saber o seu destino. O que é lhe aconteceu para aqui estar, o que é que fez? Qualquer pessoa pode cometer qualquer coisa, qualquer pessoa pode sofrer uma coisa qualquer.
Mas tive de sair do tribunal e só voltei a encontrar o jovem duas ou três semanas depois, já a sessão de julgamento começava. No banco dos réus sentava-se um homem de cabeça cinzelada como um martelo de ponta redonda, meio metro de diâmetro de pescoço. Não era doença, era ginásio. O jovem, na última fila, mantinha um sorriso estranho nos olhos amendoados (podia dizer orientais), mas nesse instante percebi que não era desafio, mas um esgar de medo e nervosismo. Entrou uma senhora para a cadeira das testemunhas.
– É o meu filho, disse ela.
A senhora contava a manhã em que o seu filho viera de uma saída à noite.
– Só o vi quando chegou a casa. Vinha com a camisa toda cheia de sangue. Todo esmurrado do acontecimento. Só quando chegou a casa tive conhecimento que os dentes dele estavam cosidos com um ferro, no interior, porque os dentes da frente partiram.
Foi necessário encontrar logo um dentista para salvar os dentes.
– Nada garante que de hoje para amanhã não venha a ter problemas. Não lhe garantem que fique bem.
Olhei para o lado e o jovem sorria de lábios cerrados. Era estudante de artes na Caldas da Rainha e tinha vindo a Lisboa passar o fim-de-semana a casa dos pais. Ele, com dois amigos e três raparigas foram ao corredor das discotecas à beira-Tejo. Foi esmurrado e pontapeado na cabeça por sete seguranças. Mudou-se para Viana do Castelo. Foi-se embora.
– O meu filho nunca mais se sentiu seguro em Lisboa. Era uma pessoa bem-disposta… continua a ser… mas mais amedrontado, mais nervoso. Nunca mais entrou em sítios desconhecidos. O que mais lhe custava era não perceber como é que isto aconteceu. É triste ver um filho tão novo a ter problemas em divertir-se. Ele estava a sair da faculdade, agora tem 25 anos, é natural que isto lhe custe.
Depois entrou a irmã.
– Vi o Hugo quando regressou do hospital. Estava com um penso gigante na cabeça, um olho super inchado.
– E relativamente ao medo, ao stress?, perguntou o advogado.
– Nós somos muito chegados e claro que falou muito abertamente comigo. Sinto que agora está um pouco mais retraído, sempre a querer saber se está num ambiente seguro.
– O seu irmão sente alguma responsabilidade no que aconteceu?
– Sempre que falou nisso foi no sentido de não compreender como é que isto aconteceu.
No fim falei com Hugo. Disse-me que estavam na discoteca, vieram todos cá fora, depois as raparigas reentraram mas aos rapazes voltaram a pedir dinheiro. Explicaram que já tinham pago e, a seguir, a chuva louca de pancada. Só um segurança foi apanhado.
– Quando os vejo fico logo a tremer. Três dias antes destas sessões não durmo. Na verdade, sonho com isto.
Sempre a espreitar pelo ombro, à espera de um golpe do céu. Não sai à noite na cidade onde nasceu. Foi essa destruição íntima da juventude que não percebi no primeiro dia.
(O autor escreve de acordo a anterior ortografia)